INTERLIGAÇÕES
Eduardo Prearo
 
 

A passos largos caminhava por uma floresta, cheio de vitalidade; estava perdido, talvez completamente. A luz da lua clareava o seu caminho. Ele chorava, atento a serpentes e a riscos de repente só imaginados, como os que ofereciam os lobos daquela terra estrangeira. Não carregava nada, estava de terno e gravata; fugira de um baile porque quiseram açoitá-lo com um cacetete. Após duas breves horas e de tanto andar, rendeu-se ao cansaço e desfaleceu na relva molhada. Mas a manhã logo veio e ele acordou, decidindo voltar imediatamente. Até que foi fácil encontrar o caminho de volta. Avistou, então, do alto do morro onde estava, a mansão onde houvera a festa, uma festa repleta de gente extravagante. Daquele lugar eram dez quilômetros a pé até a charmosa Londres. Pensou no emprego, no seu chefe que talvez àquela hora estivesse dando graças por ele ter se ausentado, pensou no seu quartinho limpo na periferia, pensou nas brumas que eram as de Avalon. Como era duro ser sozinho, rejeitado por sua estupidez ou então por sua fealdade! Mas tudo bem, pelo menos tinha um salário ainda plausível e não passava fome. Além do mais, realizara o sonho de estar na Europa; estava quase sempre radiante. Chegou à pensão por volta das duas da tarde, e a senhora Roosevelt, a senhoria, bradou seu nome duas vezes logo que o viu entrando.


--- Não está labutando, menino?


--- Obrigado pelo menino. Senhora Roosevelt, disse em um inglês com forte sotaque latino, não lhe devo satistações da minha vida. Mas como a senhora já tem idade e é muito simpática, digo-lhe que não fui trabalhar porque tive um probleminha.


--- Que probleminha, Lauro?


--- Não posso lhe contar. Vou voltar para a América.


--- Não faça essa bobagem. É estupidez voltar para um país subdesenvolvido como o seu.


--- Mas lá é minha pátria, e não é mais um país subdesenvolvido, é um país em desenvolvimento.


--- Sua pátria é aqui, ao lado dos ingleses.


--- Mas meu irmão está doente.


--- Ele está com alguma doença grave?


--- Ele me disse por email que pensa em se matar. O amor dele não o quis mais.


--- Deixe-o sofrendo. Mas é por isso que não dormiu em casa? Parece que voltou da guerra do Vietnã!


--- Não, perdi-me em uma floresta, mas tudo bem. Bom, juntando todas as minhas economias, dá para viajar e ainda sobra um pouco. Preciso ver meu irmão gêmeo, a senhora entende? Preciso tocá-lo, conversar com ele. Ele pode estar passando fome.


--- E você vai fazer o quê, vai emprestar dinheiro a ele e passar fome também? Mas vá, vá; vá arrumar sua mala e leve coisa pouca, uma muda de roupa e nada mais, se é que pretende voltar, não é?


--- Claro. A senhora fala como se eu fosse viajar até Liverpool.


--- Ora, viajar até ali ou até acolá, não faz muita diferença. Volte para o Brasil e ponto final. Já pediu demissão?


--- Vou pedir um afastamento. Tenho certeza que o Sr. Richard vai entender. É por pouco tempo.


Lauro tomou o banho rápido de sempre, o banho de cinco minutos cronometrado, sentou-se na cama e pensou em suicídio. Ele, uma pessoa que se achava altamente otimista, pensando em suicídio? Talvez fosse seu irmão quem estivesse pensando e ele sentisse, pois eram muito ligados. Olhou da janela as roseiras sendo agitadas pelo vento, as rosas cor-de-rosa de que tanto ele gostava; olhou para os girassóis, para as orquídeas, e apertou uma espinha na testa. Sentia-se um inútil, e era isso que o fazia pensar em tirar a própria vida, a sua inutilidade perante o mundo; precisava ajudar o irmão.


Aeroporto. Lauro pegou as malas e pediu um táxi, pediu a Deus que lhe desse paciência. Estava no Brasil, em São Paulo, uma cidade boa para viver, desde que não se fosse muito pobre. Oscar não veio lhe buscar; onde estaria? Não o encontrou em nenhuma parte. Na certa, pensou Lauro, estava em algum evento como penetra, enchendo a cara com champanhe francês. Oscar não era muito bem-visto pelas pessoas em geral, estava marcado. Passava-se por jornalista ou então por artista plástico, mas sua hierarquia era deveras uma das mais baixas, e alguns seguranças percebiam isso, por vezes expulsando-o dos eventos. A vida de penetra de Oscar iria continuar para sempre, pois tinha ele necessidade de expulsar os demônios quando bebia, falando tudo o que lhe viesse à cabeça, em um acting out encantador. Lauro estava abandonado. Como podia o próprio irmão gêmeo deixá-lo ali, esperando-o? Foi direto para um hotel barato; sim, voltaria para Londres em breve. Em menos de um mês arrumaria emprego como professor de inglês. Todavia, três anos na Inglaterra não tornaria o currículo dele excelente, haja vista a quantidade enorme de pessoas que possuiam um currículo melhor. Mas dar aulas de inglês era um sonho antigo. Imaginava receber de presente de alguma aluna apaixonada uma maçã. Se fosse um mata-mouros talvez se prostituisse; se escrevesse um livro talvez ninguém lesse, nem mesmo psiquiatras procurando algo interessante para suas teses sobre doença mental. O nome do hotel era Invocação do Mar. Lauro ficou na recepção por um longo tempo, pois não havia quartos para pernoitar. Teve de esperar três horas por um quarto vago. De súbito, sentiu uma pontada de dor nas costas, levantou-se e foi até o balcão.


--- O senhor tem massagista disponível no hotel?


--- Como?


--- Sim, preciso de uma massagem e estou disposto a pagar cem reais. A nota está aqui, dê uma olhada.


--- Não senhor, não temos massagistas neste hotel. Tínhamos borboletas, ou seja, garotas de programa, mas...


--- Pode ser homem, não tem problema. É que estou com um pouco de dor nas costas. Há urgência.


--- Sei.


--- Então, senhor, senhor...


--- Marlon.


--- Senhor Marlon, então?


--- Poderia ser eu, mas estou sem tempo. No entanto, acho que posso arrumar uns minutinhos. Entendo de massagem, o senhor teve sorte. Vá até o quarto 155, que já está desocupado e limpo, e fique lá, pois daqui a pouco entrarei.
Quando o recepcionista entrou no quarto, Lauro estava de bruços sobre a cama de casal e totalmente desnudo. Sentiu mãos enormes explorando seu corpo e conteve um gozo proibido. Fazia algum tempo que não era tocado. Se Nina, sua esporádica namorada inglesa, soubesse o que estava se passando agora, obviamente que o acharia um maricas, não o quereria de volta. De manhã, Lauro acordou feliz, apesar de uma certa culpa, e espreguiçou-se morosamente. Como era bom vez ou outra uma massagem! O celular vibrou: era Oscar. Finalmente Oscar se lembrara dele.


--- Maninho, desculpa mas não pude ir até o aeroporto. Fiquei embriagado e depois da meia-noite no Brasil não tem mais ônibus. Estou sem um centavo, também. Por favor, dê-me o endereço daí que pretendo chegar até o meio-dia o mais tardar, eu prometo.


--- Eu já esperava e... estou em um hotel aqui próximo do aeroporto.


--- Tudo bem?


--- Sim.


--- Estou morando em um quartinho na Santa Cecília. Tenho feito meu jantar em uma espiriteira, isto é, quando tem algum dinheiro pra eu comprar legumes. Pretende ficar aí nesse hotel?


