MISSA DO GALO
Isaias Edson Sidney
 
 

- Chefe! Chefe!

A voz aflita fez-me brecar a velha camionete.

- O que foi, cara? Algum problema na obra?

- Não, não. É que o senhor Daniel vai para o mesmo bairro que o senhor e está com vergonha de pedir carona...

- Ora, que é isso? Chame-o aqui, dou carona, sim, com prazer.

Dois minutos depois, lá vem o senhor Daniel. Banho tomado, barba feira, terninho surrado mas limpinho e bem passado, sapatos engraxados, camisa branca. Sem gravata. Mas aí já seria um exagero. Não deixei de sentir um suave aroma de gardênia, quando se aboletou ao meu lado (queria ir na caçamba, junto com as ferramentas da obra, mas não deixei: onde já se viu! Bronqueei meio brincando, meio bravo). Acanhado, o senhor Daniel. E calado. Foi duro puxar assunto, mas quando começou a falar, ah, que história!

Mas, antes, deixe-me falar um pouco de mim: tenho 55 anos e sou empreiteiro, chefe-de-obra, e trabalho com um grupo razoável de pedreiros, entre eles o senhor Daniel, talvez o meu melhor funcionário. A obra de onde saímos é uma casa na zona sul de São Paulo, no bairro de Santa Catarina, e moro com minha mulher na zona norte, num bairro que, se eu disser o nome, ninguém vai saber, por isso digo que moro no Jaçanã, ou perto, assim todo mundo fica feliz em lembrar a música do Adoniran e pensa que sabe onde eu me escondo. Naquele dia, véspera de Natal, estava saindo tarde da obra, tinha havido um atraso, por conta de falta de material e o engenheiro estava pegando no meu pé, por isso já eram quase mais de sete horas da noite quando liguei meu pau-velho para ir para casa, pegar minha mulher para irmos à missa do galo. Estranhei o pedido de carona do senhor Daniel, porque sabia que ele morava do outro lado da cidade, lá pros lados de Parelheiros.

- Vai fazer o quê, pros lados do Jaçanã, seu Daniel?

- Cumprir uma promessa, chefe.

- Promessa? Que coisa antiga, seu Daniel. E que promessa é essa?

- Ah, coisa minha, coisa antiga, muito antiga...

Ia ser difícil, mas tentei de novo.

- E não pode contar?

- É caso comprido, patrão, muito comprido.

- Temos tempo, seu Daniel, temos muito tempo: olha o trânsito como está... Vai ser uma viagem daqui até o Jaçanã...

O senhor Daniel ficou um instante pensativo. Acho que lembrava o que nunca tinha esquecido, os detalhes, o causo comprido e das antigas que eu insistia em querer saber, intrometido eu, bisbilhoteiro mesmo.

- Posso contar, sim. É que nunca me pediram pra contar e eu nunca contei, pra ninguém. Se o senhor faz questão de ouvir...
- Ah, faço, sim, seu Daniel. Adoro um causo das antigas, dessas histórias que ninguém mais vive hoje em dia, porque não tem mais tempo... Faço, sim...

O senhor Daniel ainda olhou pra mim, meio desconfiado, ajeitou-se um pouco melhor no banco duro da Ford velha de guerra, pigarreou um pouco e começou, o olhar meio perdido no mar de carros à nossa frente, mas acho que não via mais nada, o passado abria suas cortinas para o palco de um tempo longínquo a seus olhos já meio baços.

- Isso foi há mais trinta anos, chefia... trinta e cinco. Vou assistir, hoje, à minha missa do galo de número trinta e cinco. E sempre num bairro diferente, sempre uma igreja diferente... por causa da tal promessa que, na verdade verdadeira mesmo, não é promessa, não, é só um capricho... um capricho de amor.

- Capricho de amor! Vejam só, o meu amigo Daniel, o solitário, teve um capricho de amor... me conta, vai, me conta tudo, quero saber os detalhes...

- Não sou tão solitário, assim, não, até que tive alguns amores, mas o amor verdadeiro, mesmo, o único, foi há trinta e cinco anos, chefe... trinta e cinco anos...

- E, se me permite, quantos anos o senhor tem agora?

- Vou fazer 55, chefe.

Olhei espantado para ele, mas não o deixei perceber meu espanto, já na semi-escuridade da Ford: ele tinha a minha idade! E parecia mais velho, bem mais velho: as faces enrugadas, o olho muito azul cercado de vincos, os cabelos brancos... Olhei melhor: deve ter sido um belo moço, o senhor Daniel.

