CRÔNICA RESIGNADA DE UM ALLEGRO MISANTROPO XXX
Sérgio Galli
 
Verão de 2008

(Ao som de Miles Davis)

Retorno ao meu embate insano, inglório, inútil, vão contra a tirania do automóvel. Peço desculpas pela insistência no tema. Deve ser um enfado. Também é para mim. Isso não é conversa fiada.

Hoje, na minha caminhada de andarilho não mais magricela, contei sete infrações (atravessar o farol vermelho), só dois houve respeito. Não sei o valor da multa, mas dava um terço mais ou menos do meu salário. São pessoas, em princípio, estudadas, com uma renda no mínimo razoável para possuir um veículo - seja automóvel, picape ou motocicleta. Mas em termos de educação, respeito e cidadania, nota zero. Pior, são os mesmo que vomitam imprecações contra o governo, os parlamentares, os "políticos". São os mesmos que clamam pelo extermínio dos bandidos. Mas será que violar as leis de trânsito não é crime? Atropelar não é homicídio?

Repito: a cidade é refém e as pessoas são escravas do automóvel.

Tudo é feito em função do automóvel. O semáforo, por exemplo (nem falo da faixa de pedestre que não passa de um mero e inútil enfeite), o pedestre tem mais ou menos de 10 a 20 segundos para atravessar. Muitas vezes tem de correr ou acelerar o passo. Isso para quem é "normal". Alguém que teve um AVC, tem dificuldade para andar, ou é cadeirante, ou um velho ou uma velha, um pai ou pão com um carrinho de bebê, atravessar a rua é uma verdadeira aventura.

Além de invadir as ruas e avenidas, o automóvel já invadiu calçadas e até residências. Ensurdece nossos ouvidos. Entorpece nossa visão. Embrutece nossa mente.

A mídia é um caso à parte. Já repararam que as propagandas de automóvel transgridem as leis de trânsito? Primeiro nunca tem ninguém, nem trânsito e voam a mais de 200 quilômetros por hora. Toda propaganda é uma falácia. Calhorda. Vende-se um automóvel que corre a 200 quilômetros por hora e no trânsito anda-se a 10, 20... e o limite é 60, 80???!!! Cinismo tonitruante. Não é conversa fiada.

O principal. O noticiário, seja de uma rádio, televisão, internet, ou jornal impresso faz uma reportagem sobre a violência no trânsito. Mata-se tanta quanto uma guerra. Ou os intermináveis congestionamentos. Agora tem helicóptero, mapas, boletins de hora em hora para dar quantos quilômetros de congestionamento. Patético. Ou seria trágico. Logo em seguida, no caderno de economia ou no noticiário econômico, comemora-se o aumento na venda de automóvel?! Paradoxo inextricável. Mas tem mais. Na página seguinte, ou no intervalo, anúncio de página inteira de.... automóvel ou 30 segundos ou mais de propaganda de ... automóvel. Contradições. Contadições. Ou seja, não dá para levar a sério notícias de veículos de comunicação que dependem da generosa verba publicitária das montadoras, das petrolíferas, das concessionárias de venda de automóvel, da indústria de pneus, etc. Nó górdio. Conversa fiada?

Enfim, de volta ao começo, meu combate é vão, inútil e infrutífero. O poder e a pressão dessas indústria é infinito, monstruoso. Continuaremos a viver neste inferno que nem Dante seria capaz de descrever. Não é conversa fiada.


Sugestão de leitura: "Vida Líquida", de Zygmunt Bauman, Zahar editora