--- Sim, já paguei a mensalidade


--- Estou sem acreditar que estou passando fome. Saulo me deixou; aliás, eu e Saulo nunca tivemos nada assim de tão profundo; durou somente um mês e no início foi maravilhoso. No início, no primeiro dia. Ele me abraçou em público nesse dia e eu rejeitei seu abraço. Quero que Deus me leve. Nossa cara não é das melhores, não é irmão?, e não consegui ser nada na vida... Estou morrendo de saudade de você.


--- Venha até aqui. Estou te esperando. Precisamos conversar muito.


--- A noite inteira, o dia todo, o mês todo, o ano todo. Quero te agarrar.


--- Oscar, você está melhor? O seu último email me preocupou tanto!


--- Estou péssimo. Quase cheguei ao suicídio. Não quero mais champanhe tampouco caviar, quero ter uma profissão decente. Quanto mais dinheiro se tem, neste país, maior a dignidade.


--- Não fale assim.


--- Ainda bem que você gosta de mulher, pois se não gostasse ficaria com Saulo. Acho que ele está procurando alguém parecido comigo pra namorar. Para um mulato deve ser ótimo namorar um branco. Como sou racista.


--- Acho que não somos muito brancos.


--- Lauro, você me trouxe algum presente dali da Europa. Falam tanto desse lugar.


--- Eu lhe trouxe tanta coisa que tive de arranjar uma outra mala. Tenho certeza de que você vai gostar de tudo. Sei bem a respeito de seus gostos, é claro. Sei, por exemplo, de que gosta de relógios e...


--- Sim, amo relógios. Passe-me o endereço. Que merda de vida. Te tirei da Inglaterra pra você agora ficar em um hotelzinho em São Paulo.


--- Anote aí.


--- Anotei. Estou indo, então. Vou só voltar para o quartinho e vestir uma roupa melhor, tá?


--- Acho melhor você pegar um táxi.


--- Tá bem, eu pego; mas vai ficar muito caro.


--- Não tem problema, por enquanto.


--- E olha, não se esquece daquilo que a mamãe sempre falava: fiquem sempre juntos.


Algumas horas de espera, o telefone tocando, o recepcionista anunciando e três batidas na porta. Quarto 155. Sim, Lauro sabia que se tratava do irmão: as inesquecíveis três batidas de Oscar; desde pequeno que ele batia nas portas dessa maneira especial. Mas o que faria quando ele entrasse? Sorriria? Abraçá-lo-ia? Talvez não tivesse reação alguma.


--- Entre, a porta está aberta.


--- Com licença.


A porta se abriu e lá estava Oscar, lindo, conservado como sempre, sem nenhum arranhão, mas magro e com olheiras. Lauro levantou-se e foi abraçá-lo. Ficaram assim, abraçados, por mais de vinte minutos.


--- Que saudades, Lauro. Pensei que nunca mais fosse vê-lo.


--- Não, não chore assim. Somos sós, não temos pai nem mãe. Olha bem pra mim. Estou diferente?


--- Esse seu cabelo vermelho está estranho.


--- Vou passar máquina zero. Agora me escute bem. Vim buscá-lo. Quero que vá comigo para Londres, está bem? Não agora, vou dar um tempo aqui. Não podemos nos separar. Nunca mais.


--- Mas eu não quero ir para Londres, Lauro, eu não quero. Não falo inglês pra começar e..


--- Não, nunca é tarde para aprender, nunca é tarde para nada. E você tem facilidade para aprender, eu sei.


--- Sempre é tarde, meu irmão. Fique comigo. Vamos aproveitar um pouco a noite. Olha, tem uma festa ótima para irmos hoje e...


--- Você continua entrando nesses eventos de penetra? Qualquer hora te prendem. Deve ser horrível entrar, por exemplo, como jornalista em um evento desses e ter consciência de que se é um nada, só uma espécie de parasita.


--- Não , não fale assim comigo. Já não basta Saulo pra quem devo estar morto!


--- Que povo, Oscar, que povo? Bom, acho mesmo que o povo desconhecido te desvia de alguma coisa importante que você não enxerga. E se te perseguem, mais uma razão para sair daqui, deste país.


--- Sim, mas agora é tarde, Lauro. Já temos quarenta anos, e mal-vividos..


--- Imagine, fui para a Europa com trinta e oito! Acho que vou ficar por aqui no máximo uns dois meses.


--- Vão ser dois meses maravilhos. Vai arrumar um emprego digno para mim? Há vinte anos que não arrumo um emprego decente. O que vai ser de mim e sem você?


--- Vou alugar um apartamento para nós, para você. Eu devia ter feito isso antes de partir.


--- E nossos amores?


--- Tenho Nina, mas ela certamente também já me esqueceu.


--- Então tinha.Nina deve ser linda.


--- Nunca teremos alguém que realmente nos ame. Mas eu, Lauro, te amo muito. E dou Graça a Deus por tê-lo.


--- Aluga um apartamento próximo da Paulista?


--- Sim, quero alugar um imóvel nos arredores da Paulista. E quando eu voltar para Londres, quero ter certeza de que você irá pagar o condomínio e o aluguel direitinho.


--- Estou mal, Lauro. Saulo me deixou, me deu um pé na bunda, foi sacana. FOI SACANA. Preciso dele, eu preciso dele mais do que de você, desculpa, mas é isso.


--- Não entendo como você pôde ser tão vulnerável.


--- Eu queria casar com ele.


--- Você está delirando. Ele não gostou de você, enganou-º Você também deve tê-lo enganado e não tem consciência disso. Entrou em uma festa que não devia, entrou de mentira e o conheceu. Entrou em um mundo que não era céu e roubou um beijo, um corpo, um homem que não era para ser seu. Agora, se o destino realmente o pôs no seu caminho, se esse amor estava escrito nas estrelas e não deu certo, então sinto muito. Mas oxalá você tenha feito o seu melhor, irmão.


--- Não sei se fiz.


--- Até os trinta esse tipo de relacionamento dá certo, mas depois disso a gente envelhece e os homens são rigorosos: querem cabelo, músculos, um corpo delgado e sem gordura. Mas você parece bem conservado. Está com cara de vinte e seis.


--- Ah, tá bom.


--- É sim. Bom, antes de acender um cigarro, quero convidá-lo para almoçar. De agora em diante não nos desgrudaremos. Venha morar no hotel junto comigo a partir de hoje.


--- Continuo tabagista, Lauro, assim como você.


--- Que pouca vergonha a nossa. Faltam dois dias para o ano-novo. É uma boa data para parar de fumar.


--- E você ainda liga para essas datas?. Normalmente durmo. Faz dois anos que não te vejo e sempre quando é ano-novo vou dormir. Só não suporto os fogos de artifício. Até tentei entrar em um evento no reveillon do ano passado, mas me barraram. A população desconhecida está se armando de razão a cada minuto, e os psiquiatras são verdadeiros aliados dela.


--- Você ficou esquizofrênico, Oscar? Nós precisamos de gente, pelo menos é o que dizem.


--- Estou com fome. Mas só vou comer uma salada, pois para mim é muito difícil comer em restaurantes. Sou vegan, quase frutífero.


--- Que bobagem, qualquer hora desmaia aí e...bom, quero lhe confessar que também sou meio vegan. Ainda estou no octolactovegetarianismo.


--- Sei que ainda vou ver Saulo transando com alguém.


--- Deixe Saulo em paz ou então o mate. Apaixone-se por outra pessoa.


