A
passos largos caminhava por uma floresta, cheio de vitalidade; estava perdido,
talvez completamente. A luz da lua clareava o seu caminho. Ele chorava, atento
a serpentes e a riscos de repente só imaginados, como os que ofereciam
os lobos daquela terra estrangeira. Não carregava nada, estava de terno
e gravata; fugira de um baile porque quiseram açoitá-lo com um cacetete.
Após duas breves horas e de tanto andar, rendeu-se ao cansaço e
desfaleceu na relva molhada. Mas a manhã logo veio e ele acordou, decidindo
voltar imediatamente. Até que foi fácil encontrar o caminho de volta.
Avistou, então, do alto do morro onde estava, a mansão onde houvera
a festa, uma festa repleta de gente extravagante. Daquele lugar eram dez quilômetros
a pé até a charmosa Londres. Pensou no emprego, no seu chefe que
talvez àquela hora estivesse dando graças por ele ter se ausentado,
pensou no seu quartinho limpo na periferia, pensou nas brumas que eram as de Avalon.
Como era duro ser sozinho, rejeitado por sua estupidez ou então por sua
fealdade! Mas tudo bem, pelo menos tinha um salário ainda plausível
e não passava fome. Além do mais, realizara o sonho de estar na
Europa; estava quase sempre radiante. Chegou à pensão por volta
das duas da tarde, e a senhora Roosevelt, a senhoria, bradou seu nome duas vezes
logo que o viu entrando. ---
Não está labutando, menino?
---
Obrigado pelo menino. Senhora Roosevelt, disse em um inglês com forte sotaque
latino, não lhe devo satistações da minha vida. Mas como
a senhora já tem idade e é muito simpática, digo-lhe que
não fui trabalhar porque tive um probleminha.
---
Que probleminha, Lauro?
---
Não posso lhe contar. Vou voltar para a América.
---
Não faça essa bobagem. É estupidez voltar para um país
subdesenvolvido como o seu.
---
Mas lá é minha pátria, e não é mais um país
subdesenvolvido, é um país em desenvolvimento.
---
Sua pátria é aqui, ao lado dos ingleses.
---
Mas meu irmão está doente.
---
Ele está com alguma doença grave?
---
Ele me disse por email que pensa em se matar. O amor dele não o quis mais.
---
Deixe-o sofrendo. Mas é por isso que não dormiu em casa? Parece
que voltou da guerra do Vietnã!
---
Não, perdi-me em uma floresta, mas tudo bem. Bom, juntando todas as minhas
economias, dá para viajar e ainda sobra um pouco. Preciso ver meu irmão
gêmeo, a senhora entende? Preciso tocá-lo, conversar com ele. Ele
pode estar passando fome.
---
E você vai fazer o quê, vai emprestar dinheiro a ele e passar fome
também? Mas vá, vá; vá arrumar sua mala e leve coisa
pouca, uma muda de roupa e nada mais, se é que pretende voltar, não
é?
---
Claro. A senhora fala como se eu fosse viajar até Liverpool.
---
Ora, viajar até ali ou até acolá, não faz muita diferença.
Volte para o Brasil e ponto final. Já pediu demissão?
---
Vou pedir um afastamento. Tenho certeza que o Sr. Richard vai entender. É
por pouco tempo.
Lauro
tomou o banho rápido de sempre, o banho de cinco minutos cronometrado,
sentou-se na cama e pensou em suicídio. Ele, uma pessoa que se achava altamente
otimista, pensando em suicídio? Talvez fosse seu irmão quem estivesse
pensando e ele sentisse, pois eram muito ligados. Olhou da janela as roseiras
sendo agitadas pelo vento, as rosas cor-de-rosa de que tanto ele gostava; olhou
para os girassóis, para as orquídeas, e apertou uma espinha na testa.
Sentia-se um inútil, e era isso que o fazia pensar em tirar a própria
vida, a sua inutilidade perante o mundo; precisava ajudar o irmão.
Aeroporto.
Lauro pegou as malas e pediu um táxi, pediu a Deus que lhe desse paciência.
Estava no Brasil, em São Paulo, uma cidade boa para viver, desde que não
se fosse muito pobre. Oscar não veio lhe buscar; onde estaria? Não
o encontrou em nenhuma parte. Na certa, pensou Lauro, estava em algum evento como
penetra, enchendo a cara com champanhe francês. Oscar não era muito
bem-visto pelas pessoas em geral, estava marcado. Passava-se por jornalista ou
então por artista plástico, mas sua hierarquia era deveras uma das
mais baixas, e alguns seguranças percebiam isso, por vezes expulsando-o
dos eventos. A vida de penetra de Oscar iria continuar para sempre, pois tinha
ele necessidade de expulsar os demônios quando bebia, falando tudo o que
lhe viesse à cabeça, em um acting out encantador. Lauro estava abandonado.
Como podia o próprio irmão gêmeo deixá-lo ali, esperando-o?
Foi direto para um hotel barato; sim, voltaria para Londres em breve. Em menos
de um mês arrumaria emprego como professor de inglês. Todavia, três
anos na Inglaterra não tornaria o currículo dele excelente, haja
vista a quantidade enorme de pessoas que possuiam um currículo melhor.
Mas dar aulas de inglês era um sonho antigo. Imaginava receber de presente
de alguma aluna apaixonada uma maçã. Se fosse um mata-mouros talvez
se prostituisse; se escrevesse um livro talvez ninguém lesse, nem mesmo
psiquiatras procurando algo interessante para suas teses sobre doença mental.
O nome do hotel era Invocação do Mar. Lauro ficou na recepção
por um longo tempo, pois não havia quartos para pernoitar. Teve de esperar
três horas por um quarto vago. De súbito, sentiu uma pontada de dor
nas costas, levantou-se e foi até o balcão.
---
O senhor tem massagista disponível no hotel?
---
Como?
---
Sim, preciso de uma massagem e estou disposto a pagar cem reais. A nota está
aqui, dê uma olhada.
---
Não senhor, não temos massagistas neste hotel. Tínhamos borboletas,
ou seja, garotas de programa, mas...
---
Pode ser homem, não tem problema. É que estou com um pouco de dor
nas costas. Há urgência.
---
Sei.
---
Então, senhor, senhor...
---
Marlon.
---
Senhor Marlon, então?
---
Poderia ser eu, mas estou sem tempo. No entanto, acho que posso arrumar uns minutinhos.
Entendo de massagem, o senhor teve sorte. Vá até o quarto 155, que
já está desocupado e limpo, e fique lá, pois daqui a pouco
entrarei. Quando o recepcionista entrou no quarto, Lauro estava de bruços
sobre a cama de casal e totalmente desnudo. Sentiu mãos enormes explorando
seu corpo e conteve um gozo proibido. Fazia algum tempo que não era tocado.
Se Nina, sua esporádica namorada inglesa, soubesse o que estava se passando
agora, obviamente que o acharia um maricas, não o quereria de volta. De
manhã, Lauro acordou feliz, apesar de uma certa culpa, e espreguiçou-se
morosamente. Como era bom vez ou outra uma massagem! O celular vibrou: era Oscar.
Finalmente Oscar se lembrara dele.
---
Maninho, desculpa mas não pude ir até o aeroporto. Fiquei embriagado
e depois da meia-noite no Brasil não tem mais ônibus. Estou sem um
centavo, também. Por favor, dê-me o endereço daí que
pretendo chegar até o meio-dia o mais tardar, eu prometo.
---
Eu já esperava e... estou em um hotel aqui próximo do aeroporto.
---
Tudo bem?
---
Sim.
---
Estou morando em um quartinho na Santa Cecília. Tenho feito meu jantar
em uma espiriteira, isto é, quando tem algum dinheiro pra eu comprar legumes.
Pretende ficar aí nesse hotel?
---
Sim, já paguei a mensalidade
---
Estou sem acreditar que estou passando fome. Saulo me deixou; aliás, eu
e Saulo nunca tivemos nada assim de tão profundo; durou somente um mês
e no início foi maravilhoso. No início, no primeiro dia. Ele me
abraçou em público nesse dia e eu rejeitei seu abraço. Quero
que Deus me leve. Nossa cara não é das melhores, não é
irmão?, e não consegui ser nada na vida... Estou morrendo de saudade
de você.
---
Venha até aqui. Estou te esperando. Precisamos conversar muito.
---
A noite inteira, o dia todo, o mês todo, o ano todo. Quero te agarrar.
---
Oscar, você está melhor? O seu último email me preocupou tanto!
---
Estou péssimo. Quase cheguei ao suicídio. Não quero mais
champanhe tampouco caviar, quero ter uma profissão decente. Quanto mais
dinheiro se tem, neste país, maior a dignidade.
---
Não fale assim.
---
Ainda bem que você gosta de mulher, pois se não gostasse ficaria
com Saulo. Acho que ele está procurando alguém parecido comigo pra
namorar. Para um mulato deve ser ótimo namorar um branco. Como sou racista.
---
Acho que não somos muito brancos.
---
Lauro, você me trouxe algum presente dali da Europa. Falam tanto desse lugar.
---
Eu lhe trouxe tanta coisa que tive de arranjar uma outra mala. Tenho certeza de
que você vai gostar de tudo. Sei bem a respeito de seus gostos, é
claro. Sei, por exemplo, de que gosta de relógios e...
---
Sim, amo relógios. Passe-me o endereço. Que merda de vida. Te tirei
da Inglaterra pra você agora ficar em um hotelzinho em São Paulo.
---
Anote aí.
---
Anotei. Estou indo, então. Vou só voltar para o quartinho e vestir
uma roupa melhor, tá?
---
Acho melhor você pegar um táxi.
---
Tá bem, eu pego; mas vai ficar muito caro.
---
Não tem problema, por enquanto.
---
E olha, não se esquece daquilo que a mamãe sempre falava: fiquem
sempre juntos.
Algumas
horas de espera, o telefone tocando, o recepcionista anunciando e três batidas
na porta. Quarto 155. Sim, Lauro sabia que se tratava do irmão: as inesquecíveis
três batidas de Oscar; desde pequeno que ele batia nas portas dessa maneira
especial. Mas o que faria quando ele entrasse? Sorriria? Abraçá-lo-ia?
Talvez não tivesse reação alguma.
---
Entre, a porta está aberta.
---
Com licença.
