SOBRE TUBAÍNA E PERNAS TORTAS
Renato Bruno Neto
 
 

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"Não é próprio dos reis, ó Lemuel, não é próprio dos reis beber vinho, nem dos príncipes desejar bebida forte. Para que não bebam, e se esqueçam da lei, e pervertam o direito de todos os aflitos. Dai bebida forte aos que perecem e vinho, aos amargurados de espírito; para que bebam e se esqueçam da sua pobreza, e de suas fadigas não se lembrem mais." (Provérbios 31)

2

Meu pai era jogador de bola. Segundo meu avô, o pai dele, só não tornou-se profissional porque se apaixonou muito cedo e, naquela época, futebol não dava dinheiro. Teve de escolher entre a minha mãe e a segunda divisão do campeonato paulista. Ainda segundo meu avô, foi por isso que ele começou a beber. Desgosto. Bebeu tanto que morreu antes de completar trinta e seis. Deixou minha mãe Clarice, minha irmã Elza e eu, Manoel Filho. Também deixou meu avô, seu Amaro. Além disso, deixou na minha mãe um ódio mortal tanto pelo futebol, quanto pela pinga.

3

Era um sábado. Elzinha completava quinze anos. Imagine: minha mãe costurava para fora e meu avô era aposentado na ferrovia. Nunca tivemos festa de aniversário, mas um bolinho e uma Tubaína para cantar parabéns com os vizinhos mais chegados nunca faltou. Era uma questão de honra para dona Clarice. Nesses dias ela acordava alegre, falante, às vezes até ensaiava cantarolar. Meu avô, não: mesmo nesses dias estava sempre fechado, lendo o jornal e ouvindo o rádio, sentado na poltrona da sala. A única maneira de fazer seu Amaro sair daquele estado de inércia era falando de Garrincha. Meu avô nunca torceu para time nenhum. Torcia para o Garrincha. E para o meu pai, quando ele ainda era vivo. Garrincha, para o meu avô, era o verdadeiro rei. Pelé era uma espécie de primeiro ministro. E quis Deus, naquele sábado, que o rei concedesse a honra de uma aparição no estádio municipal da nossa cidade.

- Porca miséria, Maneco!

- Quê, vô?

- O Milionários, filho! Hoje, quatro horas! Lá no campo!

- ...

- O Garrincha, Maneco! Nós vamos ver o Garrincha!

- Mas...

- Mas nada! Olha aqui! Nilton, Djalma, Belini...

Meu avô escalava o time do Milionários Futebol Clube, quando minha mãe saiu da cozinha com duas pedras na mão.

- O menino não vai a lugar nenhum, seu Amaro. Hoje é aniversário da irmã dele e todo mundo vai ficar para a festa!

- Ma quê, Clarice! Ma que festa, que nada! Aniversário tem todo ano, hoje o menino vai conhecer o rei!

- Sei... rei da pinga, só se for!

Meu avô ficou branco. Eu fiquei esperando o desfecho da discussão, torcendo para o meu avô vencer a minha mãe naquele embate de vida ou morte. Não que eu fosse fanático. Mas que menino de onze anos não iria preferir ver um jogo de craques, mesmo que do passado, a ficar em casa ajudando a servir maionese e bolo para as visitas?

- Olha lá como fala, Clarice, olha lá...!

- Rei da pinga sim, senhor. Todo mundo sabe que o negócio desse aí é pinga e... outra coisa que nem dá pra falar na frente de criança.

- Ora, ora, ora... sempre a mesma coisa, falou em futebol, você sempre dá um jeito de ligar o assunto com bebida...

- Tudo a mesma coisa, seu Amaro... uma cambada de vagabundo, de bebum, correndo atrás de uma bola enquanto...

- Já sei: enquanto a mulher fica em casa, bla-bla-bla-bla, o de sempre...

- O menino não vai e pronto, seu Amaro!

- E por que você não pergunta para ele se quer ir ou ficar?

Minha mãe virou-se e olhou dentro dos meus olhos. Meu avô esperava uma atitude da minha parte. Não era a primeira vez que eles discutiam por causa desse assunto. Aliás, esse era o único assunto que colocava minha mãe e meu avô em pé de guerra. Também não era a primeira vez que eu ouvia dizer que Garrincha tinha problemas com álcool. Por mim, tudo bem: eu nem sabia direito que tipo de problema era esse. E para falar a verdade, eu só gostava do Garrincha porque meu avô também gostava. Mas me chateava muito ver minha mãe usando esse tipo de artimanha para atacar o velho. Tanto que eu acabei tomando as dores dele.

- Você escolhe Maneco.

- ...

- Que cara é essa?! Já sei... você é quem sabe. Também, esperar o que, sendo filho de quem é? Não me espanta nada se também começar a correr atrás de bola e virar pinguço!

Aí eu fiquei bravo.

- Meu pai não era pinguço, o Garrincha não é pinguço e eu vou com o meu avô!

Saí da sala, nem sei como terminou a briga. No quarto, me deu vontade de chorar. Queria que meu pai estivesse vivo e queria arranjar uma maneira de provar para minha mãe que ela estava errada.

4

Meu avô já havia se esquecido da briga. Andava pela calçada de peito estufado, sorrindo e cumprimentando quem passava por nós. Afinal, ele estava a caminho de uma audiência com o rei. Quando chegamos ao estádio, fez questão de comprar lugares perto das cadeiras. No meio da galera, parecia que meu avô estava mais moço, mais forte. Gritava e assobiava mesmo na preliminar entre times juniores da região. Irreconhecível. Vez ou outra, olhava para mim como que querendo encontrar o garoto fanático que fora provavelmente meu pai. E eu me esforçava para, pelo menos, parecer com aquele garoto.