--- Não dá. Já tentei, mas esses intentos não deram certo. Só gastei dinheiro à toa indo a boates onde ninguém me olha. Sei que o repugno.


No restaurante, ambos os dois comeram a mesma coisa: salada de entrada, arroz, feijão e batatas fritas.


--- Você viu que garçom bonito? Parece-se um pouco com Saulo.


---. Aliás, por que você não faz um curso de garçom em vez de ficar trabalhando nesses birôs da vida? Estou certo de que ganharia mais. Você devia saber, não é meu irmão, que trabalhando como digitador você jamais irá para frente. Olhe só eu em Londres: trabalho como auditor em uma empresa de canetas; de certa forma dei certo. Chego sempre atrasado, chego a hora que quero, e estou terminado o meu curso de jornalismo.Talvez perca o primeiro semestre, mas como a Faculdade é paga, acredito que não haverá problemas. Dinheiro é poder.


Jamais vi gêmeos tão encantadores como Oscar e Lauro. Nessas investigações sobre a raça humana, confesso que as pessoas bissexuais sempre me atraíram. Marlon Menezes, o recepcionista do Hotel Invocação do Mar, por exemplo, era um tipo bem másculo quando atendeu Lauro naquele final de ano. Com o tempo, depois de uns quinze ou vinte anos, foi definhando, mas se recusava a ir a um médico, não cria que tinha alguma doença; cria apenas que estava emagrecendo devido à mudança de alimentação.


Lauro chegou ao Hotel por volta de uma hora de uma manhã chuvosa, e Marlon sentiu por ele um desejo que o enojava: o desejo de possuir um homem. O recepcionista sabia muito bem que os homossexuais dariam o mundo por ele. E quando Lauro deixou a porta do quarto aberta, deitado de bruços sobre a cama de casal redonda, Marlon sentiu-se realizado, sentiu que era chegada a hora de mais uma vez se satisfazer sexualmente com um senhor. Olhou para aquela bunda não muito trabalhada, mas atraente, e após alguns segundos, sem resistir, já passava a mão nela, já a alisava, massageava-a. Antes do coito pôs-se mesmo a lambê-la. Chegou em casa por volta das sete da manhã. A filha de oito anos, Sarah, estava brincando de boneca, e a esposa, Norma, preparava o jantar para o marido. Norma era uma negra de cinquenta anos que aparentava ter vinte e cinco. Viera para São Paulo do sertão e conhecera Marlon em uma gafieira no Tatuapé.


--- Oi, bem, senta aí que vou te servir. Acabei de me maquiar e estou saindo.


--- Oi. Hoje tem abrobinha de novo, dona sertaneja?


--- Hoje tem carne de porco. Bisteca com limão, arroz e feijão. Não é bom comer muito antes de dormir, hein. Eu sempre te digo isso.


--- Não vou comer muito. E só irei dormir daqui umas três horas.


--- Marlon, deixa eu te ver. Nossa, que cara de felicidade.


--- Eu?


--- É, você está com as rugas do riso inchadas. O que o fez rir tanto ontem à noite? Não foram aquelas mulatas da Lapa não, foram?


--- Tenho que sorrir o tempo todo, você sabe. E ontem, um hóspede me contou umas piadas...eu não as achei engraçadas, mas tive de rir. Sabe quando você ri forçado só para agradar ou puxar o saco de alguém importante?


--- Não, não sei porque não rio forçado. Mas quem era a tal pessoa importante? Um chefe de estado?


--- Não, claro que não. Alguém com grana, muita grana e que deu certo na vida.


--- Sei.


Marlon levantou-se da cadeira, beijou a filha e foi ler um livro no quarto. Na cama, ouviu a mulher lhe dizer um tchau antes de sair para trabalhar como empregada doméstica, levando a filha para uma creche, e a porta se fechando. Começou a ter os seus terríveis delírios: um enxame de abelhas entrou pelas janelas e em espiral foram entrando no seu umbigo, uma a uma. Ele, então, berrou o mais alto que pôde, mas nenhum dos vizinhos apareceu para acudí-lo, pois já estavam acostumados com o velho Marlon, homem cheio de esquisitices, másculo mas afeminado ao se irritar. Um desses vizinhos, um solteirão de mais de quarenta anos, aposentado, Cid Deo, nas manhãs em que ouvia Marlon gemendo ou gritando, bufava. Ligava o televisor e bufava. Não tinha forças para sair de casa. Morava sozinho e tinha o hábito de fumar uns dois maços de cigarro por dia. Era tido como esquizofrênico. A teoria endógena dizia que o esquizofrênico deveria ficar em completo isolamento para não passar a doença para outras pessoas. E era nessa teoria endógena que Cid acreditava, tanto que evitava sair para que ninguém pegasse esquizofrenia. Ele sabia que o cigarro o faria futuramente sofrer, hajam vista as campanhas anti-tabagistas que eram deveras chocante. Tinha um metro e oitenta, ascendência italiana, e se incomodava muito quando era chamado de senhor. Mas era fastidioso dizer às pessoas que lhe chamavam de senhor que o Senhor estava no céu. Umas ficavam iradas, outras riam. Sim, ele tinha que admitir que era um senhor e ponto final. O que faria amanhã? Pensava todas as manhãs em suicídio. Ainda tinha pai e mãe, mas não morava com eles, não só porque sua mãe talvez fosse esquizofrenogênica, ou porque não tinha diálogo com seu pai, mas também porque eles haviam empobrecido e se mudado para uma casa menor, e os irmãos dele eram ciumentos. A população desconhecida, gente estranha, essa sim parecia responsável por ele. Sim, alguém era responsável por ele, tinha de haver alguém, ou não tinha?


Uma janela de luz formou-se defronte de Cid, e ele de súbito viu o invisível, o que muitos dariam milhões para ver. Como podia?, pois pela lógica pessoas com um vaso sujo, que tinham hábitos nocivos, não viam essas coisas; o tabaco cegava experiências místicas. A janela abriu-se e escancarada, ele pode ver do outro lado um jardim divino, com uma vegetação indescritível; borboletas vermelhas com contornos dourados, fadas grávidas, abelhas enormes num vai-e-vem festivo. A janela fechou-se e desapareceu no ar. Cid soergueu-se lentamente e foi tomar um banho. Essa alucinação me deixou bem, pensou. Alguns minutos depois, estava no ponto de ônibus; ia para a cidade passear um pouco, arejar. Seu olhar de tempestade dissipara-se na luz. Comprou roupas, descobriu-se magro, sorria para todo mundo. Entrou então em uma loja de perfumes. Ali se ia toda sua economia, mas uma vez ao ano talvez não fosse pecado gastar. Um perfume francês de marca desconhecida o transportou à atmosfera parisiense. Sentiu que precisava se comunicar, que precisava de alguém para conversar, que precisava amar, mas como, com quem? De qualquer forma, puxou um pouco de conversa com a vendedora da perfumaria, Silvia, uma mulher alta e loira, olhos verdes-azulados, que parecia compreendê-lo mais do que os limites dele pudessem imaginar, o que talvez fosse raro; os olhos dela eram como uma Taj-Mahal vista com lente de cristal azul.


--- Não sabia, estava indeciso quanto a qual levar, mas depois que a senhora me mostrou este...


--- Senhora está na igreja, no céu. Não me compare à Grande Mãe, meu querido.


--- Sabe que eu também tenho raiva quando se dirigem a mim por senhor? Mas se eu for ficar falando para todo mundo que o Senhor está no céu, vai ficar repetitivo, não vai? Vou ter de dizer isso à dezenas de pessoas.


--- Você mora sozinho?