A
porta se abriu e lá estava Oscar, lindo, conservado como sempre, sem nenhum
arranhão, mas magro e com olheiras. Lauro levantou-se e foi abraçá-lo.
Ficaram assim, abraçados, por mais de vinte minutos.
---
Que saudades, Lauro. Pensei que nunca mais fosse vê-lo.
---
Não, não chore assim. Somos sós, não temos pai nem
mãe. Olha bem pra mim. Estou diferente?
---
Esse seu cabelo vermelho está estranho.
---
Vou passar máquina zero. Agora me escute bem. Vim buscá-lo. Quero
que vá comigo para Londres, está bem? Não agora, vou dar
um tempo aqui. Não podemos nos separar. Nunca mais.
---
Mas eu não quero ir para Londres, Lauro, eu não quero. Não
falo inglês pra começar e..
---
Não, nunca é tarde para aprender, nunca é tarde para nada.
E você tem facilidade para aprender, eu sei.
---
Sempre é tarde, meu irmão. Fique comigo. Vamos aproveitar um pouco
a noite. Olha, tem uma festa ótima para irmos hoje e...
---
Você continua entrando nesses eventos de penetra? Qualquer hora te prendem.
Deve ser horrível entrar, por exemplo, como jornalista em um evento desses
e ter consciência de que se é um nada, só uma espécie
de parasita.
---
Não , não fale assim comigo. Já não basta Saulo pra
quem devo estar morto!
---
Que povo, Oscar, que povo? Bom, acho mesmo que o povo desconhecido te desvia de
alguma coisa importante que você não enxerga. E se te perseguem,
mais uma razão para sair daqui, deste país.
---
Sim, mas agora é tarde, Lauro. Já temos quarenta anos, e mal-vividos..
---
Imagine, fui para a Europa com trinta e oito! Acho que vou ficar por aqui no máximo
uns dois meses.
---
Vão ser dois meses maravilhos. Vai arrumar um emprego digno para mim? Há
vinte anos que não arrumo um emprego decente. O que vai ser de mim e sem
você?
---
Vou alugar um apartamento para nós, para você. Eu devia ter feito
isso antes de partir.
---
E nossos amores?
---
Tenho Nina, mas ela certamente também já me esqueceu.
---
Então tinha.Nina deve ser linda.
---
Nunca teremos alguém que realmente nos ame. Mas eu, Lauro, te amo muito.
E dou Graça a Deus por tê-lo.
---
Aluga um apartamento próximo da Paulista?
---
Sim, quero alugar um imóvel nos arredores da Paulista. E quando eu voltar
para Londres, quero ter certeza de que você irá pagar o condomínio
e o aluguel direitinho.
---
Estou mal, Lauro. Saulo me deixou, me deu um pé na bunda, foi sacana. FOI
SACANA. Preciso dele, eu preciso dele mais do que de você, desculpa, mas
é isso.
---
Não entendo como você pôde ser tão vulnerável.
---
Eu queria casar com ele.
---
Você está delirando. Ele não gostou de você, enganou-º
Você também deve tê-lo enganado e não tem consciência
disso. Entrou em uma festa que não devia, entrou de mentira e o conheceu.
Entrou em um mundo que não era céu e roubou um beijo, um corpo,
um homem que não era para ser seu. Agora, se o destino realmente o pôs
no seu caminho, se esse amor estava escrito nas estrelas e não deu certo,
então sinto muito. Mas oxalá você tenha feito o seu melhor,
irmão.
---
Não sei se fiz.
---
Até os trinta esse tipo de relacionamento dá certo, mas depois disso
a gente envelhece e os homens são rigorosos: querem cabelo, músculos,
um corpo delgado e sem gordura. Mas você parece bem conservado. Está
com cara de vinte e seis.
---
Ah, tá bom.
---
É sim. Bom, antes de acender um cigarro, quero convidá-lo para almoçar.
De agora em diante não nos desgrudaremos. Venha morar no hotel junto comigo
a partir de hoje.
---
Continuo tabagista, Lauro, assim como você.
---
Que pouca vergonha a nossa. Faltam dois dias para o ano-novo. É uma boa
data para parar de fumar.
---
E você ainda liga para essas datas?. Normalmente durmo. Faz dois anos que
não te vejo e sempre quando é ano-novo vou dormir. Só não
suporto os fogos de artifício. Até tentei entrar em um evento no
reveillon do ano passado, mas me barraram. A população desconhecida
está se armando de razão a cada minuto, e os psiquiatras são
verdadeiros aliados dela.
---
Você ficou esquizofrênico, Oscar? Nós precisamos de gente,
pelo menos é o que dizem.
---
Estou com fome. Mas só vou comer uma salada, pois para mim é muito
difícil comer em restaurantes. Sou vegan, quase frutífero.
---
Que bobagem, qualquer hora desmaia aí e...bom, quero lhe confessar que
também sou meio vegan. Ainda estou no octolactovegetarianismo.
---
Sei que ainda vou ver Saulo transando com alguém.
---
Deixe Saulo em paz ou então o mate. Apaixone-se por outra pessoa.
---
Não dá. Já tentei, mas esses intentos não deram certo.
Só gastei dinheiro à toa indo a boates onde ninguém me olha.
Sei que o repugno.
No
restaurante, ambos os dois comeram a mesma coisa: salada de entrada, arroz, feijão
e batatas fritas.
---
Você viu que garçom bonito? Parece-se um pouco com Saulo.
---.
Aliás, por que você não faz um curso de garçom em vez
de ficar trabalhando nesses birôs da vida? Estou certo de que ganharia mais.
Você devia saber, não é meu irmão, que trabalhando
como digitador você jamais irá para frente. Olhe só eu em
Londres: trabalho como auditor em uma empresa de canetas; de certa forma dei certo.
Chego sempre atrasado, chego a hora que quero, e estou terminado o meu curso de
jornalismo.Talvez perca o primeiro semestre, mas como a Faculdade é paga,
acredito que não haverá problemas. Dinheiro é poder.
Jamais
vi gêmeos tão encantadores como Oscar e Lauro. Nessas investigações
sobre a raça humana, confesso que as pessoas bissexuais sempre me atraíram.
Marlon Menezes, o recepcionista do Hotel Invocação do Mar, por exemplo,
era um tipo bem másculo quando atendeu Lauro naquele final de ano. Com
o tempo, depois de uns quinze ou vinte anos, foi definhando, mas se recusava a
ir a um médico, não cria que tinha alguma doença; cria apenas
que estava emagrecendo devido à mudança de alimentação.
Lauro
chegou ao Hotel por volta de uma hora de uma manhã chuvosa, e Marlon sentiu
por ele um desejo que o enojava: o desejo de possuir um homem. O recepcionista
sabia muito bem que os homossexuais dariam o mundo por ele. E quando Lauro deixou
a porta do quarto aberta, deitado de bruços sobre a cama de casal redonda,
Marlon sentiu-se realizado, sentiu que era chegada a hora de mais uma vez se satisfazer
sexualmente com um senhor. Olhou para aquela bunda não muito trabalhada,
mas atraente, e após alguns segundos, sem resistir, já passava a
mão nela, já a alisava, massageava-a. Antes do coito pôs-se
mesmo a lambê-la. Chegou em casa por volta das sete da manhã. A filha
de oito anos, Sarah, estava brincando de boneca, e a esposa, Norma, preparava
o jantar para o marido. Norma era uma negra de cinquenta anos que aparentava ter
vinte e cinco. Viera para São Paulo do sertão e conhecera Marlon
em uma gafieira no Tatuapé.
---
Oi, bem, senta aí que vou te servir. Acabei de me maquiar e estou saindo.
---
Oi. Hoje tem abrobinha de novo, dona sertaneja?
---
Hoje tem carne de porco. Bisteca com limão, arroz e feijão. Não
é bom comer muito antes de dormir, hein. Eu sempre te digo isso.
---
Não vou comer muito. E só irei dormir daqui umas três horas.
---
Marlon, deixa eu te ver. Nossa, que cara de felicidade.
---
Eu?
---
É, você está com as rugas do riso inchadas. O que o fez rir
tanto ontem à noite? Não foram aquelas mulatas da Lapa não,
foram?
---
Tenho que sorrir o tempo todo, você sabe. E ontem, um hóspede me
contou umas piadas...eu não as achei engraçadas, mas tive de rir.
Sabe quando você ri forçado só para agradar ou puxar o saco
de alguém importante?
---
Não, não sei porque não rio forçado. Mas quem era
a tal pessoa importante? Um chefe de estado?
---
Não, claro que não. Alguém com grana, muita grana e que deu
certo na vida.
---
Sei.
Marlon
levantou-se da cadeira, beijou a filha e foi ler um livro no quarto. Na cama,
ouviu a mulher lhe dizer um tchau antes de sair para trabalhar como empregada
doméstica, levando a filha para uma creche, e a porta se fechando. Começou
a ter os seus terríveis delírios: um enxame de abelhas entrou pelas
janelas e em espiral foram entrando no seu umbigo, uma a uma. Ele, então,
berrou o mais alto que pôde, mas nenhum dos vizinhos apareceu para acudí-lo,
pois já estavam acostumados com o velho Marlon, homem cheio de esquisitices,
másculo mas afeminado ao se irritar. Um desses vizinhos, um solteirão
de mais de quarenta anos, aposentado, Cid Deo, nas manhãs em que ouvia
Marlon gemendo ou gritando, bufava. Ligava o televisor e bufava. Não tinha
forças para sair de casa. Morava sozinho e tinha o hábito de fumar
uns dois maços de cigarro por dia. Era tido como esquizofrênico.
A teoria endógena dizia que o esquizofrênico deveria ficar em completo
isolamento para não passar a doença para outras pessoas. E era nessa
teoria endógena que Cid acreditava, tanto que evitava sair para que ninguém
pegasse esquizofrenia. Ele sabia que o cigarro o faria futuramente sofrer, hajam
vista as campanhas anti-tabagistas que eram deveras chocante. Tinha um metro e
oitenta, ascendência italiana, e se incomodava muito quando era chamado
de senhor. Mas era fastidioso dizer às pessoas que lhe chamavam de senhor
que o Senhor estava no céu. Umas ficavam iradas, outras riam. Sim, ele
tinha que admitir que era um senhor e ponto final. O que faria amanhã?
