UM
BISCOITO ANTES DE MORRER | ||
Luís
Valise | ||
Novinha e safadinha, Clarice deixou Décio levantar sua saia, e fechou os olhos quando sentiu a mão apressada do vizinho alisando suas coxas. Percebeu que ele desabotoava a calça, e deixou que pusesse sua mão em torno do pinto quente e duro. Décio era magro, sardento, e já tinha feito o mesmo com a Valdete, que contou pra Clarice: - Com o Décio foi uma delícia! Clarice também estava achando uma delícia, até tomar um baita susto ao ver uma cabeça espiando pelo vidro embaçado da janela do carro. Abaixou a saia rapidamente, se ajeitou no banco, gritou: -
Décio, tem alguém olhando, vamos embora, por favor! Décio
abaixou o vidro, e perguntou: -
Quem tá aí? Fala, senão eu atiro! E abriu o porta-luvas,
como se buscasse algo. -
Não atire! Não atire! Sou eu, Felipe! Décio abriu a porta
e saiu do carro: - Pô, Lipe, quê que cê tá fazendo aqui? Não tem vergonha, um cara do teu tamanho? Felipe virou as costas e foi andando de cabeça baixa, envergonhado, as pernas grossas e peludas saindo da bermuda surrada. Décio voltou a entrar no carro, e tentou acalmar a garota: - Pô, Clarice, que merda, eu devia era dar umas porradas na cara dele! Onde já se viu fazer uma coisa dessas, ainda mais que a gente é amigo e tudo... Acho que ele ficou louco, sei lá, me desculpe também, vai, pára de chorar, pára, vem aqui, fica pertinho de mim que já passa, vem, deixa eu te abraçar... Clarice soluçava. Nunca se assustara tanto. O Felipe era mesmo um caso perdido, a vizinhança falava que "esse não vai longe", tinha abandonado a escola, ganhava uns trocados ajudando na mecânica do Zé da Porca, e gastava tudo em cerveja. O Décio, não, era o oposto, estudioso, sempre bem-arrumado, carinhoso, tinha um abraço gostoso, tão gostoso que Clarice foi se acalmando, parou de chorar, sentiu os beijinhos que Décio dava em seu rosto rosado, e deixou que o menino chupasse seus lábios de novo. Com o Décio era tão gostoso... De longe, escondido, Felipe viu o casal voltar a se abraçar, os vidros do carro se embaçando de novo... Depois de deixar Clarice em casa, Décio dirigia devagar pelas ruas desertas da pequena cidade, quando um vulto saltou na frente do carro. Décio brecou assustado, Felipe deu a volta e meteu a cabeça na janela do motorista: -
Conta aí, mano, como é que foi? -
Porra, Lipe, assim cê me mata de susto! -
Fala, fala, foi bom que nem com a Valdete? -
Foi. A Valdete é mais escolada, a Clarice ainda tem que aprender. -
E os peitinhos, pegou? -
Só por cima da roupa. -
Ela gozou? -
Como é que eu vou saber? -
E você? - Deixa de ser besta, Lipe, que eu te vi escondido. Cê sabe que sim... Eram amigos desde sempre. Antes do primário, já brincavam na rua de terra; depois jogaram bola no campinho; nadaram na lagoa atrás do bambuzal; fizeram concurso de punheta: quem gozava por último pagava uma paçoca. Cresceram, já rapazotes seguiam inseparáveis, e o que os diferenciava eram as garotas e as palavras. Enquanto Décio era o xodó das garotas das redondezas, Felipe só ia na cola, pegando as rebarbas, e só uma vez, já que as meninas não topavam sair com ele de novo. Décio não entendia por quê. Felipe também não. As garotas não davam explicação: não queriam mais, e pronto. Décio sabia que Felipe ficava espiando, e depois perguntava os detalhes. E o vocabulário do Felipe, que era limitadíssimo, o que irritava um pouco o Décio, que tinha sempre que explicar o significado das palavras. Quando ficava de saco cheio não explicava nada, e o outro ficava sem entender. Décio sentia pena, e a amizade estava acima desses pequenos detalhes. Décio foi para São Paulo, prestou vestibular, passou, mudou-se pra lá. Felipe ficou no Zé da Porca. Já era mecânico, funileiro, pintor, pau pra toda obra. Também fazia bicos de encanador e eletricista. Cidade pequena não dá pra escolher trabalho. Às sextas-feiras ia na zona, e, mesmo pagando, as mulheres tentavam se esquivar: -