--- Essa é uma pergunta que sempre me fazem e que me incomoda. Moro, mas não sei por quanto tempo. Parece sempre que ao perguntarem isso, depois perguntarão se eu quero dividir o aluguel ou coisa parecida. É complicado. Não, eu jamais vou querer dividir o aluguel, mesmo que não possa pagá-lo. Se eu sair dali terei de ir para uma pensão, um quarto. E não haverá mais fogão, nem geladeira, nem televisor. Não poderia alugar outro porque meu nome é sujo. Esse apartamento foi uma benção de Deus.


--- E você não tem namorada? Seria o ideal comprar um perfume com o intuito de agradar a namorada, não acha?


--- Sim, mas não tenho. Estou meio gordinho, com uns quilinhos a mais. Irei começar a fazer dieta amanhã.


--- Jura? Que bom. Eu não tenho...desculpa, você nem me perguntou isso mas já estou falando. Eu não tenho namorado. Estou à procura de um.


--- Pena que você não faça meu tipo..


--- Não faço o tipo de ninguém ultimamente.


--- Não fique ansiosa. Vai aparecer um namorado para você e uma namorada para mim. Prefiro as baixinhas, sabe? Agora vou fazer aquela velha pergunta que deixa as mulheres nervosas. Quantos anos você tem?


--- Ai, que pergunta chata. Você é bem chato, viu? Não vou falar minha idade, querido.


--- Tudo bem. Eu vou indo, eu já vou saindo. Hoje estou contente. Vou fazer dieta, esporte, largar o cigarro. Vou encontrar pessoas, se bem que prefiro atraí-las, porém não tenho conhecimento de magia. Sou inculto. Tchau.


--- Vai pela sombra e obrigado.


Silvia suspirou profundamente quando Cid partiu. Como era horrível para ela se oferecer a um cliente. Abriu o caixa e pegou algum dinheiro para o almoço. O que iria comer hoje? Hum. Pensou em uma salada, sim, uma bela salada com muitos legumes: tomates enormes e bem frescos, alface, chuchu, cebola, cenoura crua, vagem, couve-flor, etc. Isso a saciaria até a noite, quando iria para uma festa com uma amiga, uma festa glamourosa... ...


Quando Silvia e Sally chegaram à festa, ambas as duas vestidas de preto, na entrada entregaram os convites à hostes e ficaram super-animadas ao espiarem a bebida que serviam: viuve cliquot. Beber champanha francês durante toda a noite era uma espécie de sonho de consumo de Silvia. Sentaram-se em um sofá muito confortável e logo Silvia viu-se sozinha através de um espelho. Olhou para um lado, para o outro e de súbito avistou um homem de uns trinta anos que devia estar fitando-a a um bom tempo, um homem que parecia maravilhoso de tão lindo, com traços angelicais, olhos azuis da cor do céu da mais bela manhã que já houvera.


Paulo Gabriel foi pego de surpresa quando viu que a moça o qual observava percebeu o interesse dele. Sabia que olhar do jeito que olhava quase sempre madeficava as partes de baixo das mulheres. Todavia, aquela moça era-lhe feia; alta e loira, mas com cara de missa de feriado. Havia algo nela circunspecto. Desviou o olhar, levantou-se e foi até o bar pedir mais um uísque. Não gostava de uísque, mas aquele da festa era envelhecido dezoito anos, o que talvez fosse garantia de que não vomitasse. De súbito, saiu daquele lugar, estava enfastiado. Esperou o carro como quem espera apaixonado uma noiva. Olhou para o lado, languidamente, e viu um rapaz de uns trinta e cinco ou quarenta anos, um rapaz até que bonito, mas calvo, que não parecia esperar carro nenhum, mas alguém sair da festa.


--- Noite estranha, não?


--- É uma noite como outra qualquer, pelo menos para mim.


--- Qual seu nome?


--- Lauro, e o seu?


--- Paulo Gabriel. Sou arquiteto. Fui convidado para esta festa e achei que iria encontrar muitos amigos, mas todos me são desconhecidos. Difícil isso, pois nesse meio as pessoas se conhecem. Talvez tenha vindo gente de outros Estados. E aí, gostou das decorações, dos estilos?


--- Não. Na verdade vim acompanhar meu irmão, que está lá dentro se embriagando.


--- Ele é arquiteto?


--- Não...é...ele não é nada, é só um homossexual.


--- O quê?


--- Senhor, desculpe-me mas não vivo de mentiras. Meu irmão é um penetra. Vim de Londres recentemente, sabe, para ajudá-lo porque ele estava passando por uma crise. Larguei tudo, desesperado. Nós somos gêmeos idênticos, mas diferentes por dentro.


--- Deixe-o aí e venha comigo. Preciso de companhia. Você me pareceu bastante confiável. E olha que tenho uma ótima intuição.


--- Coisa que eu queria ter também, queria muito. Mas vivo como uma barata tonta, ora para um lado, ora para outro, indeciso.


--- Ora, desenvolva sua intuição.


--- Ah não, com isso já se nasce. Sinto, mas convite fica para uma próxima. Quer me deixar seu cartão? Vou dizendo logo que não sou ninguém; estou de licença de uma firma lá de Londres. Vim só para ajudar meu irmão, não quero me envolver com ninguém. Mas...mas iríamos para onde, para um hotel?


--- Sim, e o que há de mal em irmos para um hotel?


--- Eu...eu...vou aceitar vai, eu acho isso muito excitante e...gosto de pessoas cultas como você.


--- E?


--- Não me considero gay.


--- Pensei também em um hotel, que coincidência! Mas não para fazermos amor, pois também curto mulher, e sim para conversármos. Não existe mais essa; ninguém mais vê maldade em dois homens entrando juntos em um hotel.


--- Mas, Paulo, diga-me. Como faço para desenvolver a intuição?


--- Procure ser sempre intenso, sentir as coisas intensamente, tudo, usar os cinco sentidos de uma maneira intensa. E não só, amar e amar e amar.


--- Amo demais Oscar. Se não o amasse não estaria aqui. Ele apaixonou-se por um tal de Saulo e esse rapaz é mais novo do que ele, não quer compromisso.


--- O que esse Saulo faz?


--- Pelo que sei é um estilista bem conceituado. Mas já está em outra ou está sozinho, vai saber. Deve ser um desses seres que jamais é descartado e se o é, somente ri. Oscar foi com muita sede ao pote. Esse tipo de atração de fatal é comum, coisa de uma noite, sabe como é.


--- É dificil. Posso imaginar como seu irmão se sente. O carro chegou. Vamos?


--- Por favor, aguarde-me um instantinho, vou avisar meu irmão.


--- Ok.


Paulo Gabriel esperou só dez minutos e resolveu partir. Lauro de repente não lhe interessava mais. Aqueles cabelos vermelhos, aquela bandeira toda o incomodava. E o que diriam os mexeriqueiros? Não, era melhor desistir. Foi caçar gente de calçada. Logo parou o carro em uma esquina e fez um travesti entrar. Era Stephanie, trinta e um anos, morena-jambo, vestida com um falso prada e louca para transar. Sim, ela não transava só profissionalmente, mas também por prazer.