Pensava todas as manhãs em suicídio. Ainda tinha pai e mãe,
mas não morava com eles, não só porque sua mãe talvez
fosse esquizofrenogênica, ou porque não tinha diálogo com
seu pai, mas também porque eles haviam empobrecido e se mudado para uma
casa menor, e os irmãos dele eram ciumentos. A população
desconhecida, gente estranha, essa sim parecia responsável por ele. Sim,
alguém era responsável por ele, tinha de haver alguém, ou
não tinha?
Uma
janela de luz formou-se defronte de Cid, e ele de súbito viu o invisível,
o que muitos dariam milhões para ver. Como podia?, pois pela lógica
pessoas com um vaso sujo, que tinham hábitos nocivos, não viam essas
coisas; o tabaco cegava experiências místicas. A janela abriu-se
e escancarada, ele pode ver do outro lado um jardim divino, com uma vegetação
indescritível; borboletas vermelhas com contornos dourados, fadas grávidas,
abelhas enormes num vai-e-vem festivo. A janela fechou-se e desapareceu no ar.
Cid soergueu-se lentamente e foi tomar um banho. Essa alucinação
me deixou bem, pensou. Alguns minutos depois, estava no ponto de ônibus;
ia para a cidade passear um pouco, arejar. Seu olhar de tempestade dissipara-se
na luz. Comprou roupas, descobriu-se magro, sorria para todo mundo. Entrou então
em uma loja de perfumes. Ali se ia toda sua economia, mas uma vez ao ano talvez
não fosse pecado gastar. Um perfume francês de marca desconhecida
o transportou à atmosfera parisiense. Sentiu que precisava se comunicar,
que precisava de alguém para conversar, que precisava amar, mas como, com
quem? De qualquer forma, puxou um pouco de conversa com a vendedora da perfumaria,
Silvia, uma mulher alta e loira, olhos verdes-azulados, que parecia compreendê-lo
mais do que os limites dele pudessem imaginar, o que talvez fosse raro; os olhos
dela eram como uma Taj-Mahal vista com lente de cristal azul.
---
Não sabia, estava indeciso quanto a qual levar, mas depois que a senhora
me mostrou este...
---
Senhora está na igreja, no céu. Não me compare à Grande
Mãe, meu querido.
---
Sabe que eu também tenho raiva quando se dirigem a mim por senhor? Mas
se eu for ficar falando para todo mundo que o Senhor está no céu,
vai ficar repetitivo, não vai? Vou ter de dizer isso à dezenas de
pessoas.
---
Você mora sozinho?
---
Essa é uma pergunta que sempre me fazem e que me incomoda. Moro, mas não
sei por quanto tempo. Parece sempre que ao perguntarem isso, depois perguntarão
se eu quero dividir o aluguel ou coisa parecida. É complicado. Não,
eu jamais vou querer dividir o aluguel, mesmo que não possa pagá-lo.
Se eu sair dali terei de ir para uma pensão, um quarto. E não haverá
mais fogão, nem geladeira, nem televisor. Não poderia alugar outro
porque meu nome é sujo. Esse apartamento foi uma benção de
Deus.
---
E você não tem namorada? Seria o ideal comprar um perfume com o intuito
de agradar a namorada, não acha?
---
Sim, mas não tenho. Estou meio gordinho, com uns quilinhos a mais. Irei
começar a fazer dieta amanhã.
---
Jura? Que bom. Eu não tenho...desculpa, você nem me perguntou isso
mas já estou falando. Eu não tenho namorado. Estou à procura
de um.
---
Pena que você não faça meu tipo..
---
Não faço o tipo de ninguém ultimamente.
---
Não fique ansiosa. Vai aparecer um namorado para você e uma namorada
para mim. Prefiro as baixinhas, sabe? Agora vou fazer aquela velha pergunta que
deixa as mulheres nervosas. Quantos anos você tem?
---
Ai, que pergunta chata. Você é bem chato, viu? Não vou falar
minha idade, querido.
---
Tudo bem. Eu vou indo, eu já vou saindo. Hoje estou contente. Vou fazer
dieta, esporte, largar o cigarro. Vou encontrar pessoas, se bem que prefiro atraí-las,
porém não tenho conhecimento de magia. Sou inculto. Tchau.
---
Vai pela sombra e obrigado.
Silvia
suspirou profundamente quando Cid partiu. Como era horrível para ela se
oferecer a um cliente. Abriu o caixa e pegou algum dinheiro para o almoço.
O que iria comer hoje? Hum. Pensou em uma salada, sim, uma bela salada com muitos
legumes: tomates enormes e bem frescos, alface, chuchu, cebola, cenoura crua,
vagem, couve-flor, etc. Isso a saciaria até a noite, quando iria para uma
festa com uma amiga, uma festa glamourosa... ...
Quando
Silvia e Sally chegaram à festa, ambas as duas vestidas de preto, na entrada
entregaram os convites à hostes e ficaram super-animadas ao espiarem a
bebida que serviam: viuve cliquot. Beber champanha francês durante toda
a noite era uma espécie de sonho de consumo de Silvia. Sentaram-se em um
sofá muito confortável e logo Silvia viu-se sozinha através
de um espelho. Olhou para um lado, para o outro e de súbito avistou um
homem de uns trinta anos que devia estar fitando-a a um bom tempo, um homem que
parecia maravilhoso de tão lindo, com traços angelicais, olhos azuis
da cor do céu da mais bela manhã que já houvera.
Paulo
Gabriel foi pego de surpresa quando viu que a moça o qual observava percebeu
o interesse dele. Sabia que olhar do jeito que olhava quase sempre madeficava
as partes de baixo das mulheres. Todavia, aquela moça era-lhe feia; alta
e loira, mas com cara de missa de feriado. Havia algo nela circunspecto. Desviou
o olhar, levantou-se e foi até o bar pedir mais um uísque. Não
gostava de uísque, mas aquele da festa era envelhecido dezoito anos, o
que talvez fosse garantia de que não vomitasse. De súbito, saiu
daquele lugar, estava enfastiado. Esperou o carro como quem espera apaixonado
uma noiva. Olhou para o lado, languidamente, e viu um rapaz de uns trinta e cinco
ou quarenta anos, um rapaz até que bonito, mas calvo, que não parecia
esperar carro nenhum, mas alguém sair da festa.
---
Noite estranha, não?
---
É uma noite como outra qualquer, pelo menos para mim.
---
Qual seu nome?
---
Lauro, e o seu?
---
Paulo Gabriel. Sou arquiteto. Fui convidado para esta festa e achei que iria encontrar
muitos amigos, mas todos me são desconhecidos. Difícil isso, pois
nesse meio as pessoas se conhecem. Talvez tenha vindo gente de outros Estados.
E aí, gostou das decorações, dos estilos?
---
Não. Na verdade vim acompanhar meu irmão, que está lá
dentro se embriagando.
---
Ele é arquiteto?
---
Não...é...ele não é nada, é só um homossexual.
---
O quê?
---
Senhor, desculpe-me mas não vivo de mentiras. Meu irmão é
um penetra. Vim de Londres recentemente, sabe, para ajudá-lo porque ele
estava passando por uma crise. Larguei tudo, desesperado. Nós somos gêmeos
idênticos, mas diferentes por dentro.
---
Deixe-o aí e venha comigo. Preciso de companhia. Você me pareceu
bastante confiável. E olha que tenho uma ótima intuição.
---
Coisa que eu queria ter também, queria muito. Mas vivo como uma barata
tonta, ora para um lado, ora para outro, indeciso.
---
Ora, desenvolva sua intuição.
---
Ah não, com isso já se nasce. Sinto, mas convite fica para uma próxima.
Quer me deixar seu cartão? Vou dizendo logo que não sou ninguém;
estou de licença de uma firma lá de Londres. Vim só para
ajudar meu irmão, não quero me envolver com ninguém. Mas...mas
iríamos para onde, para um hotel?
---
Sim, e o que há de mal em irmos para um hotel?
---
Eu...eu...vou aceitar vai, eu acho isso muito excitante e...gosto de pessoas cultas
como você.
---
E?
---
Não me considero gay.
---
Pensei também em um hotel, que coincidência! Mas não para
fazermos amor, pois também curto mulher, e sim para conversármos.
Não existe mais essa; ninguém mais vê maldade em dois homens
entrando juntos em um hotel.
---
Mas, Paulo, diga-me. Como faço para desenvolver a intuição?
---
Procure ser sempre intenso, sentir as coisas intensamente, tudo, usar os cinco
sentidos de uma maneira intensa. E não só, amar e amar e amar.
---
Amo demais Oscar. Se não o amasse não estaria aqui. Ele apaixonou-se
por um tal de Saulo e esse rapaz é mais novo do que ele, não quer
compromisso.
---
O que esse Saulo faz?
---
Pelo que sei é um estilista bem conceituado. Mas já está
em outra ou está sozinho, vai saber. Deve ser um desses seres que jamais
é descartado e se o é, somente ri. Oscar foi com muita sede ao pote.
Esse tipo de atração de fatal é comum, coisa de uma noite,
sabe como é.
---
É dificil. Posso imaginar como seu irmão se sente. O carro chegou.
Vamos?
---
Por favor, aguarde-me um instantinho, vou avisar meu irmão.
---
Ok.
Paulo
Gabriel esperou só dez minutos e resolveu partir. Lauro de repente não
lhe interessava mais. Aqueles cabelos vermelhos, aquela bandeira toda o incomodava.
E o que diriam os mexeriqueiros? Não, era melhor desistir. Foi caçar
gente de calçada. Logo parou o carro em uma esquina e fez um travesti entrar.
Era Stephanie, trinta e um anos, morena-jambo, vestida com um falso prada e louca
para transar. Sim, ela não transava só profissionalmente, mas também
por prazer.
Stephanie
na verdade se chamava Mauro e costumava fazer programas com pessoas da alta sociedade
ali pelos lados do Ibirapuera. Cobrava cem dólares por hora, pois além
de bonita era bem-dotada. De madrugada, logo que Paulo a deixou em uma rua dos
jardins, resolveu ir para um restaurante da elite. Ficou muito tempo no balcão
pensando na vida. Como podia um homem daqueles como Paulo ser solitário,
pagar alguém para transar? Essas indagações sempre lhe vinham
à mente. Mas isso não importava muito; o que importava era a bolsa
cheia de grana, era estar endinheirada e se sentir poderosa. Achava que a vida
não valia nada. Pensara em se mudar para Miami, ou quem sabe pudesse tornar-se
uma princesa em França. Estava cheia de ouvir falar na Europa e jamais
estivera lá. Saiu do restaurante por volta das vinte e uma. Assim no final
de ano, a cidade ficava vazia, a clientela escapulia para os mares e as montanhas.