Quatro e quinze. O alto-falante anuncia o time local: Neca, Tião, Dodô, Darcy... não ouvi a escalação inteira por causa do barulho dos aplausos, gritos e assobios. Uma festa. Com o time local perfilado, o locutor anunciou o time do Milionários Futebol Clube.

Meu avô chorou quando viu o Garrincha. E eu fiquei espantado ao ver um homem gordo, andando com óbvia dificuldade, acenando para a torcida e sendo aplaudido de pé. As pessoas pareciam que estavam em transe. Ô... ôôôô... ôôôô... ôôôô... Garrincha! Ninguém gritou os nomes de Djalma Santos, Nilton Santos ou Belini. Estes, como integrantes da comitiva real, foram sim aplaudidos, mas apenas isso. O rei do mundo, aquele dia, era Garrincha.

Começado o jogo, o rei no banco, meu avô piscou o olho para mim e falou que eles o estavam poupando. Que dali a pouco eu teria uma verdadeira aula de futebol. Mas o relógio foi correndo, a torcida foi amornando, o clima de festa foi se transformando em clima de jogo de verdade, o time local já recebia algumas vaias, um a zero para o Milionários (gol de pênalti) e acabou o primeiro tempo. No intervalo, meu avô continuava com o mesmo brilho nos olhos do começo do jogo. Alguns torcedores ao nosso lado já começavam a reclamar, dizendo que aquilo era só uma apresentação e coisas desse tipo. Eu olhava para o meu avô como que querendo saber a opinião dele sobre os comentários e ele lá, com o mesmo sorriso impávido, me piscando o olho de vez em quando como se dissesse: "coitados, não sabem nada de futebol...".

Segundo tempo. Os times entram em campo. Garrincha estava no centro, ao lado do bandeirinha. Nem sei no lugar de quem ele entrou. Sei que meu avô foi ao delírio. Bola rolando, o rei recebeu um passe. Nitidamente, o zagueiro se segurou para não roubar a bola. O povo aplaudiu. Garrincha ameaçou um drible, o zagueiro fez que foi na dele, a galera quase derrubou a arquibancada. Meu avô me ergueu nos braços como se o homem tivesse feito um gol. Aí ele deu um passe de lado e dois minutos mais tarde foi substituído. Nunca tinha visto meu avô xingar ninguém. Falou todos os palavrões que conhecia para o técnico do Milionários. Mas estava feliz, xingava rindo.

Passada a euforia, o falatório recomeçou. Mas aí meu avô estava valente e se doeu quando um homem falou que o Garrincha estava acabado, que era um pudim de cachaça. Meu avô foi para cima dele e a coisa só não andou para frente porque seguraram o velho e o falador viu que seria uma covardia esticar a conversa.

5

Na volta para casa, meu avô era campeão do mundo. Eu, para falar a verdade, estava dividido: contente porque o via contente, mas triste porque, pelo que eu havia ouvido e visto lá no estádio municipal, minha mãe não deixava de ter um pouco de razão.

Chegamos em casa e a sala estava cheia de vizinhas e amigas da Elzinha. Minha mãe nos olhou entrando e, ao contrário do que eu esperava, nos recebeu sorrindo e colocando um pratinho de maionese na minha mão e outro na mão do meu avô. O clima era de alegria, minha irmã estava feliz, minha mãe estava feliz e meu avô, então, nem se fala. Só eu ainda estava engasgado com a figura do rei inchado e manco. Engasgado com o que haviam falado dele e, sobretudo, com o fato de que eu começara a acreditar realmente que Garrincha era um bêbado como meu pai. Aos poucos, aquela metade contente do caminho de volta foi dando lugar para uma tristeza completa.

Às sete horas, faltou refrigerante e minha mãe me mandou na mercearia. Entrei na venda do seu Joaquim com a sacola cheia de cascos. Quando encostei no balcão, vi um homem saindo do banheiro abotoando a braguilha. Era Garrincha. Ele passou por mim, mexeu na minha cabeça e sentou-se numa das banquetas do balcão. Eu estava petrificado, não sabia o que pensar.

- Você estava lá no jogo?

- Estava, sim senhor.

- Gostou?

- Gostei, sim senhor.

- Quer tomar uma comigo?

Fiquei branco. Lembrei-me de toda a ladainha que minha mãe havia pregado o dia inteiro e cheguei a ficar feliz por meu avô não estar ali presente para testemunhar a queda de um reinado.

- Não, muito obrigado.

- Faço questão, é por minha conta.

Seu Joaquim, todo orgulhoso de ter Garrincha dentro do seu estabelecimento, estava a postos para servi-lo no que quer que fosse.

- Faz favor, chefia: uma Tubaína e dois copos. Um pra mim e outro para o meu amiguinho aqui.

Não acreditei no que ouvi. O português abriu a garrafa e encheu os copos. Eu nem piscava. O rei sorria. Eu também sorria e agora já queria que seu Amaro estivesse, sim, ali do meu lado. Só despertei para o que estava acontecendo quando ouvi um ônibus buzinando na porta da venda e um grito:

- Vambora, Mané!

Garrincha tirou uma nota do bolso da camisa de botão, colocou-a sobre o balcão, passou a mão na minha cabeça e saiu dali para entrar no ônibus onde se lia Milionários Futebol Clube. E eu fiquei ali, olhando o ônibus partir e só pensando na Tubaína e em como faria para que minha mãe acreditasse nessa história toda.