Stephanie na verdade se chamava Mauro e costumava fazer programas com pessoas da alta sociedade ali pelos lados do Ibirapuera. Cobrava cem dólares por hora, pois além de bonita era bem-dotada. De madrugada, logo que Paulo a deixou em uma rua dos jardins, resolveu ir para um restaurante da elite. Ficou muito tempo no balcão pensando na vida. Como podia um homem daqueles como Paulo ser solitário, pagar alguém para transar? Essas indagações sempre lhe vinham à mente. Mas isso não importava muito; o que importava era a bolsa cheia de grana, era estar endinheirada e se sentir poderosa. Achava que a vida não valia nada. Pensara em se mudar para Miami, ou quem sabe pudesse tornar-se uma princesa em França. Estava cheia de ouvir falar na Europa e jamais estivera lá. Saiu do restaurante por volta das vinte e uma. Assim no final de ano, a cidade ficava vazia, a clientela escapulia para os mares e as montanhas. Andou por uma rua deserta e percebeu que três homens a seguiam. Três. Excitou-se. Olhou para trás e notou que eles estava armados com porretes. Não acreditou. Saiu correndo e entrou em um beco. Era o fim. Um dos homens que a atacaram, Rodi, pertencia a um grupo terrorista famoso.


Não sei, mas quanto mais observo os humanos, mais rio deles. E não é por maldade, é porque os acho engraçados. Sthepanie que era Mauro deixou de ser Sthepanie para se tornar novamente Mauro, que agora está estendido no asfalto, ensanguentado. Morto, pra ser mais exato. Talvez não fique muito tempo no purgatório, pois notei uma certa pureza nele.


Rodi, esse era o cara. Pugilista e drogado, terrorista e estuprador; agora, pela primeira vez, um assassino a sangue frio. Ele divertiu-se ao obrigar as lavas vermelhas e quentes saírem do vulcão, lavas que antes eram um gás. Mas prometeu nunca mais fazer isso, prometeu a alguém dentro dele mesmo nunca mais assassinar uma pessoa. No outro dia, já não comeu animais, nem ovos, nem leites, nem méis; comeu frutas e rogou a um santo que pedisse ao Supremo que lhe ajudasse a ser santo, mesmo tendo sido um matador. Ah, mas isso já era coisa antiga, vinte e quatro horas tornaram-se séculos. Aqui se fazia e não se pagava; pagava-se no inferno, e até sua morte chegar eram outros quinhentos, outros mil. Acendeu um cigarro riscando um fósforo no concreto do quarto, e depois ciciou uma praga para o maldito cigarro. Dormiu após a bomba explodir dentro dele e tudo ir dar contra a parede. Era um gorila, um gorila de aço. Sonhou com Oliver, o menino de uns trinta anos que morava em uma casa contígua a sua, menino quase menina, que não tinha os braços fortes, mas de homem somente uma masculinidade impressiva no olhar. Oliver, no sonho, era o santo da igreja, e fitava-o com um sorriso devasso que somava em potência o sorriso de cem prostitutas. No dia seguinte, Oliver não estava mais no sonho de Rodi, jamais esteve, mas andando pelas ruas pouco movimentadas do bairro com bermudão e camiseta. Não fazia nada o dia todo, morava com a avó em uma edícula. Diziam que ele era psicótico, mas tanta gente é e trabalha normalmente! Voltou para casa ao meio-dia e meia, e viu que o portão do vizinho, Rodi, ficara aberto. Resolveu penetrar no quintal daquela residência para furtar algumas maçãs, como por vezes fazia. Percebeu que a porta da entrada principal também ficara aberta a noite toda, com certeza. A casa fora assaltada? Entrou e viu o corpo de Rodi estendido no tapete, corpo que logo se mexeu.


--- O que faz aqui, Oliver?


--- Vi a porta aberta e pensei que tivesse havido algum assalto. Faz tempo que não o vejo. Por onde anda, Rodi?


--- Não é de seu interesse, menino. Agora saia daqui senão sou capaz de cometer um loucura.


--- Que loucura? Credo, seu marginal. Está pensando em me matar? Eu não fiz nada, eu...


--- Você ia furtar minhas maçãs.


--- Sim, e segundo Zaratrusta, quem rouba o pobre empresta a Deus. Você me quer, não é? Quer me fazer sua mulherzinha, eu sei muito bem. Mas não vai conseguir. Tenho namorada. E ela é um trilhão de vezes mais bonita do que você.


--- Te dou carinho.


--- Não, não quero. Mas...


--- Eu sei que você é carente. Daqui a alguns anos estará velho e talvez calvo como seu avô que se foi. Ninguém vai te querer.


--- Mas tenho namorada, tenho namorada!


--- E o que você faz com ela?


--- Ué, sexo!


--- Você não ama ninguém, garoto. Você é um doente. Quando começar a sofrer rejeições em cima de rejeições não vai compreender o porquê e aí poderá se matar.


--- Mas, cruz credo. Vou chamar a vovó pra te levar pra igreja. Você é mesmo um marginal. Se a polícia te pega, seu pilantra, ela acaba com sua raça.


--- Tenho dinheiro, posso subornar quem eu quiser.


--- Não, não pode, não a mim. Vou-me embora. Vovó está me esperando para o almoço.


Oliver saiu correndo da casa do vizinho e Dona Princesa estava lhe esperando, aflita. Desde que perdera os dois filhos não era mais a mesma. Estava muito cansada, cansada de viver sempre na mesma situação. Oliver era uma criança em um corpo quase adulto, um corpo subdesenvolvido; uma criança que precisava crescer, mourejar, tornar-se independente.
"Oliver me deixa exausta. Outro dia mesmo, a polícia queria fichá-lo porque roubara uma lata de cerveja de um supermercado. Disse-lhes que ele era doente, que ficara doente desde que seus pais morreram em um acidente de carro, há onze anos. Não aguento mais fumar, talvez eu morra também logo. Para o céu não irei. Já estamos no segundo dia do ano novo. Se Ernesto, meu esposo, estivesse vivo! Na verdade, ele nunca fora meu esposo, não nos casamos. Mas isso já lhe contei tantas vezes, não é diário? Minha aposentadoria não aumenta, só diminui e Oliver precisava de uns sapatos novos. Quem sabe no brechó não há um bem novinho e limpinho para ele? Mas agora é tarde Esse mundo é cão. A aposentadoria que Ernesto me deixou mal dá pra alimentação. Ontem, Oliver me disse que iria partir para o litoral, que não iria mais querer-me como avó. Já tentei levá-lo à igreja, mas ele não aceita Jesus. Como é estranho esse meu neto! Preparou as trouxinhas. É, morrerei sozinha e quiçá em um asilo. Mas não quero, tenho de parar de fumar, arrumar saúde para ficar forte até o fim. Deus está comigo. Oliver, Oliver, onde está você? Veio para o almoço e se foi. Mais um ser amado que perco na vida. Que Deus me leve."


Diante do mar, Oliver descobriu que se sentia mais calmo do que já era. Os cargueiros no horizonte eram a coisa mais deslumbrante que já vira. Aquela vida chata que tinha acabara. Rodi talvez estivesse consolando sua avó ou então a matando. Chegou ao cais e avistou dois cargueiros atracados, um inglês e outro francês. Optou pelo inglês, apesar de achar que não tinha intuição, que iria se arrepender por não ter optado pelo francês. "Estou no porão do navio. Aqui não tem nada, somente batatas e baratas. É como nos filmes. Três dias se passaram desde que a viagem começou e preciso me apresentar lá em cima. Mas pelo que ouço os homens são violentos. Estou morrendo de sede. Sinal de que pequei em algum momento, não sei. Vovó, ah vovó, perdoe-me onde quer que a senhora esteja."


--- Eu estou aqui, meu querido neto, do seu lado, em espírito. Sei que você pode me ouvir.


--- Vó, não acredito. Vó me tira daqui.


--- Esforce-se para levantar e ir até a superfície. Mostre-se aos homens. Eles não te farão mal. Não são piratas, são ingleses.