Andou por uma rua deserta e percebeu que três homens a seguiam. Três.
Excitou-se. Olhou para trás e notou que eles estava armados com porretes.
Não acreditou. Saiu correndo e entrou em um beco. Era o fim. Um dos homens
que a atacaram, Rodi, pertencia a um grupo terrorista famoso.
Não
sei, mas quanto mais observo os humanos, mais rio deles. E não é
por maldade, é porque os acho engraçados. Sthepanie que era Mauro
deixou de ser Sthepanie para se tornar novamente Mauro, que agora está
estendido no asfalto, ensanguentado. Morto, pra ser mais exato. Talvez não
fique muito tempo no purgatório, pois notei uma certa pureza nele.
Rodi,
esse era o cara. Pugilista e drogado, terrorista e estuprador; agora, pela primeira
vez, um assassino a sangue frio. Ele divertiu-se ao obrigar as lavas vermelhas
e quentes saírem do vulcão, lavas que antes eram um gás.
Mas prometeu nunca mais fazer isso, prometeu a alguém dentro dele mesmo
nunca mais assassinar uma pessoa. No outro dia, já não comeu animais,
nem ovos, nem leites, nem méis; comeu frutas e rogou a um santo que pedisse
ao Supremo que lhe ajudasse a ser santo, mesmo tendo sido um matador. Ah, mas
isso já era coisa antiga, vinte e quatro horas tornaram-se séculos.
Aqui se fazia e não se pagava; pagava-se no inferno, e até sua morte
chegar eram outros quinhentos, outros mil. Acendeu um cigarro riscando um fósforo
no concreto do quarto, e depois ciciou uma praga para o maldito cigarro. Dormiu
após a bomba explodir dentro dele e tudo ir dar contra a parede. Era um
gorila, um gorila de aço. Sonhou com Oliver, o menino de uns trinta anos
que morava em uma casa contígua a sua, menino quase menina, que não
tinha os braços fortes, mas de homem somente uma masculinidade impressiva
no olhar. Oliver, no sonho, era o santo da igreja, e fitava-o com um sorriso devasso
que somava em potência o sorriso de cem prostitutas. No dia seguinte, Oliver
não estava mais no sonho de Rodi, jamais esteve, mas andando pelas ruas
pouco movimentadas do bairro com bermudão e camiseta. Não fazia
nada o dia todo, morava com a avó em uma edícula. Diziam que ele
era psicótico, mas tanta gente é e trabalha normalmente! Voltou
para casa ao meio-dia e meia, e viu que o portão do vizinho, Rodi, ficara
aberto. Resolveu penetrar no quintal daquela residência para furtar algumas
maçãs, como por vezes fazia. Percebeu que a porta da entrada principal
também ficara aberta a noite toda, com certeza. A casa fora assaltada?
Entrou e viu o corpo de Rodi estendido no tapete, corpo que logo se mexeu.
---
O que faz aqui, Oliver?
---
Vi a porta aberta e pensei que tivesse havido algum assalto. Faz tempo que não
o vejo. Por onde anda, Rodi?
---
Não é de seu interesse, menino. Agora saia daqui senão sou
capaz de cometer um loucura.
---
Que loucura? Credo, seu marginal. Está pensando em me matar? Eu não
fiz nada, eu...
---
Você ia furtar minhas maçãs.
---
Sim, e segundo Zaratrusta, quem rouba o pobre empresta a Deus. Você me quer,
não é? Quer me fazer sua mulherzinha, eu sei muito bem. Mas não
vai conseguir. Tenho namorada. E ela é um trilhão de vezes mais
bonita do que você.
---
Te dou carinho.
---
Não, não quero. Mas...
---
Eu sei que você é carente. Daqui a alguns anos estará velho
e talvez calvo como seu avô que se foi. Ninguém vai te querer.
---
Mas tenho namorada, tenho namorada!
---
E o que você faz com ela?
---
Ué, sexo!
---
Você não ama ninguém, garoto. Você é um doente.
Quando começar a sofrer rejeições em cima de rejeições
não vai compreender o porquê e aí poderá se matar.
---
Mas, cruz credo. Vou chamar a vovó pra te levar pra igreja. Você
é mesmo um marginal. Se a polícia te pega, seu pilantra, ela acaba
com sua raça.
---
Tenho dinheiro, posso subornar quem eu quiser.
---
Não, não pode, não a mim. Vou-me embora. Vovó está
me esperando para o almoço.
Oliver
saiu correndo da casa do vizinho e Dona Princesa estava lhe esperando, aflita.
Desde que perdera os dois filhos não era mais a mesma. Estava muito cansada,
cansada de viver sempre na mesma situação. Oliver era uma criança
em um corpo quase adulto, um corpo subdesenvolvido; uma criança que precisava
crescer, mourejar, tornar-se independente. "Oliver me deixa exausta. Outro
dia mesmo, a polícia queria fichá-lo porque roubara uma lata de
cerveja de um supermercado. Disse-lhes que ele era doente, que ficara doente desde
que seus pais morreram em um acidente de carro, há onze anos. Não
aguento mais fumar, talvez eu morra também logo. Para o céu não
irei. Já estamos no segundo dia do ano novo. Se Ernesto, meu esposo, estivesse
vivo! Na verdade, ele nunca fora meu esposo, não nos casamos. Mas isso
já lhe contei tantas vezes, não é diário? Minha aposentadoria
não aumenta, só diminui e Oliver precisava de uns sapatos novos.
Quem sabe no brechó não há um bem novinho e limpinho para
ele? Mas agora é tarde Esse mundo é cão. A aposentadoria
que Ernesto me deixou mal dá pra alimentação. Ontem, Oliver
me disse que iria partir para o litoral, que não iria mais querer-me como
avó. Já tentei levá-lo à igreja, mas ele não
aceita Jesus. Como é estranho esse meu neto! Preparou as trouxinhas. É,
morrerei sozinha e quiçá em um asilo. Mas não quero, tenho
de parar de fumar, arrumar saúde para ficar forte até o fim. Deus
está comigo. Oliver, Oliver, onde está você? Veio para o almoço
e se foi. Mais um ser amado que perco na vida. Que Deus me leve."
Diante
do mar, Oliver descobriu que se sentia mais calmo do que já era. Os cargueiros
no horizonte eram a coisa mais deslumbrante que já vira. Aquela vida chata
que tinha acabara. Rodi talvez estivesse consolando sua avó ou então
a matando. Chegou ao cais e avistou dois cargueiros atracados, um inglês
e outro francês. Optou pelo inglês, apesar de achar que não
tinha intuição, que iria se arrepender por não ter optado
pelo francês. "Estou no porão do navio. Aqui não tem
nada, somente batatas e baratas. É como nos filmes. Três dias se
passaram desde que a viagem começou e preciso me apresentar lá em
cima. Mas pelo que ouço os homens são violentos. Estou morrendo
de sede. Sinal de que pequei em algum momento, não sei. Vovó, ah
vovó, perdoe-me onde quer que a senhora esteja."
---
Eu estou aqui, meu querido neto, do seu lado, em espírito. Sei que você
pode me ouvir.
---
Vó, não acredito. Vó me tira daqui.
---
Esforce-se para levantar e ir até a superfície. Mostre-se aos homens.
Eles não te farão mal. Não são piratas, são
ingleses.
---
A senhora perdeu o corpo?
---
Não, olhe, este aqui tem mais luz, não estou bem?
---
A senhora não foi para o inferno, viu?
---
O inferno é aí onde você está, a Terra. Como eu queria
que você fosse feliz!
---
Mas vou ser.
---
Sua namoradinha e Rodi estão no meu velório. Também, só
eles.
---
E de que a senhora morreu?
---
De solidão.
---
Mas faz pouco tempo que parti.
---
Não importa o tempo, mas sim a intensidade. Me senti tão abandonada
que resolvi morrer.
---
Foi minha culpa.
---
Não, não foi. Eu estava preando-o. Sei que você é um
pássaro que necessita atirar-se na imensidão do azul, do universo.
Agora, adeus.
---
Adeus, Dona Princesa.
Oliver
chegou à Inglaterra vivo. Tornara-se um estivador. Seu nome incomum no
Brasil até que o ajudara. Foi em Londres, após três meses,
que encontrou outro emprego, o de garçom. Ralou muito até conseguir
fazer um pé de meia. Morava em uma pensão elegante, na pensão
da senhora Roosevelt. Lá também moravam outros rapazes, como Richard
e Peterson. Mas a afinidade maior ele tinha era com Lauro, outro brasileiro. A
senhora Roosevelt achava Oliver encantador. Ele tinha uma cara de doente, mas
isso o tornava um inglês típico. E além do mais, aprendera
o inglês com tanta facilidade e em tão pouco tempo que a assustara.
---
Oliver e Lauro, venham se sentar aqui ao meu lado. Estamos na primavera, não
estamos?
---
Senhora Roosevelt, estamos no outono.
---
Não fale uma bobagem dessas, menino. Isso, sente-se aí. Quando você
apareceu por aquela porta fiquei muito contente. Aquele seu irmão não
vale nada. Aliás, nem tive tempo de perguntar sobre ele. Está internado,
alguma coisa?
---
Está morando sozinho em um apartamento que aluguei na Bela Vista.
---
Oh, Bela Vista. É um bairro, é?
---
Sim, um bairro com uma vista muito agradável.
---
E Oscar está bem?
---
Não, ainda não. Ele foi descartado pelo namorado e...
---
Ele é afeminado? Pensei que havia sido descartado por uma mulher.
---
Sinto muito, senhora Roosevelt, mas ele é um pouco afeminado sim.
---
É o fim do mundo, uma aberração, mas sinto muito digo eu
por ele ter perdido o namorado. Foi bem-feito!
---
Na verdade Saulo era aspirante a namorado, mas no fim não quis nenhum compromisso.
