PALAVRAS
CRUZADAS | ||
Luís
Valise | ||
A hora era aquela. Depois de muita insistência, conseguiu que ela tomasse algumas taças de vinho: - Rosé. Ele detestava vinho rosé, achava bebida de fresco, nem barro nem tijolo, e além disso só não dava dor de cabeça se fosse do bom. E do bom custava mais caro. Não era que nem o tinto, denso, encorpado, redondo. Macho. Algumas taças de tinto, e ela se sentiria bacante num banquete de Menelau, capaz de improvisar uma dança dos sete véus. O rosé já não fazia o mesmo efeito, embora na taça parecesse mais atraente. No máximo causaria tontura primeiro, e depois mijaneira. Mas ele não era trouxa de contrariar Lucinda, a conquista mais difícil que encontrara. Talvez pela profissão: advogada. Advogados não costumam acreditar em ninguém, a menos que seja por escrito, agora imaginem uma advogada acreditando num homem que lhe passa uma cantada. E não foi uma cantada qualquer, que o Venceslau era profissional no assunto. No aniversário de Lucinda ele deu de presente um cd do Roberto Carlos. Ela adorou, e perguntou se ele também gostava do Roberto, e ele, lógico, mentiu: -
Muito. Suas músicas têm tudo a ver comigo. Aliás, têm
tudo a ver com a solidão. Com quem é sozinho. Mas não vamos
falar de mim, que hoje a noite é sua. Toma alguma coisa? - Obrigada, Venceslau, mas eu não bebo. Sou fraca pra bebida. Ele sentiu que o caminho era esse. Se não conseguia encanta-la com seu olhar tristonho, se sua voz envelhecida em carvalho não amolecia as defesas de Lucinda, então o caminho tinha que ser aquele. Foram muitos os convites, tantos quanto as recusas. Lucinda se mostrava inflexível: - Venceslau, não sei o que você vê em mim. Um homem como você, com tantas garotas dando em cima, não devia se interessar por alguém tão sem-graça como eu. E não era mentira: Venceslau tinha um exército de namoradas avulsas. Era um tal de mulher telefonando pra ele, que não dava pra disfarçar. E ele não disfarçava: - Mas nenhuma me interessa de verdade, Lucinda. Em você eu vejo alguma coisa, não sei, alguma afinidade comigo, uma afinidade mais assim, digamos, espiritual, mais séria, entende? Lucinda não era mesmo a alegria da festa. Fechada, quase carrancuda, raramente falava de outra coisa que não assuntos de trabalho. Mas tinha umas coxas, uns peitos, e uma bunda, que faziam Venceslau mentir sinceramente. E como tudo tem limite, um dia Lucinda aceitou o convite. (Que diacho!, uma taça de vinho não mata ninguém.) Ela apareceu com um vestido decotado, deixando à mostra um colo esplendoroso. Assim que entrou no carro, Venceslau apertou o play, e a voz do Roberto começou a dizer que "Amanhã de manhã, vou pedir um café pra nós dois..." Foram ouvindo o cd em silêncio, até chegar ao restaurante. O garçom serviu a bebida para Venceslau provar, e este examinou a cor do vinho contra a luz, girou a taça algumas vezes, aspirou o suave buquê que dali se desprendia, deu uma talagada, chacoalhou o líquido nas bochechas, prensou-o entre a língua e o pálato, fechou os olhos, e balançou a cabeça afirmativamente: - Muito bom. Pode servir. Os cristais se chocaram levemente, Venceslau brindou: - A você. Uma mulher muito especial. Lucinda sorriu tristemente: -
Obrigado, Venceslau, você é muito gentil. Mas, por favor, não
espere muito mais além dessa nossa amizade. Sou uma mulher sem ambições
românticas. Neste momento da minha vida só penso no meu trabalho,
na minha carreira. Venceslau soube disfarçar muito bem: - Não me entenda mal, Lucinda. Não é minha intenção constrange-la por nada neste mundo. Sua amizade me basta. Examinaram o menu, escolheram os pratos, comeram com calma e conversaram muito, tanto que tomaram duas garrafas. Na volta, no carro, Venceslau tornou a apertar o play, e o Roberto insistiu: "Amanhã de manhã, vou pedir um café pra nós dois..." Treparam a noite inteira, e até hoje, tantos anos depois, não sabem dizer quem é o maior fingidor. | ||