--- A senhora perdeu o corpo?


--- Não, olhe, este aqui tem mais luz, não estou bem?


--- A senhora não foi para o inferno, viu?


--- O inferno é aí onde você está, a Terra. Como eu queria que você fosse feliz!


--- Mas vou ser.


--- Sua namoradinha e Rodi estão no meu velório. Também, só eles.


--- E de que a senhora morreu?


--- De solidão.


--- Mas faz pouco tempo que parti.


--- Não importa o tempo, mas sim a intensidade. Me senti tão abandonada que resolvi morrer.


--- Foi minha culpa.


--- Não, não foi. Eu estava preando-o. Sei que você é um pássaro que necessita atirar-se na imensidão do azul, do universo. Agora, adeus.


--- Adeus, Dona Princesa.


Oliver chegou à Inglaterra vivo. Tornara-se um estivador. Seu nome incomum no Brasil até que o ajudara. Foi em Londres, após três meses, que encontrou outro emprego, o de garçom. Ralou muito até conseguir fazer um pé de meia. Morava em uma pensão elegante, na pensão da senhora Roosevelt. Lá também moravam outros rapazes, como Richard e Peterson. Mas a afinidade maior ele tinha era com Lauro, outro brasileiro. A senhora Roosevelt achava Oliver encantador. Ele tinha uma cara de doente, mas isso o tornava um inglês típico. E além do mais, aprendera o inglês com tanta facilidade e em tão pouco tempo que a assustara.


--- Oliver e Lauro, venham se sentar aqui ao meu lado. Estamos na primavera, não estamos?


--- Senhora Roosevelt, estamos no outono.


--- Não fale uma bobagem dessas, menino. Isso, sente-se aí. Quando você apareceu por aquela porta fiquei muito contente. Aquele seu irmão não vale nada. Aliás, nem tive tempo de perguntar sobre ele. Está internado, alguma coisa?


--- Está morando sozinho em um apartamento que aluguei na Bela Vista.


--- Oh, Bela Vista. É um bairro, é?


--- Sim, um bairro com uma vista muito agradável.


--- E Oscar está bem?


--- Não, ainda não. Ele foi descartado pelo namorado e...


--- Ele é afeminado? Pensei que havia sido descartado por uma mulher.


--- Sinto muito, senhora Roosevelt, mas ele é um pouco afeminado sim.


--- É o fim do mundo, uma aberração, mas sinto muito digo eu por ele ter perdido o namorado. Foi bem-feito!


--- Na verdade Saulo era aspirante a namorado, mas no fim não quis nenhum compromisso.


--- E esse aspirante a namorado, esse tal de Saulo, era mais jovem?


--- Sim, uns dez quinze anos mais jovem.


--- É, mas aqui dentro, no coração, ele era mais velho, tenho certeza. Seu irmão não vai crescer nunca, meu amigo. Por que não o trouxe para cá? Não, melhor não ter trazido mesmo. Apesar de os ingleses não serem muito preconceituosos, acredito que ele iria sofrer também. Agora ele está lá, abandonado, morando pela primeira vez sozinho em um apartamento. Pena que é alugado. Ele talvez não terá forças para pagar as contas. Você não irá sustentá-lo daqui, não vai?


--- A senhora nem o conhece. Ou será que agora o está conhecendo?


--- Não, não o conheço mas posso adivinhar quem ele é.
--- Em outras vidas também?


--- Vocês jovens acreditam nesse negócio de outras vidas? Isso é uma bobagem. Quem você acha que foi, Lauro?


--- Tenho certeza de que vivi no período neolítico há uns sete mil anos atrás.


--- Imaginativo, pois. Conte, conte-nos o que fazia, como era a sua vida?


--- Eu era um homem, agricultor. Vivia no Egito. Pedíamos sempre ao senhor de Duat, o deus da morte, por uma excelente colheita...


Lilaz vivia em uma cidade do Egito próximo ao rio Nilo. Seu esposo chamava-se Amon. Eram bondosos e felizes, mormente quando a colheita prosperava. Em uma bela manhã, quando a seca e fome assolavam por todos os cantos, Lilaz acordou bem disposta e pôs-se a rogar ao deus dos mortos, o senhor de Duat, que a chuva viesse logo, pois estavam todos famintos, e as sementes precisavam ser germinadas. De súbito, um raio caiu sobre a região e começou a chover. Lilaz e Amon se abraçaram. A chuva obviamente era indício de que a colheita estava próxima, de que o senhor de Duat a apressaria. Entraram na casa onde moravam e sentaram-se no chão, olhando-se fixamente. Eles acreditavam que nas próximas vidas também estariam sempre juntos, sempre de alguma forma ligados. Deram-se as mãos. A chuva lá fora caia incessantemente. Era quase uma tempestade. Que benção dos céus! Algumas cobras rodearam o casal e Lilaz pediu a elas que não se aproximassem demais deles. Ficaram ambos assim, durante horas, durante todo o período em que chovia. Até que Amon cortou as teias de aranha com uma faca logo depois da estiagem.


--- Sei o que pensa agora, Lilaz. Sou otário, mas sei o que pensa. Você quer um filho e quer que eu seja o pai dele.


--- Psiu! Ou, Amon, eu nem estava pensando nisso, estava pensando na colheita e no ritual que iremos fazer após a colheita, que neste ano promete ser muito vivo, muito cheio de felicidade, pelo menos para mim.


--- Os implementos ficaram lá fora tomando chuva e..

.
--- Os implementos são os deuses, Amon. Fique calmo, fique aqui comigo. Não quero ter filhos e também creio que não possa tê-los. Estou te vendo no futuro, em um futuro distante. Você e eu, gêmeos. Sim, viremos gêmeos.


--- Grudados?


--- Ou, Amon, pare.Sinto que seremos gêmeos e do sexo masculino.


--- Você, a maior profetisa deste lugar, se disse isso, assim será. Eu não iria querer me separar de você por um minuto sequer dentro da eternidade.


--- Mas espere, Amon. Sinto que um abismo entre nós, conforme for passando o tempo, criar-se-à. Um abismo que jamais será fechado. Mas hoje ele ainda é pequeno...Não sei exatamente...


--- Que abismo é esse? Jamais haverá abismos entre nós, Lilaz. Nós nos amamos muito. E além do mais, se houver um abismo, não será entre nós.


Lilaz saiu e foi correr sob chuva. Correu vários quilômetros até achar o santuário. Despiu-se e entrou na gruta. Ali estava a imagem de Ísis. Ela ajoelhou-se e esquentou-se um pouco no fogo eterno aceso sobre a imensa rocha de água-marinha. Ísis se movia, não era simplesmente uma imagem, era uma deusa. Por vezes diziam que ela costumava andar pela noite, sempre gritando, chamando o marido, Osíris, cruelmente assassinado por Set, irmão dele. Lilaz aproximou-se de Ísis e lhe beijou as mãos, agradeceu-lhe pela fertilidade no mundo. Depois, saiu da gruta e correu sob a chuva, berrando. Algumas flores, conforme ela ia passando, mostravam-lhe suas vestimentas vermelhas e depois se fechavam. Mas, de súbito, homens com cabeça de cachorro surgiram de uma nave-mãe e a raptaram. Lilaz se debateu sem parar, mas não conseguiu fugir. Levaram-na para um lugar ermo, uma casa em ruínas onde a relva era lilás. Lá, puseram-na no chão e começaram a excitá-la. Claro que ela não fez outra coisa a não ser tentar sentir prazer, e conseguiu. E quando acordou, sentiu-se semeada como a terra. Ela sentiu-se a terra, sentiu que tinha o útero da terra. Amon olhou-a chegando, incrédulo. Pelo amor de Osíris, o que havia acontecido? E chorou amargamente. Lilaz lhe sorriu e desviou o olhar. Não conseguiu olhar para a cara de Amon, talvez não conseguisse fazer isso nunca mais, mas o amava. Ela voltou a tomar chuva, mas agora caia do céu água em uma temperatura diferente, agradável. A túnica esclerótica tomou conta dos olhos e Lilaz desmaiou. Após nove meses nascia Vincent, um nome considerado esquisito por todos, mas era o nome que Lilaz queria e pronto, um nome que lhe veio à mente do futuro.