---
E esse aspirante a namorado, esse tal de Saulo, era mais jovem?
---
Sim, uns dez quinze anos mais jovem.
---
É, mas aqui dentro, no coração, ele era mais velho, tenho
certeza. Seu irmão não vai crescer nunca, meu amigo. Por que não
o trouxe para cá? Não, melhor não ter trazido mesmo. Apesar
de os ingleses não serem muito preconceituosos, acredito que ele iria sofrer
também. Agora ele está lá, abandonado, morando pela primeira
vez sozinho em um apartamento. Pena que é alugado. Ele talvez não
terá forças para pagar as contas. Você não irá
sustentá-lo daqui, não vai?
---
A senhora nem o conhece. Ou será que agora o está conhecendo?
---
Não, não o conheço mas posso adivinhar quem ele é. ---
Em outras vidas também?
---
Vocês jovens acreditam nesse negócio de outras vidas? Isso é
uma bobagem. Quem você acha que foi, Lauro?
---
Tenho certeza de que vivi no período neolítico há uns sete
mil anos atrás.
---
Imaginativo, pois. Conte, conte-nos o que fazia, como era a sua vida?
---
Eu era um homem, agricultor. Vivia no Egito. Pedíamos sempre ao senhor
de Duat, o deus da morte, por uma excelente colheita...
Lilaz
vivia em uma cidade do Egito próximo ao rio Nilo. Seu esposo chamava-se
Amon. Eram bondosos e felizes, mormente quando a colheita prosperava. Em uma bela
manhã, quando a seca e fome assolavam por todos os cantos, Lilaz acordou
bem disposta e pôs-se a rogar ao deus dos mortos, o senhor de Duat, que
a chuva viesse logo, pois estavam todos famintos, e as sementes precisavam ser
germinadas. De súbito, um raio caiu sobre a região e começou
a chover. Lilaz e Amon se abraçaram. A chuva obviamente era indício
de que a colheita estava próxima, de que o senhor de Duat a apressaria.
Entraram na casa onde moravam e sentaram-se no chão, olhando-se fixamente.
Eles acreditavam que nas próximas vidas também estariam sempre juntos,
sempre de alguma forma ligados. Deram-se as mãos. A chuva lá fora
caia incessantemente. Era quase uma tempestade. Que benção dos céus!
Algumas cobras rodearam o casal e Lilaz pediu a elas que não se aproximassem
demais deles. Ficaram ambos assim, durante horas, durante todo o período
em que chovia. Até que Amon cortou as teias de aranha com uma faca logo
depois da estiagem.
---
Sei o que pensa agora, Lilaz. Sou otário, mas sei o que pensa. Você
quer um filho e quer que eu seja o pai dele.
---
Psiu! Ou, Amon, eu nem estava pensando nisso, estava pensando na colheita e no
ritual que iremos fazer após a colheita, que neste ano promete ser muito
vivo, muito cheio de felicidade, pelo menos para mim.
---
Os implementos ficaram lá fora tomando chuva e..
. ---
Os implementos são os deuses, Amon. Fique calmo, fique aqui comigo. Não
quero ter filhos e também creio que não possa tê-los. Estou
te vendo no futuro, em um futuro distante. Você e eu, gêmeos. Sim,
viremos gêmeos. ---
Grudados?
---
Ou, Amon, pare.Sinto que seremos gêmeos e do sexo masculino.
---
Você, a maior profetisa deste lugar, se disse isso, assim será. Eu
não iria querer me separar de você por um minuto sequer dentro da
eternidade.
---
Mas espere, Amon. Sinto que um abismo entre nós, conforme for passando
o tempo, criar-se-à. Um abismo que jamais será fechado. Mas hoje
ele ainda é pequeno...Não sei exatamente...
---
Que abismo é esse? Jamais haverá abismos entre nós, Lilaz.
Nós nos amamos muito. E além do mais, se houver um abismo, não
será entre nós.
Lilaz
saiu e foi correr sob chuva. Correu vários quilômetros até
achar o santuário. Despiu-se e entrou na gruta. Ali estava a imagem de
Ísis. Ela ajoelhou-se e esquentou-se um pouco no fogo eterno aceso sobre
a imensa rocha de água-marinha. Ísis se movia, não era simplesmente
uma imagem, era uma deusa. Por vezes diziam que ela costumava andar pela noite,
sempre gritando, chamando o marido, Osíris, cruelmente assassinado por
Set, irmão dele. Lilaz aproximou-se de Ísis e lhe beijou as mãos,
agradeceu-lhe pela fertilidade no mundo. Depois, saiu da gruta e correu sob a
chuva, berrando. Algumas flores, conforme ela ia passando, mostravam-lhe suas
vestimentas vermelhas e depois se fechavam. Mas, de súbito, homens com
cabeça de cachorro surgiram de uma nave-mãe e a raptaram. Lilaz
se debateu sem parar, mas não conseguiu fugir. Levaram-na para um lugar
ermo, uma casa em ruínas onde a relva era lilás. Lá, puseram-na
no chão e começaram a excitá-la. Claro que ela não
fez outra coisa a não ser tentar sentir prazer, e conseguiu. E quando acordou,
sentiu-se semeada como a terra. Ela sentiu-se a terra, sentiu que tinha o útero
da terra. Amon olhou-a chegando, incrédulo. Pelo amor de Osíris,
o que havia acontecido? E chorou amargamente. Lilaz lhe sorriu e desviou o olhar.
Não conseguiu olhar para a cara de Amon, talvez não conseguisse
fazer isso nunca mais, mas o amava. Ela voltou a tomar chuva, mas agora caia do
céu água em uma temperatura diferente, agradável. A túnica
esclerótica tomou conta dos olhos e Lilaz desmaiou. Após nove meses
nascia Vincent, um nome considerado esquisito por todos, mas era o nome que Lilaz
queria e pronto, um nome que lhe veio à mente do futuro.
---
Lilaz, o governo me disse que o menino terá de ser sacrificado para que
a próxima colheita vingue.
---
Terão de sacrificar a mim primeiro, Amon, nunca nosso filho.
---
Ele não é meu filho, Lilaz. E além do mais nem parece humano.
Tem algo de divino, de amedrontador, é filho dos deuses.
---
Por isso mesmo, se o governo fizer tal coisa, será amaldiçoado.
---
O governo sabe o que faz, Lilaz.
---
Vamos fugir.
---
Não Lilaz, seremos castigados. Deixe-os sacrificar Vincent, pelo bem da
nação.
---
Não.
Os
anos se passaram e Lilaz se tornou uma mulher amarga. A perda do filho fora traumática.
Estava ficando enrugada e não se achava mais bonita. Em uma noite, resolveu
que Amon deveria ir falar com a rainha, pois queria alguma coisa valiosa que indenizasse
a morte de Vincent. Amon compreendeu Lilaz e foi até a pirâmide onde
a rainha vivia. Os seguranças ainda bem que não o viram e ele subiu
a pirâmide até uma janela que dava para o quarto da soberana. Ela
viu através do espelho que alguém a observava. Soltou um grito abafado
pelo vento.
---
Você aqui, Amon? Um homem do bem aqui? É perigoso, pode morrer.
---
Vim porque Lilaz quer ser indenizada.
---
Sim, já estive pensando nisso, meu querido. Entre.
---
Ela não merecia, ela não merecia isso.
---
Ela mereceu, Amon. E alguém precisava ser sacrificado. Mas, de qualquer
forma, tome este colar, vale muito.
---
Pra quem iremos vender um colar da rainha? Acharão que foi roubado.
---
Oh, sim, tem razão. Então o que você quer? Vida boa como a
minha? Isso não posso oferecer a ninguém, a não ser para
meus namorados.
---
Eu posso ser seu namorado?
---
Até que você é interessante, Amon, mas vou pensar no seu caso.
Lilaz iria ficar morrendo de ciúmes se soubesse, acho ruim...
---
Ah, ela não se importaria. Ela mudou muito, rainha. Na verdade, sinto que
a repugno. Sai pelas matas quando fica irritada e volta feliz. Parece que vai
ser sempre assim.
---
Nossa. Psiu, ouça. O som de um cometa. Deve ser dos grandes, pois nunca
ouvi um som assim. Oh, estava certa. Venha até a janela, venha ver que
cometa lindo.
---
Não é um bom sinal.
---
Cale-se. Agora tire minha roupa, preciso deitar-me. Se quiser ficar, tudo bem.
---
Fico.
Lilaz
saiu naquela noite para as matas e nem sentiu que Amon estava ausente. Olhou para
o interior da casa como se fosse a última vez que olhava para algo. Sentiu
saudades antes mesmo de partir. Livrar-se-ia finalmente de Amon e daquela vida
que levava, que não lhe era mais satisfatória. Precisava ir embora.
Amon compreenderia. Ele sempre seria compreensível por toda a eternidade,
ela sabia.
---
Mas me diga uma coisa, Lauro, você então foi Amon?
---
Sim, sei que fui.
---
Mas afinal, a rainha lhe deu ou não a tal indenização?
---
Ela me deu uma vida boa.
---
Nunca vi uma pessoa assim imaginativa. Pior que a qualidade da imaginação
não parece ser razoável. Mas pensei que você fosse católico,
que você não acreditasse nessas bruxarias que se chamam outras vidas.
---
Sei que depois do período neolítico tive mais algumas vidas, mas...prefiro
não contá-las.
---
Só essa aí já me choca. É pura invenção
dessa sua cabecinha, seu malandrinho. Vou me arrumar para deitar. Essa rainha
egípcia devia ser uma graça, não?, pra te atrair.Tenham uma
boa noite. E Oliver, por que você está aí tão quietinho?
Perdeu a língua? Vai se deitar, vai.
---
Não quero, vovó, estou com medo. Vou dormir na cama de Lauro.
---
Vó?, não sou sua avó.Dois marmanjos dormindo em uma cama
de solteiro? Ah se eu não fosse santa! Está certo, está certo,
isto é, se Lauro concordar, mas eu sei, eu sei que concorda. Agora vão,
chispem daí. Perdoa meus pecados, oh Senhor!
---
Boa noite!, bradaram Oliver e Lauro, em coro.