Tô morta, Felipe, vê se a Berenice tá livre. -
Tô de chico, Felipe, já falou com a Claudete? - Tá bom, Felipe, vamos lá, mas vê se não demora, hein? O certo é que Felipe ficou um homem amargurado, seco, sem amigos. Se detestava a ponto de fazer a barba de olhos fechados. Até que um belo dia uma senhora, gorda, bateu palmas na oficina do Zé da Porca: -
É aqui que tem um eletricista? Felipe estava sem serviço, se apresentou: -
Sou eu mesmo, sim senhora, às suas ordens. -
Sabe o que é, nós mudamos há pouco tempo, a casa tava meio
abandonada, de vez em quando sai faíscas das tomadas. Será que o
senhor podia ir dar uma olhada? Felipe disse que podia, a mulher deu o endereço,
dia seguinte ele foi. Palmas. Uma garota gordinha, parecida com a mãe,
atende: -
Pois não? -
Eu sou o eletricista. Ela deu um sorriso de dentes perfeitos: - Entre, entre, e não repare a bagunça... A casa era arrumadinha, limpinha, o chão de lajotas vermelhas brilhando de cera. A gordinha estava descalça, Felipe reparou os pés branquinhos, de unhas pintadas, sentiu um calor subindo pelo rosto. Ela: -
Vem que eu te mostro as tomadas... Foi andando, Felipe seguindo as ancas redondas
e fartas, até o quarto da mãe. Depois na sala, que também
tinha tomada com defeito. E no quarto dela, que sorriu, e ele achou o sorriso
meio maroto: -
Não repara no meu quarto, viu? Mas ele reparava era nela, cabelos castanhos
cheirando shampu de frutas, seios grandes, com reguinho no meio. Felipe perguntou
de chofre: -
Como é teu nome? Ela, abaixando os olhos: - Madalena. Felipe sentiu que tinha chegado sua hora. Na verdade, os dois sentiram. O amor pintou torturante, como o bandeide na letra do Aldir Blanc. Mais contente ainda ficou a mãe da Madalena, que mãe de gordinha é sempre cheia de maus pressentimentos. O namoro deu certo, e pela primeira vez na vida Felipe andava de cabeça erguida, confiante. Casamento marcado, levantou um cômodo nos fundos da casa, pra não deixar a sogra no desamparo. A vida mudou. Zona, nunca mais. Tinha Madalena ali, sempre disposta, sempre risonha. Décio terminara a faculdade de letras, trabalhava num jornal, o tempo passando rápido. Um belo dia voltou à cidadezinha. Os parentes fizeram festa. Perguntou pela vizinha: -
E a Clarice? -
Casou, já tem dois filhos. Décio ficou pensativo. -
E a Valdete. - Ainda está solteira. Vai ficar contente em te ver. Contente vou ficar eu, pensou Décio, imaginando as sacanagens que iria aprontar com ela. -
E o Felipe? Ainda está por aqui? -
Claro, continua no Zé da Porca, aonde mais aquele traste iria parar? - Preciso vê-lo, relembrar o tempo antigo, matar a saudade... E foi o que fez na manhã seguinte. Pegou o carro e foi pra oficina do Zé da Porca. Felipe estava debruçado sobre o capô de um Santana velho. Décio deu-lhe um tapa na bunda: -
Falaê, seu feladaputa! Dá um abraço, cara! Felipe ficou emocionado: -
Porra, Décio, quanto tempo! Entra, entra! Limpou as mãos numa estopa
suja, colocou as ferramentas sobre a bancada de madeira, louco pra contar a novidade,
orgulhoso: -
Casou, Décio, casou? -
Você tá louco, porra? Casar pra quê? Tô comendo todas...
Felipe ficou desapontado, perdeu o assunto, perguntou seco: -
Veio fazer o quê aqui, então? Décio olhou o amigo nos olhos: -
Vim em busca do tempo perdido... -
O quê? -
Por quê você acha que vim te ver logo? Pra comer a madeleine, cara...
Felipe grunhiu: - Vai comê, não! Sobre a bancada de madeira havia uma faca pontuda, usada pra descascar fio. Foi ela que Felipe pegou, e enfiou não sei quantas vezes na barriga do Décio - touf! touf! touf! - que caiu na mesma hora, e desmaiou, e sangrou, e estrebuchou, e morreu. | ||