ADEUS, VOVÓ
Vanessa C. Vaz
 
 

A primeira vez que fomos à casa da vovó, depois da morte dela, foi muito estranho. Vovó, já não estava presente, mas as coisas delas ainda viviam entre nós. A cadeira de balanço, a máquina de costura, o forno, tudo estava parado, como que de luto. A cama de madeira trabalhada, com aquele lençol branco, rendado, vazia, parecia enorme. E foi ali que meu pai quis que eu dormisse junto com minhas irmãs.

Nunca havíamos sequer sentado na cadeira da vovó, dormir então na cama dela, seria uma falta de respeito. Mas papai garantiu que ela não ia se importar. Pegou-nos pela mão e nos conduziu ao quarto dela. Da entrada, vimos a janela, o armário e a cabeceira. Já a cama, se via só um pedaço, pois estava ao lado da porta, o que era uma sorte.

- Podemos dormir com a porta aberta, né pai, disse minha irmã Vivi.

- E com a luz do corredor acesa, né, acrescentou minha irmã Érica.

Papai concordou. E, para nos provar que não havia ninguém, entrou no quarto e deu meia volta. Depois, sentou na cama e começou a afundar as mãos dele no macio lençol branco. Isso em nada amoleceu nossa preocupação. Ele nos levantou nos braço e nos pos, uma por uma na cama.

- Pai!

- Sim, filha.

- Escuta, pai. E se o espírito da vovó estiver na casa (ele começou a rir), Estou falando sério pai, já ouvi muitas histórias, escuta. E se o espírito da vovó estiver na casa, não seria melhor dormimos na sala, no sofá e deixar a cama para vovó?

- Filha, não se preocupe, a vovó, não está.

- Mas e se estiver?

- Se estiver, ela vai ter que arrumar outro lugar para dormir.

Papai nos beijou e disse que qualquer coisa estaria no quarto ao lado. Apagou a luz e deixou a porta aberta, como combinado.

O quarto, não estava tão escuro. Além da luz do corredor, tinha a luz da lua, que vinha da janela.

- Eu não vou conseguir dormir com essa janela aberta, disse Vivi.

- Então vai e fecha, disse a Érica.

- Eu não, nem morta.

Ficamos as três olhando para o vidro entre as cortinas. Estava meio escuro e se via algumas sombras: galhos de uma árvore, parte do vinhedo e um pedaço do teto do galinheiro, todos em forma de vultos. Chegamos a conclusão unânime de que a janela representava uma ameaça, mas ninguém teve a coragem de levantar para fechá-la.

Já estávamos embriagadas de tanto olhar para janela que minhas irmãs quase pegam no sono. Argumentei que não era seguro dormir. Sugeri que fizéssemos uma escala de revezamento; enquanto duas dormem, uma fica acordada, vigiando. Elas acharam a idéia ótima e foram rápidas na sugestão de que eu, como autora, devia começar com a vigília. Bom, fazer o quê? Tive que aceitar minha sorte.

Uma certa quietude durou até meia noite, quando de repente, vi parado na janela, o vulto da vovó.

- Acorda! Acorda! Disse, sacudindo minhas irmãs.

- O que foi?

- É a vovó, está na janela.

Elas olharam, olharam, mas não viram nada.

- Eu juro, ela estava lá.

- Pois, se estava, já não está mais, deve ter ido embora.

- Não, vocês não entendem, se ela veio é porque quer algo. Talvez queira a cama dela.

- Claro que não, disse minha irmã. Espíritos não dormem em cama. O mais provável é que veio se despedir da gente, disse Vivi.

Será? Pensei. O argumento dela fazia sentindo. Vovó havia partido para outro mundo e não fomos a sua despedida. Teria ficado ressentida porque não nos viu no seu enterro? Precisávamos dizer adeus á vovó?

Dormi com a palavra despedida na cabeça. Despedida, despedido, despedir. Por que D'us a havia despedido do cargo de vó?

Lá pelas tantas da madrugada, levantei para tomar um copo d´água. Passei pelo corredor e vi que alguém dormia no sofá da sala. Voltei correndo para cama e me escondi debaixo da coberta. De manhazinha, contei tudo pro papai.

- Não deu para ver o rosto, mas vi parte da roupa: um vestido cheio de florezinhas, igualzinho daqueles que a vovó usava.

Fomos até a sala e, para meu espanto, não havia mais ninguém.

- Mas também, pai, com esse sofá duro feito pedra, até eu preferia dormir no caixão.