Dormiram
os dois abraçadinhos, e para Lauro, Oliver era um ser raro de se encontrar,
um ser que não lhe provocava calor, um ser úmido e frio. Para Oliver,
que agora dormia, Lauro o protegia do mundo-buldogue. Lauro ficou de olhos abertos
e pensou no irmão. Por que resolveram inverter os papéis? Se a senhora
Roosevelt soubesse que conversou a noite inteira com Oscar, teria um ataque. Não
sentia mais que se chamava Oscar, era bom ser chamado de Lauro. Pegou a mão
de Oliver e a beijou. Como estaria Oscar, ou melhor, o verdadeiro Lauro, no momento,
vivendo naquele apartamento da Bela Vista, tendo deixado namorada aqui em Londres,
emprego, amigos? Isso não importava muito. A vida do irmão em Londres
era uma delícia. Precisava de um emprego, pois de auditoria não
entendia nada, fora demitido. Passara a escrever poesias. A senhora Roosevelt
estava preocupada. Afinal, não poderia manter Lauro em sua pensão
caso ele não pagasse, mesmo sendo amiga dele. Mas pelo que o jovem de quarenta
anos lhe dissera, o dinheiro do fundo de garantia fora aplicado e rendia juros.
Então, tudo bem, pensou ela, bocejando e em seguida pegando no sono.
Lauro
e Oscar. Gosto muito deles, por isso os observo tanto. Mas como estará
o verdadeiro Lauro neste instante? Um segundo e já o fito, chorando em
seu apartamento, solitário, sem saber o que fazer, vivendo a mentira do
irmão. Desde a pré-história admiro esses dois.
---
Alô, quem fala?
---
É Saulo.
---
Como achou meu número de celular, senhor Saulo?
---
Venha até minha casa.
---
Como? Nem o conheço. Quem me garante que não é um trote?
---
Tudo bem, Oscar.
Oscar
resolveu sair naquela noite de lua azul. Estava se sentindo sozinho, mas fazer
o quê? Olhavam-no como um...aliás, nem o olhavam, evitavam encontrar
seu olhar. Sentia-se um lixo. Faltavam dois minutos para a meia-noite. Era finalmente
quase Domingo, um dia solar. Queria encontrar agora as paixões do futuro,
se é que haveria paixões no futuro. Andou pela São Paulo
deserta e repleta de mendigos, acendeu um cigarro e olhou para o céu nada
estrelado. Garoava. Uma menina veio lhe pedir umas moedas, mas ele disse não,
sentindo-se culpado logo em seguida; mas afinal, dar esmola ou não dar
lhe trazia de qualquer jeito culpa. A menina se chamava Paola, vivia na favela
e sempre que podia vinha até o centro em busca de umas moedas. Estava juntando
dinheiro, queria ser advogada. Depois que aquele homem nojento lhe dissera não,
ficou com uma terrível vontade de se prostituir. Parou em uma esquina e
pôs os seios fartos à mostra. Um carro chique parou. Ela entrou sem
dizer nada. O homem do carro se apresentou como Paulo, Paulo Gabriel.
---
Você tem família?
---
Não, moro com uma gangue na favela.
---
Gangue, que horror!
---
Estou juntando dinheiro para ser advogada.
---
Há faculdades que não são pagas. Você estuda?
---
Não, nunca fui à escola.
---
Quer trabalhar para mim?
---
Mas o senhor nem me conhece.
---
Eu tenho uma ótima intuição, jamais me engano. Você
irá trabalhar para mim de empregadinha, aceita?
---
Aceito. Mas estou assustada por alguém me tratar tão bem. O senhor
é um anjo ou então uma pessoa louca.
Saulo
era belíssimo. Foi essa a impressão que Oscar teve quando o viu
na porta do prédio. E era rico e famoso. O irmão tivera bom gosto.
Mas o que fazia aquele deus ali, por que estaria se rebaixando novamente? Saulo
apenas lhe sorriu e sussurou um sinto muito, com aquela boca que remetia a paraísos
extintos. Oscar sentiu o quanto o irmão havia sofrido e quis se vingar.
Iria se passar pelo verdadeiro Oscar.
---
Você por aqui, Saulo? Há quanto tempo! Nem acredito...pois você
fugiu de mim como os demônios fogem das cruzes mais sacras!
---
Eu sinto muito, sinto muito. Meu namorado está descendo, ele mora nesse
prédio.
---
Coincidência chata para você, não é?
---
Você é um homossexual.
---
E você é o quê?
---
Eu sou, mas sou por opção. Agora vai, vaza. Me dá licença
que tenho mais o que fazer. Estou procurando um apartamento para alugar neste
prédio. Quem sabe depois que você for despejado eu...
---
Eu não ouvi isso, amor, ouvi?
---
Não, você teve uma alucinação.
---
Posso te beijar.
---
Na boca nunca; essa sua boca sem-vergonha me enoja. Quem sabe eu te beijo quando
você estiver num ataúde vagabundo como você.
---
Te abraçar, pelo menos, posso? Você vai acabar virando homem. É
um desperdício.
---
Eu lhe diria o mesmo não fosse sua idade.
---
Eu continuo apaixonado, mas você nunca soube, eu não te contei. Até
logo.
---
Tchau, nem pra amizade.
Não,
não seria possível qualquer tipo de vingança. Saulo era jovem
ainda, tinha uma vida pela frente. E como era um anjo, jamais envelheceria. Oscar
não entendia o porquê de uma população desconhecida
de repente participar dessa história. Segundo o irmão, o Oscar real,
gente estranha começara a destratá-lo nas ruas, desviar sua atenção
para o fato de que ele era afeminado. "Essa bichinha, esse Oscar, é
um problema", etc. Não havia dado certo esse romance, e isso satisfizera
o populacho. A mídia mais dia menos dia soltaria algumas fotos do famoso
Saulo, fotos em que ele apareceria com certeza sorridente. Lauro, agora Oscar,
odiou a própria boca por uma fração de segundo e sentiu que
perderia os dentes, teria câncer, algo assim. Subiu até o apartamento
e voltou a ler o diário do irmão, agora Lauro.
"Uma
paixão não é imedicável: uma aspirina pode aliviá-la.
Saulo me deixou assim como os outros: sem dar muitas explicações.
Mas pelo menos foi o mais claro até agora, não com palavras. Não
me sinto macho quando digo estas coisas. Devo ser um machista, todavia. Lauro
está na Inglaterra e está recebendo muito dinheiro. Vai me ajudar,
tenho certeza. A não ser que torre a grana, algo bem dele. Quizeram me
internar esta manhã por que tive piti. Todo mundo no prédio ouviu
o que eu disse a respeito de Saulo. Mas já passou. Quando eu tiver sessenta
anos, Saulo terá cinquenta. Como a vida dele é linda! Estou com
inveja, estou sendo egoísta querendo-o só para mim. Sei que ainda
vou sofrer por causa dele, quando o ver na tv, em alguma revista, em algum jornal,na
internet, ou mesmo pessoalmente. Vou ter ciúmes, tenho certeza. Talvez
ele me bata ou se vingue; ele irá me deixar com raiva.Talvez ele tenha
me deletado da sua mente. Não tenho uma personalidade atraente. As outras
pessoas, as que deram certo, essas sim são explosivas. Sou desprezível.
Ps - Ah, diário, estou escrevendo alguns poemas. Naturalmente escrevo
mal, mas estou tentando. Ninguém talvez mereça. Afora o esteriótipo
pouco aceitável, também sou medíocre."
Na
Europa, Lauro se despediu de Oliver e lhe disse que não ia querer naquela
noite dividir cama com ninguém, ainda mais com um menino mimado pela avó.
Oliver não se importou e entrou no seu exíguo quartinho rapidamente.
Resolveu que não seria mais um menino, que iria desenvolver o seu físico,
a sua mente, o seu espírito. Dormiu profundamente em questão de
segundos. Lauro fez um roteiro das agências de empregos onde iria bater
e depois resolveu escrever uma poesia. Não era um bom poeta, mas escrever
pelo menos o acalmava. Achava-se lento para aprender, para reter o vocabulário
de qualquer língua. Não tomou seus remédios e por um momento
pensou que poderia causar pânico nas pessoas, já que por vezes fazia
coisas sem pensar, coisas que o deixavam com uma superculpa; era um inconsequente
e um irresponsável.
Furacão
solapa o dia, Domingo sem sol , doente, Gato negro que não mia, Do
mar a onda está ausente.
Vestido
da flor rasgado, Esperança em mim, pra quê? Não me olham
nem de lado, Ninguém me olha nem me vê.
Transmutei
o medo em sexo, A paixão em vil estima, Algo simples em complexo, O
abismo no lá em cima.
O
dia começou mal. A senhora Roosevelt acordou a todos como de costume, às
seis da manhã, mas Lauro recusou-se a levantar. Disse à mulher que
havia pago o aluguel e que tinha direito de acordar quando bem quizesse. As pensões
eram assim, qualquer pensão, em qualquer lugar do mundo. Mesmo amuado,
Lauro se levantou e ficou na fila para o chuveiro. Como sempre levantava apertado
para urinar, acabava mijando na pequena pia do quarto. Achava que as pessoas em
geral não levantavam apertadas ou tinham um pacto amigável com suas
bexigas. Saiu da pensão de paletó e calça jeans e se recusou
a tomar café. Oliver foi com ele; ambos gostavam de andar juntos. De noite
Oliver trabalhava de garçom e chegava em casa por volta da uma da manhã.
Foram andar por uma Londres desconhecida e monótona.
---
Oliver, que tal nos mudarmos para França. Dizem que lá as coisas
são diferentes.
---
Para quê, amigo. Vejo que a Europa é uma só.
---
E eu vou arranjar emprego de quê, me diga?
---
De traficante.
---
Nem pra isso vão me querer. Olhe, chegamos em uma agência de empregos.
Antes de eu entrar, vamos nos despedir. Nós podíamos alugar um apartamento
aqui em Londres, só nós dois. Seria o máximo.
---
Não sei, acho que melhor seria eu voltar para o Brasil. Quanto a você
não. Apesar da idade, com essa carinha pode ter cem namorados.
---
Você não está pensando que sou gay, está?
---
Eu tenho certeza. Esse seu jeitinho não engana ninguém, Lauro.
---
É, meu caro, precisamos ir ver algumas garotas. As pagas são as
mais fáceis, mas e dinheiro?
---
Pois é, e aqui elas devem cobrar em euros.