--- Lilaz, o governo me disse que o menino terá de ser sacrificado para que a próxima colheita vingue.


--- Terão de sacrificar a mim primeiro, Amon, nunca nosso filho.


--- Ele não é meu filho, Lilaz. E além do mais nem parece humano. Tem algo de divino, de amedrontador, é filho dos deuses.


--- Por isso mesmo, se o governo fizer tal coisa, será amaldiçoado.


--- O governo sabe o que faz, Lilaz.


--- Vamos fugir.


--- Não Lilaz, seremos castigados. Deixe-os sacrificar Vincent, pelo bem da nação.


--- Não.


Os anos se passaram e Lilaz se tornou uma mulher amarga. A perda do filho fora traumática. Estava ficando enrugada e não se achava mais bonita. Em uma noite, resolveu que Amon deveria ir falar com a rainha, pois queria alguma coisa valiosa que indenizasse a morte de Vincent. Amon compreendeu Lilaz e foi até a pirâmide onde a rainha vivia. Os seguranças ainda bem que não o viram e ele subiu a pirâmide até uma janela que dava para o quarto da soberana. Ela viu através do espelho que alguém a observava. Soltou um grito abafado pelo vento.


--- Você aqui, Amon? Um homem do bem aqui? É perigoso, pode morrer.


--- Vim porque Lilaz quer ser indenizada.


--- Sim, já estive pensando nisso, meu querido. Entre.


--- Ela não merecia, ela não merecia isso.


--- Ela mereceu, Amon. E alguém precisava ser sacrificado. Mas, de qualquer forma, tome este colar, vale muito.


--- Pra quem iremos vender um colar da rainha? Acharão que foi roubado.


--- Oh, sim, tem razão. Então o que você quer? Vida boa como a minha? Isso não posso oferecer a ninguém, a não ser para meus namorados.


--- Eu posso ser seu namorado?


--- Até que você é interessante, Amon, mas vou pensar no seu caso. Lilaz iria ficar morrendo de ciúmes se soubesse, acho ruim...


--- Ah, ela não se importaria. Ela mudou muito, rainha. Na verdade, sinto que a repugno. Sai pelas matas quando fica irritada e volta feliz. Parece que vai ser sempre assim.


--- Nossa. Psiu, ouça. O som de um cometa. Deve ser dos grandes, pois nunca ouvi um som assim. Oh, estava certa. Venha até a janela, venha ver que cometa lindo.


--- Não é um bom sinal.


--- Cale-se. Agora tire minha roupa, preciso deitar-me. Se quiser ficar, tudo bem.


--- Fico.


Lilaz saiu naquela noite para as matas e nem sentiu que Amon estava ausente. Olhou para o interior da casa como se fosse a última vez que olhava para algo. Sentiu saudades antes mesmo de partir. Livrar-se-ia finalmente de Amon e daquela vida que levava, que não lhe era mais satisfatória. Precisava ir embora. Amon compreenderia. Ele sempre seria compreensível por toda a eternidade, ela sabia.


--- Mas me diga uma coisa, Lauro, você então foi Amon?


--- Sim, sei que fui.


--- Mas afinal, a rainha lhe deu ou não a tal indenização?


--- Ela me deu uma vida boa.


--- Nunca vi uma pessoa assim imaginativa. Pior que a qualidade da imaginação não parece ser razoável. Mas pensei que você fosse católico, que você não acreditasse nessas bruxarias que se chamam outras vidas.


--- Sei que depois do período neolítico tive mais algumas vidas, mas...prefiro não contá-las.


--- Só essa aí já me choca. É pura invenção dessa sua cabecinha, seu malandrinho. Vou me arrumar para deitar. Essa rainha egípcia devia ser uma graça, não?, pra te atrair.Tenham uma boa noite. E Oliver, por que você está aí tão quietinho? Perdeu a língua? Vai se deitar, vai.


--- Não quero, vovó, estou com medo. Vou dormir na cama de Lauro.


--- Vó?, não sou sua avó.Dois marmanjos dormindo em uma cama de solteiro? Ah se eu não fosse santa! Está certo, está certo, isto é, se Lauro concordar, mas eu sei, eu sei que concorda. Agora vão, chispem daí. Perdoa meus pecados, oh Senhor!


--- Boa noite!, bradaram Oliver e Lauro, em coro.


Dormiram os dois abraçadinhos, e para Lauro, Oliver era um ser raro de se encontrar, um ser que não lhe provocava calor, um ser úmido e frio. Para Oliver, que agora dormia, Lauro o protegia do mundo-buldogue. Lauro ficou de olhos abertos e pensou no irmão. Por que resolveram inverter os papéis? Se a senhora Roosevelt soubesse que conversou a noite inteira com Oscar, teria um ataque. Não sentia mais que se chamava Oscar, era bom ser chamado de Lauro. Pegou a mão de Oliver e a beijou. Como estaria Oscar, ou melhor, o verdadeiro Lauro, no momento, vivendo naquele apartamento da Bela Vista, tendo deixado namorada aqui em Londres, emprego, amigos? Isso não importava muito. A vida do irmão em Londres era uma delícia. Precisava de um emprego, pois de auditoria não entendia nada, fora demitido. Passara a escrever poesias. A senhora Roosevelt estava preocupada. Afinal, não poderia manter Lauro em sua pensão caso ele não pagasse, mesmo sendo amiga dele. Mas pelo que o jovem de quarenta anos lhe dissera, o dinheiro do fundo de garantia fora aplicado e rendia juros. Então, tudo bem, pensou ela, bocejando e em seguida pegando no sono.


Lauro e Oscar. Gosto muito deles, por isso os observo tanto. Mas como estará o verdadeiro Lauro neste instante? Um segundo e já o fito, chorando em seu apartamento, solitário, sem saber o que fazer, vivendo a mentira do irmão. Desde a pré-história admiro esses dois.


--- Alô, quem fala?


--- É Saulo.


--- Como achou meu número de celular, senhor Saulo?


--- Venha até minha casa.


--- Como? Nem o conheço. Quem me garante que não é um trote?


--- Tudo bem, Oscar.


Oscar resolveu sair naquela noite de lua azul. Estava se sentindo sozinho, mas fazer o quê? Olhavam-no como um...aliás, nem o olhavam, evitavam encontrar seu olhar. Sentia-se um lixo. Faltavam dois minutos para a meia-noite. Era finalmente quase Domingo, um dia solar. Queria encontrar agora as paixões do futuro, se é que haveria paixões no futuro. Andou pela São Paulo deserta e repleta de mendigos, acendeu um cigarro e olhou para o céu nada estrelado. Garoava. Uma menina veio lhe pedir umas moedas, mas ele disse não, sentindo-se culpado logo em seguida; mas afinal, dar esmola ou não dar lhe trazia de qualquer jeito culpa. A menina se chamava Paola, vivia na favela e sempre que podia vinha até o centro em busca de umas moedas. Estava juntando dinheiro, queria ser advogada. Depois que aquele homem nojento lhe dissera não, ficou com uma terrível vontade de se prostituir. Parou em uma esquina e pôs os seios fartos à mostra. Um carro chique parou. Ela entrou sem dizer nada. O homem do carro se apresentou como Paulo, Paulo Gabriel.