- Então, naquele tempo, eu morava com meu pai e minha mãe, Deus os tenha (e seu Daniel fez um pelo-sinal), num loteamento clandestino lá na zona leste. Eu e meu pai, que era um pedreiro de primeira e me ensinou a profissão, erguemos nossa casinha num arruado sem nada, sem luz, sem água, que depois foi crescendo... E naquele ano, logo no começo, chegou uma família, acho que vieram do interior de São Paulo, gente muito simples, era o casal e três filhos, dois rapazes e uma morena bonita, muito nova ainda, devia ter uns dezesseis, dezessete anos, linda mesmo... cresci o olho, chefinho, do alto de meus vinte anos... cresci o olho e o coração... fiquei doidinho pela morena. Arrastei uma asa danada pra ela o ano inteiro, e nada. Quando a pedia em namoro, ela ria e saía correndo. Assim foi até a véspera de natal, eu cada dia mais apaixonado e ela, nada, nem uma esperança. Então, nesse dia, era véspera de natal, encontrei a morena na bica onde a gente ia buscar água, puxei assunto, e ela, nada, não dizia nem que sim, nem que não às minhas tentativas. Já estava desanimando, quando ela virou pra mim aqueles olhos enormes, pretos que nem jabuticaba, e disse: - Olha, Danielzinho (todo mundo me chamava assim, Danielzinho), se ocê qué namorá comigo, eu aceito, mas tem uma condição... Meu coração pulou até a boca. Besta, eu, no entanto, tentei fazer doce: - Namoro com condição, não quero, não... Mas ela nem me ouviu, e tascou: - Se ocê me levá na missa do galo, eu namoro ocê. Era tudo o que eu podia e queria ouvir, meu chefinho. Eu juro: minhas pernas bambearam, meus olhos escureceram, o mundo girou e só não caí porque não podia passar vergonha. Mas era moleque taludo, mal criado, de boca suja, não resisti e falei a besteira que podia ter estragado tudo: - Te levo na missa do galo, se você pegar o meu pinto... - Ocê é muito é bobo, Danielzinho... se não qué, tem quem queira... - Não, não... eu sou besta, mesmo... estou só brincando... eu te levo, sim, na missa do galo, da galinha, do galinheiro inteiro... Ela deu risada e eu mal consegui entender o que ela falou em seguida e nem me lembro do que lhe respondi. Só sei que, quando cheguei em casa, estava apalavrado de levar a morena à missa do galo, tínhamos combinado horário e lugar do encontro e tudo. Às onze horas, estava eu na esquina esperando a Sônia...

- Sônia? - eu interrompi. Ela se chamava Sônia?

- Chamava, sim, e acho que ainda se chama...

O senhor Daniel nem reparou no meu espanto, perdido lá nas lembranças dele, e continuou:

- Pois, é: lá estava eu, esperando a Sônia, com minha beca mais nova, perfumado e tudo. E fomos pra missa do galo. Era numa igrejinha que ficava uns trinta minutos a pé de onde a gente morava, a estradinha de terra, até chegar na praça do bairro, onde já havia um comércio e até se armava uma feirinha, com barracas de jogos e outras bobeiras. Estava doido pra pegar na mão dela, pra dar um beijo nela, mas a morena não dava entrada. Chegamos já quase na hora da missa e tomamos nosso lugar. Sônia, toda contrita, acompanhava o padre nas ladainhas lá, dele, e eu tentava fazer o melhor que podia, mas não tirava os olhos da morena, estava mesmo perdido de amor, louquinho da silva. Quando ela se ajoelhou e me fez ajoelhar também, senti por um momento o calor do braço dela, ao lado do meu, e apertei mais um pouquinho, ela deixou eu encostar, eu encostei, nunca tinha ficado tão perto dela, podia sentir sua respiração através do véu, podia sentir o calor de sua pele, podia ouvir o murmúrio de seus lábios numa oração, podia tudo, meu chefinho, e queria mais, aquele braço quente no meu braço me deixava louco de amor e de tesão, e tinha que respeitar a missa, que o padre não terminava nunca, nunca vi uma missa tão comprida. Finalmente ouvi as palavras finais, ide, meus irmãos, que Deus vos acompanhe, e o povo respondeu amém, ela fez o pelo-sinal-da-cruz, se levantou, olhou pra mim com aqueles olhos maravilhosos, pegou no meu braço e disse: - vamos, Danielzinho, vamos... Era, claro, uma expressão comum, mas soou para mim como um convite, o convite para o banquete dos deuses. Peguei sua mão, ela apertou os meus dedos. Bom sinal, pensei. Fomos saindo devagar, no meio do povo, quando pude, então, aproximar-me mais ainda de minha amada, encostar mesmo o corpo em seu corpo, assim, por trás, o meu pau duro encostando em sua bunda redonda, ela estava usando um vestido rosa, rodado, nem deve ter sentido, fomos saindo. Então, tive uma idéia: - vem, vamos namorar um pouquinho, ali, no escuro, atrás da igreja, vem... Nem lhe dei tempo de dizer não, puxei-a comigo e saí quase correndo. Chegamos num canto mais escuro do lado da igreja e puxei-a para mim, tasquei-lhe um beijo, que ela aceitou e me beijou também. E ficamos por ali a nos beijar, a nos acariciar, eu cada vez mais louco de tesão, então num desses beijos, levantei a saia dela e passei a mão por baixo da calcinha, até lá, onde encontrei a gruta molhadinha, ela também queria. - Aquela história do pinto é verdade ou era só brincadeira sua? - ela murmurou no meu ouvido. Eu falei: - é verdade verdadeira, olha... E peguei na mão dela e encostei no pau, por sobre a calça. Ela apertou um pouco, abriu o meu zíper e enfiou a mão. - Nossa, Danielzinho, é tão grande! E grosso! - O que você sabe de pau grande e grosso, menina? - Ih, não seja bobo, já vi meus irmãos tomando banho: não são assim tão grandes. - Você viu eles murchos... - Que nada, já vi meu irmão fazendo assim, ó... E começou a me masturbar. Fiquei louco, completamente louco. Pus o pau pra fora e perguntei: - Quer pôr sua boca nele, quer? - Tá louco, Danielzinho? Deus me livre... - Então, deixa eu pôr um pouquinho, deixa... - Um pouquinho, só um pouquinho? Mas ele é muito grande, não vai doer? - Não, não vai doer, não... deixa. - Só um pouquinho, hem? Então, afastei a calcinha e comecei a empurrar pra dentro da xoxotinha dela a minha vara, coloquei só um pouco, ela gemeu e pareceu gostar, me apertou e me beijou, eu enfiei mais um pouco, mais um pouco, e ela gemeu, mas também me apertou um pouco mais. - Não está doendo, está? - Está, sim, mas é uma dor gostosa... põe mais, põe... eu quero... E eu enfiei tudo, ela não gritou, mas gemeu fundo em minha orelha, aquele gemido que não é dor, é prazer, é gozo, e eu gozei, gozei como nunca havia gozado na minha vida, estava no paraíso, era a coisa mais maravilhosa que já tinha sentido, eu queria aquela xoxotinha apertada comigo para sempre, eu queria a Sônia para dormir e acordar com ela todos os dias da minha vida. Não ia poder nunca mais viver sem aquela menina que acabava de virar mulher nos meus braços, porque assim que tirei o pau e passei a mão em suas pernas, senti um filete pegajoso, pensei que era a minha porra, era sangue, tirei meu lenço, limpei-a o melhor que pude e guardei aquele lenço vermelho para sempre comigo, está aqui, ó (e ele me mostrou um pequeno saco plástico com um pano vermelho dentro, fiquei meio enojado, mas queria saber o resto da história e não disse nada), depois levei a Sônia para a casa dela e fui tentar dormir. No dia seguinte, não a vi. Como meu pai tinha pegado um serviço pra depois do natal, um serviço urgente, numa casa de bacana na zona sul, fiquei quatro dias fora, dormindo com meu pai na obra, sem notícias dela. Quando voltamos, a desgraça: a prefeitura tinha desmanchado o barraco deles, que ia passar ali uma avenida e eles tinham sido levados para um abrigo. Qual? Ninguém soube me dizer. E foram totalmente inúteis todas as minhas tentativas de localizar a família.

- Mas você não sabia o nome dos pais dela?

- Só os apelidos, que todos ali conheciam eles por Dona Iná e Seu Neco. Nem o sobrenome da Sônia eu sabia...

O senhor Daniel deu um pulo, quando freei bruscamente, para não bater no carro da frente. Pensou que eu me distraíra, não percebeu que o meu susto fora devido às suas palavras.

- E o senhor nunca mais a viu, seu Daniel? - consegui balbuciar.

- Nunca mais, meu chefinho, nunca mais... Alguns dias depois, nossa casa também foi destruída pelas máquinas da Prefeitura, nos deram uma indenização, o meu pai resolveu se mudar lá para Parelheiros, onde comprou um terreninho, construiu uma nova casa e é onde moro até hoje. Nunca mais tive notícias dela. Por isso, todo natal eu vou assistir a uma missa do galo num bairro diferente, na esperança de encontrar a minha Sônia, a mulher que foi minha uma vez só e que é a mulher que eu nunca esqueci nesses trinta e cinco anos...

Parei a velha Ford já perto da igrejinha, o senhor Daniel agradeceu muito a carona, cheio de salamaleques e obrigados, ainda perguntei se não era muito cedo para ele chegar à igreja (eram pouco mais de nove da noite) e ele disse que não, que ainda ia dar uma volta pelo bairro, quem sabe ele podia encontrar a amada, estava com muita esperança naquela noite, não sabia por quê, mas parecia que seu coração lhe dizia que ele estava perto, muito perto da Sônia, da amada Sônia...

- Sônia! Sônia! - gritei eu do portão, entrando atabalhoadamente sala adentro, alguns minutos depois de estacionar a velha camionete na porta de casa, dois quarteirões adiante de onde deixara o senhor Daniel. - Vou já tomar um banho, meu amor... Vamos naquela capela lá no Taboão, que você disse que queria conhecer, minha querida... Eu sei que é longe, mas eu me arrumo rapidinho... Promessa é promessa... a gente vai ter hoje a melhor missa do galo desses últimos trinta anos, você vai ver...