---
Faz o seguinte. Vai pra casa dormir mais um pouco e amanhã a gente conversa
com mais calma.
---
Está bem. Até logo, amigo.
Oliver
foi andando devagar, estava meio tonto. Entrou em um bar e no balcão, pediu
um gim. Bebeu tanto que na saída resfolegou um vômito verde no meio-fio.
Alguém o cutucou nas costas e se apresentou como Walter.
---
Garoto, acompanhe-me. Sou médico e quero ajudá-lo.
---
Não, acredito. Cof, cof. Um inglês querendo me ajudar? --- Vamos
até o meu consultório.
Oliver
relutou um pouco, mas cedeu ao pedido. Depois de uns trinta minutos ambos os dois
estavam em um consultório de paredes flamingo. O ar parecia-lhe rarear,
as janelas estavam fechadas. O médico injetou-lhe uma dose de vitamina
b12, pois o achou anêmico. Depois mandou que se deitasse em um divã.
Dr. Paul era um homem alto e esguio, tinha um corpo atlético e as mãos
grandes e trêmulas. Oliver lenvantou-se em um sobressalto e lhe pediu água;
bebeu-a animalescamente. Olhou para o médico e disse:
---
Eu não sei beijar. A única namorada que tive não gostava
de beijar. Ela queria somente sexo. Gostaria que alguém me ensinasse...
---
Você quer que eu o ensine a beijar?
---
Sim.
---
Mas você e eu somos homens até segunda ordem. Se você fosse
uma mocinha eu iria pensar no seu caso. Mas vejo que é um marmanjo. Você
não se envergonha de dizer tal estupidez? Olha que posso processá-lo
por assédio, seu vagabundo. Pegue um bife macio e vá mordiscando.
---
Não como carne. Sou vegatariano.
---
Outra estupidez. Agora saia, saia do meu consultório senão eu chamo
a polícia. Bastardo. Aposto que é português.
---
Por favor, dê-me um atestado pra eu não precisar trabalhar hoje.
---
Esses meninos. Está bem.
Oliver
esperou Lauro chegar para lhe contar seu dia estranho, até sobre o beijo
que não roubou. Mas quem acabou contando coisas que não devia foi
Lauro.
---
Sabe Oliver, vou lhe contar um segredo, mas terá de ficar somente entre
nós.
---
Guardo muito bem segredos, pelo que sei.
---
Não sou Lauro. Meu nome verdadeiro é Oscar. Lauro é meu irmão
gêmeo. Trocamos de identidade.
---
Credo, mas por quê?
---
Lauro não quis me explicar os motivos, mas eu topei. Talvez ele quizesse
que eu mudasse de ares, para esquecer Saulo, esquecer um relacionamento estranho
que tive e que se acabou sem mais nem menos. Eu quis me matar. Agora já
estou melhor, mas ainda penso em Saulo, mesmo o odiando um pouco.
---
Mas fale, como é que esse Saulo é?
---
Moreno, corpo atlético, no primeiro encontro um amor. Mas idependente do
primeiro encontro ele sempre será um amor. Não o vejo faz mais de
um cinco meses. Merda. Mas posso imaginar por que não deu certo. Foi a
população desconhecida.
---
O quê? Que idiotice pensar que foram pessoas desconhecidas que fizeram com
que a sua relação não desse certo! Só se...então
ele é da classe média-alta.
---
Eu passei máquina zero no cabelo e Saulo não gostou. A partir daí
começou a me dar um chega pra lá mais pesado. Mas sinto não
ter havido mais diálogo. Eu errei em alguma parte. Não tenho corpo
sarado, sou mais velho do que ele...
---
Chega, Oscar. Não tinha que dar certo. Pra que se martirizar assim? E além
do mais esse tipo de relação é condenado pelas religiões,
pelos médicos, até pelos da nova geração. Eles dizem
que é pecado, que traz sofrimento. Se bem que pra Saulo, que deve ter uma
vida mais ativa sexualmente, não foi tão difícil esquecê-lo.
Aposto que ele já nem se lembra de você. Parte para outra logo.
---
Como? Saulo foi a única pessoa que tomou a iniciativa comigo nesses anos
todos. Não haverá outra pessoa. Ele cristalizou por mim em uma única
noite. Trabalha muito, sua muito. Agora estou perdido, sei que irei passar fome,
que não irei arrumar emprego, que não conseguirei pagar minhas contas.
Odeio por vezes Saulo, mas ele não teve culpa, não agiu de má
fé. Apenas deixei de agradá-lo, deixei cair a máscara, entende?
---
Acho que eu me matava. Mas me conte como a população começou
a perseguí-lo.
---
Fiquei com aspecto feminino, de repente. Perdi o cabelo porque achei que minha
careca era charmosa. Mas não é. A população não
gostou. Via-se nos meus olhos que eu estava apaixonado por um homem.
---
Vai ver é isso. Mas por que você tenta racionalizar tudo? Tem coisas
que não precisam ter explicações. Deixa estar, amanhã
é um outro dia. Venha se deitar comigo. Pensei que você fosse homem,
daqueles de pegar muitas mulheres. Claro, você ficou chorando, com a carinha
inchada, queria o quê, que as pessoas te oferecessem colinho. Todos te acham
uma bichinha. Nem isso de colinho aconteceu com ele, meu caro, que tem mais cultura,
é mais bonito, mais simpático e mais viril. Você é
pobre, um miserável, um coitado.
---
Mas agora estou na Inglaterra. Meu Deus, estou na Inglaterra. Que massa!
---
Não, meu amigo. Você continua no Brasil. Só que se você
ficasse lá, talvez ele te procurasse.
---
Ele?Jamais. Minha vida é totalmente descartável pra ele, eu sou
descartável para ele. Nem se ele fumasse crack iria me procurar. Tudo acabou,
tudo acabou em risos e silêncio. Ele não tem tempo e tempo tem que
ser sempre dinheiro.
---
Talvez Saulo procure seu irmão pensando que ele é você.
---
Não há perigo, creio. Morri para Saulo. Minha vida é um lixo
perto da dele e da de milhões de pessoas.
---
E o que mais?
---
Quando passei a máquina zero, ele se recusou a beijar-me novamente. Devo
ter ficado com um aspecto horrível. Na certa agora ele está sozinho,
suando na cama com os meninos que pega na rua.
---
Sim, e você está mais sozinho ainda, sem ninguém, nem meninos.
Pena que você não é meu tipo e nem o dele. Aliás talvez
seja o dele, mas ele o queria mais gostoso.
---
Sim, também. Mas ele é uma pessoa volátil como todos os homens.
---
Não generalize assim, Lauro. É bom ser discreto para não
ser assassinado. Sua família sabe que você é assim?
---
Sim, minha família é meu irmão.
---
Todos nós temos um certo limite, e quando ultrapassamos esse limite nos
tornamos meio que ignorantes. Seria um limite de compreensão, eu acho.
---
Eu tenho meus limites. Mas creio que isso não envolva bens materiais. Estou
pensando em Lauro, ali no Brasil, sozinho, junto de meus amigos. Na certa ele
está trabalhando no boreau onde eu trabalhava.
---
Você trabalhava em um boreau?
---
Sim, em um boreau, e daí? Claro que eu sempre quis coisa melhor. Eu também
vendia planos de saúde, mas era péssimo em vendas, não me
esforçava muito. E nos birôs havia sempre alguém de uma forma
ou de outra se mostrando superior a mim, mostrando-me o que eu realmente era,
um vagabundo-afeminado. Ninguém me olhava na cara tampouco me cumprimentava;
mas a culpa por não cumprimentar alguém sempre recaia sobre mim.
---
Por que você não tenta vender planos de saúde aqui, neste
país de primeiro mundo?
---
É, ainda não pensei nisso.
---
Seria maravilhoso, mas você não domina bem a língua.
---
Já domino sim, e muito bem. Aprendo rápido, mais até que
você.
---
Oscar, será que o leitor deste livro está entendendo essas histórias?
Não sei, talvez confuso, pelo que sinto, esteja somente para o autor.
---
Eu não entendi o que você quis dizer, Oliver. Sinceramente, não
entendi. Só estou pensando em meu irmão, ali, talvez sem fazer nada,
tomando a vida de vadio e infeliz que eu tinha.
---
Eu posso vê-lo. Ele está no apartamento escrevendo. Ah, ele escreve
poemas também. O telefone tocou e ele está indo atender. É
uma tal de Rebecca.
---
Sim, Rebecca é minha amiga de festas.
---
E o que ele está dizendo para ela?
---
Ela diz: vamos sair hoje? Estou com uma vontade de sair! Mas não há
muita coisa. Há um jantar na Vila Olímpia, mas é muito longe
para irmos de ônibus. Que merda ser pobre, viu! Se eu fosse rica, pegava
um táxi e pronto. Ele diz: Ah, vamos de ônibus, vai; estou a fim
de me embebedar, de esquecer-me dessa minha vida que para muitos é um vidão.
---
Ah, ele está igualzinho a mim. Ela jamais irá saber que ele não
sou eu.
---
Ela diz: e como está no trabalho? Ele diz: está estranho, as pessoas
são estranhas, sinto-me inferior. Sinto-me como se não existisse.
Eles me acham um doente. Até falaram outro dia que eu era uma bichinha
doente, que me odiavam. Ela diz: não foi pra você. Você acha
que iriam falar uma coisa dessas com a pessoa estando ali do lado? Ela diz: Ninguém
é mau a esse ponto, Oscar. Você precisa ter mais educação.
Ele diz: estou com medo, Rebecca. A vida parece que vai terminar a qualquer momento.
Estou esperando a morte. Eu não tenho mesmo educação. As
pessoas sempre reclamam disso; sinal que me compreendem mais do que imagino. Não
sei que caminho tomar. Como vendedor de planos de saúde parece que não
sirvo. Fui até à corretora hoje e vi que a maioria tem lap-top,
que a maioria anda muito bem vestida. Eu jamais irei chegar nesse ponto. Se em
seis ou sete anos nessa área não cheguei, não chegarei mais.
Mas gosto de vender planos, de ser corretor.
---
Oliver, está bom, chega. Não quero mais saber dessas conversas de
Rebeca com Lauro. Quero deixar de fumar. Será que a populaça daqui
é como a de lá. Lá eu sentia que só fariam amizade
comigo se eu fosse lobotomizado ou algo assim, se eu perdesse uma perna, um braço...
---
Assim ia ser pior, Oscar. Você precisa mesmo parar de fumar. Vocês,
aliás. Seu irmão é um indefinido, de qualquer forma está
fodido. Você se definiu mas me parece um infeliz.
---
Esses desvios...Esses desvios um dia irão passar...
---
Não passarão, faz parte de você assim como você fazia
parte da vida do brasileiro. Era uma espécie de estimulador de compaixão.
Vamos nos deitar. Estou com sono. E hoje nem fui trabalhar. Na certa seu irmão,
pelos dados que obtive de você, deve estar ouvindo de gente desconhecida
que ele trabalha em um birô.
---
Ah, com certeza. Quando o assunto é miséria, caminhar para trás,
é com o brasileiro mesmo.
---
Você está querendo dizer que nunca teremos nada?
---
Não, por mais que lutem. Mas vocês não sabem lutar, devem
ter o Marte mal aspectado.
---
Ah, agora deu pra ser astrólogo?
---
Sim, eu sempre gostei de astrologia, e sempre li coisas sobre o assunto. Mas não
vou perguntar seu signo, pode ficar tranquilo. Sei que você é de
Capricórnio.
---
Capricorno, isso que você quis dizer?
---
E seu ascendente certamente é diferente de seu irmão gêmeo,
pois o ascendente muda a cada quatro minutos.
---
Não acredito nessas coisas, Oliver. Acho uma bobagem. Ter um Marte mal-aspectado
parece que restringe um pouco as coisas. Como li uma certa vez: as estrelas inclinam,
mas não determinam.
---
É, é, você tem razão, seu coitado. E aí, conseguiu
algum emprego?
---
Não, mas ficaram de me chamar. Em todos os empregos que tive sempre achei
que tinha problemas, que não gostavam de mim. Acho que é um pouco
de homofobia da parte deles, e essa homofobia tende a imperar no mundo todo.
---
Arrume uma namorada e acaba com essas difamações.
---
É, e eu queria ter um filho, mas talvez por um método mais puro,
ou seja, inseminação artificial.
---
Pois é, hoje em dia está tudo mais moderno. Pode-se prescindir do
ato sexual. Mas ter um filho para quê?
---
Sabe, desde de minha adolescência que sofro um pouco por causa das crianças,
ou melhor, por causa das mães delas, que vêem algo horrível
em mim. Não sei exatamente o que pensam , mas quando me aproximo dos filhos
delas, não intencionalmente, eles começam a gritar para que eles
saiam de onde estão, é horrível.
---
Você se sente horroroso por isso?
---
Um pouco. E fico a pensar o que vem à cabeça delas. Coisas boas
não são.
---
É a intuição materna.
---
Se é a intuição materna então realmente tem algo em
mim perigoso que desconheço.
---
Fico admirado se isso for verdade. Porque não acho que você seja
uma pessoa do mal. Está com medo das crianças, agora, é?
---
Sim, fico apavorado quando aparece uma na minha frente, pois sei que a mãe
dela vai dizer para ela sair dali, se afastar, correr, fugir.
---
Nossa, então te vêem como um monstro.
---
Mais ou menos.
---
Você deve estar exagerando, Oscar. Já te acho um ignorante por dar
valor a essas coisas, mas se realmente isso acontece, essas mães então
são boas mães.
---
Só Deus sabe, só Deus sabe, Oliver.
Interessante.
Os irmão gêmeos vão ser sempre tidos como loucos e gays e
jamais terão nada materialmente, nem se desenvolverão muito espiritualmente.
Mas não os vejo como pessoas do mal. Durante todos esses séculos
pude perceber que a humanidade não mudou muito; por incrível que
pareça há trezentos anos as pessoas eram mais liberais do que são
hoje. Lembro-me também da cruxifição, daquela cruz caindo,
mas antes os soldados passando rentes a ela, em marcha. Quem eram aqueles soldados,
até hoje não sei. Lauro está no Brasil e me parece triste.
A culpa talvez seja dele, afinal, foi ele quem deu a idéia de trocar de
papel, coisa muito arriscada mormente em terras tupiniquins. Realmente ambos os
dois são idênticos, mas não creio que a populaça desconhecida
a qual tanto Oscar se refere, populaça perspicaz, irá achar que
Oscar é deveras Oscar por muito tempo.
Oscar
acordou por volta das cinco da madrugada. Seu nome era Oscar? Sim, agora era.
Foi tomar um banho, mas antes disso esperou meia hora para poder fumar um cigarro.
No café da manhã, geléia de pimenta e pão de milho,
além do café. Oscar prescindiu do pão de milho porque continha
ovo na composição. Tomou somente o café e passou o dedo indicador
na geléia. Saiu de casa inseguro, e o pesadelo iria começar por
mais um dia, por causa da sociedade. Sua vida na Inglaterra não era tão
melhor do que esta. A senhora Roosevelt tinha uma disciplina invejável,
tinha o tempo dela que no entanto não era o tempo dele. Saiu com sofreguidão,
pois ao se olhar no espelho viu uma mulher, não um homem. Não sabia
se uma plástica resolveria o problema. Sentiu a impopularidade do irmão,
a perseguição sem explicação palpitar em todos os
cantos da cidade. Não, não iria trabalhar como digitador, mas tinha
a carteira de trabalho do irmão, não sabia onde iria arrumar coisa
melhor. Andou pela rua dos desempregados, a Barão de Itapetininga e preencheu
algumas fichas, entregou alguns currículos em agências de empregos
de renome, mas de súbito sentiu-se velho e meio acabado. Vai ser difícil,
pensou. A vida dos irmãos Rigoneto era uma vida cheia de fracassos. Alguém
cutucou-o nas costas, ele virou-se e viu um homem alto, belo e bem-vestido. Seria
Saulo?
---
Oi, como vai?
---
Oi, Oscar, e aí, trabalhando em algum birô?
---
Sim, claro. Há vinte anos que não saio desta vida. De certa forma
me sinto um doente por isso. Tenho vergonha do tempo e de mim, por não
ter feito nada de útil; talvez eu merecesse um tiro.
---
Não fale assim. Que tal irmos para um hotelzinho e...
---
O quê? Como é seu nome mesmo?
---
Marcinho. Vai dizer que esqueceu?
---
Sinto, Marcinho, mas parei. Você é quem iria pagar?
---
Claro, Oscarito, claro. Eu sempre paguei, não paguei?
---
Nossa vida de digitador é um lixo. Acho-me um lixo também. Não
sei, não sei o que você viu em mim. Não sou homossexual.
---
Oscarito, todo mundo aqui por estas redondezas te conhece, conhece o teu corpo.
---
Se eu fosse mais forte te daria um murro. Por favor, saia da minha frente. Eu
sou homem, faça o favor.
---
Que que é , ô imundo, lixo atômico? Agora deu pra regular esse
cuzinho, é?
---
Não me leve a mal, Marcinho. Arrume outra pessoa, por favor.
Oscar
quis sair correndo. As ruas estavam desertas, as ruas não eram mais ruas,
eram campos áridos, sem vegetação. E pôs-se a correr,
mas devagar. Pôs-se a correr, chorando de dor, de ódio da vida, de
tudo. Era um fracassado, e ainda tinha aquilo, aquela coisa do irmão ser
gay. Não queria mais ser Oscar, queria ser qualquer outra coisa, um lápis,
uma nuvem, um carro. Queria voltar a ser Lauro. Parou em uma esquina, e parar
em qualquer esquina era extremamente perigoso, pois poderiam vê-lo como
um bandido, e acendeu um cigarro, cigarro que uma hora iria acabar, e ele ficaria
desesperado procurando tocos pelo chão da cidade. Não, não
se via fácil, não se admitia fácil. Precisava de mulher,
mas onde estavam as mulheres?; nenhuma o desejava, nenhuma o olhava com desejo,
era estranho. As pessoas que davam certo, que pareciam felizes e donas de si,
fumavam haxixe; por essas pessoas ele se sentia atraído. Elas tinham o
estilo de vida que ele queria ter. Mas jamais conseguiu ter uma pessoa dessa por
um, dois anos. Nina fumava o baseado dela, mas ficaram juntos menos de dois meses;
ela era volátil como os homens; necessitava da traição para
ser feliz. Agora Nina estava morta. Sim, ele a havia enterrado na sua memória.
Que vida era aquela, que mediocridade era aquela? Não quis ter a vida dos
pais, dos avós, mas agora a tinha. Pena que não fora fatídico
a ponto de saber como seria sua vida, pois assim poderia mudá-la. Mas na
verdade, ele fora bem fatídico, sim senhor. Aquela negatividade nutrida
dia após dia fizeram dele o que ele era hoje. Voltou para onde morava,
desnorteado. Deitou-se na cama e dormiu um sono profundo. Marcinho apareceu-lhe
em sonho como um médico e deu-lhe dois meses de vida. Acordou assustado.
Marcinho não era médico, mas parecia um. Vivia na zona norte, sozinho,
e era um pobre tarado, um eterno apaixonado por Oscar. Tivera algumas oportunidades
no decorrer de sua existência, mas as que deveras aproveitou foi como gigolô.
As mulheres de idade o adoravam. A solidão corroía suas asas, asas
somente imaginadas, jamais reais. Sim, porque por dentro, Marcinho era de uma
extroversão fora do comum, um sonhador ambulante, mas exteriormente um
tímido de dar um dó danado. Uma noite, quando abriu a porta de sua
casa, deixada de herança pelos avós, deparou-se com várias
serpentes. Quem pôs estes bichos aqui?, pensou, horrorizado. Na certa era
alguma de suas ex-amantes-novas-ricas querendo vingança a todo custo. Ele
não gostava de morar em bairro, queria era morar no centro, como Oscar,
como tantos outros que deram certo. Mas estava fadado a ficar ali para sempre,
até a morte. Oscar não me reconheceu esta manhã, pensou,
enquanto assistia a um programa de tv. Estaria o menino o desprezando? Na Europa,
Lauro, agora apelidado de Laurito por Oliver, escrevia...
Quero
ser gente, Não doente, Gente, gente, gente.... Sou a serpente, Que
te assusta, Te come, Te pica, Quero ser gente. Não doente. Gente,
gente, gente...
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