--- Você tem família?


--- Não, moro com uma gangue na favela.


--- Gangue, que horror!


--- Estou juntando dinheiro para ser advogada.


--- Há faculdades que não são pagas. Você estuda?


--- Não, nunca fui à escola.


--- Quer trabalhar para mim?


--- Mas o senhor nem me conhece.


--- Eu tenho uma ótima intuição, jamais me engano. Você irá trabalhar para mim de empregadinha, aceita?


--- Aceito. Mas estou assustada por alguém me tratar tão bem. O senhor é um anjo ou então uma pessoa louca.


Saulo era belíssimo. Foi essa a impressão que Oscar teve quando o viu na porta do prédio. E era rico e famoso. O irmão tivera bom gosto. Mas o que fazia aquele deus ali, por que estaria se rebaixando novamente? Saulo apenas lhe sorriu e sussurou um sinto muito, com aquela boca que remetia a paraísos extintos. Oscar sentiu o quanto o irmão havia sofrido e quis se vingar. Iria se passar pelo verdadeiro Oscar.


--- Você por aqui, Saulo? Há quanto tempo! Nem acredito...pois você fugiu de mim como os demônios fogem das cruzes mais sacras!


--- Eu sinto muito, sinto muito. Meu namorado está descendo, ele mora nesse prédio.


--- Coincidência chata para você, não é?


--- Você é um homossexual.


--- E você é o quê?


--- Eu sou, mas sou por opção. Agora vai, vaza. Me dá licença que tenho mais o que fazer. Estou procurando um apartamento para alugar neste prédio. Quem sabe depois que você for despejado eu...


--- Eu não ouvi isso, amor, ouvi?


--- Não, você teve uma alucinação.


--- Posso te beijar.


--- Na boca nunca; essa sua boca sem-vergonha me enoja. Quem sabe eu te beijo quando você estiver num ataúde vagabundo como você.


--- Te abraçar, pelo menos, posso? Você vai acabar virando homem. É um desperdício.


--- Eu lhe diria o mesmo não fosse sua idade.


--- Eu continuo apaixonado, mas você nunca soube, eu não te contei. Até logo.


--- Tchau, nem pra amizade.


Não, não seria possível qualquer tipo de vingança. Saulo era jovem ainda, tinha uma vida pela frente. E como era um anjo, jamais envelheceria. Oscar não entendia o porquê de uma população desconhecida de repente participar dessa história. Segundo o irmão, o Oscar real, gente estranha começara a destratá-lo nas ruas, desviar sua atenção para o fato de que ele era afeminado. "Essa bichinha, esse Oscar, é um problema", etc. Não havia dado certo esse romance, e isso satisfizera o populacho. A mídia mais dia menos dia soltaria algumas fotos do famoso Saulo, fotos em que ele apareceria com certeza sorridente. Lauro, agora Oscar, odiou a própria boca por uma fração de segundo e sentiu que perderia os dentes, teria câncer, algo assim. Subiu até o apartamento e voltou a ler o diário do irmão, agora Lauro.


"Uma paixão não é imedicável: uma aspirina pode aliviá-la. Saulo me deixou assim como os outros: sem dar muitas explicações. Mas pelo menos foi o mais claro até agora, não com palavras. Não me sinto macho quando digo estas coisas. Devo ser um machista, todavia. Lauro está na Inglaterra e está recebendo muito dinheiro. Vai me ajudar, tenho certeza. A não ser que torre a grana, algo bem dele. Quizeram me internar esta manhã por que tive piti. Todo mundo no prédio ouviu o que eu disse a respeito de Saulo. Mas já passou. Quando eu tiver sessenta anos, Saulo terá cinquenta. Como a vida dele é linda! Estou com inveja, estou sendo egoísta querendo-o só para mim. Sei que ainda vou sofrer por causa dele, quando o ver na tv, em alguma revista, em algum jornal,na internet, ou mesmo pessoalmente. Vou ter ciúmes, tenho certeza. Talvez ele me bata ou se vingue; ele irá me deixar com raiva.Talvez ele tenha me deletado da sua mente. Não tenho uma personalidade atraente. As outras pessoas, as que deram certo, essas sim são explosivas. Sou desprezível.
Ps - Ah, diário, estou escrevendo alguns poemas. Naturalmente escrevo mal, mas estou tentando. Ninguém talvez mereça. Afora o esteriótipo pouco aceitável, também sou medíocre."


Na Europa, Lauro se despediu de Oliver e lhe disse que não ia querer naquela noite dividir cama com ninguém, ainda mais com um menino mimado pela avó. Oliver não se importou e entrou no seu exíguo quartinho rapidamente. Resolveu que não seria mais um menino, que iria desenvolver o seu físico, a sua mente, o seu espírito. Dormiu profundamente em questão de segundos. Lauro fez um roteiro das agências de empregos onde iria bater e depois resolveu escrever uma poesia. Não era um bom poeta, mas escrever pelo menos o acalmava. Achava-se lento para aprender, para reter o vocabulário de qualquer língua. Não tomou seus remédios e por um momento pensou que poderia causar pânico nas pessoas, já que por vezes fazia coisas sem pensar, coisas que o deixavam com uma superculpa; era um inconsequente e um irresponsável.


Furacão solapa o dia,
Domingo sem sol , doente,
Gato negro que não mia,
Do mar a onda está ausente.


Vestido da flor rasgado,
Esperança em mim, pra quê?
Não me olham nem de lado,
Ninguém me olha nem me vê.


Transmutei o medo em sexo,
A paixão em vil estima,
Algo simples em complexo,
O abismo no lá em cima.


O dia começou mal. A senhora Roosevelt acordou a todos como de costume, às seis da manhã, mas Lauro recusou-se a levantar. Disse à mulher que havia pago o aluguel e que tinha direito de acordar quando bem quizesse. As pensões eram assim, qualquer pensão, em qualquer lugar do mundo. Mesmo amuado, Lauro se levantou e ficou na fila para o chuveiro. Como sempre levantava apertado para urinar, acabava mijando na pequena pia do quarto. Achava que as pessoas em geral não levantavam apertadas ou tinham um pacto amigável com suas bexigas. Saiu da pensão de paletó e calça jeans e se recusou a tomar café. Oliver foi com ele; ambos gostavam de andar juntos. De noite Oliver trabalhava de garçom e chegava em casa por volta da uma da manhã. Foram andar por uma Londres desconhecida e monótona.


--- Oliver, que tal nos mudarmos para França. Dizem que lá as coisas são diferentes.


--- Para quê, amigo. Vejo que a Europa é uma só.


--- E eu vou arranjar emprego de quê, me diga?


--- De traficante.


--- Nem pra isso vão me querer. Olhe, chegamos em uma agência de empregos. Antes de eu entrar, vamos nos despedir. Nós podíamos alugar um apartamento aqui em Londres, só nós dois. Seria o máximo.


--- Não sei, acho que melhor seria eu voltar para o Brasil. Quanto a você não. Apesar da idade, com essa carinha pode ter cem namorados.


--- Você não está pensando que sou gay, está?


--- Eu tenho certeza. Esse seu jeitinho não engana ninguém, Lauro.


--- É, meu caro, precisamos ir ver algumas garotas. As pagas são as mais fáceis, mas e dinheiro?


--- Pois é, e aqui elas devem cobrar em euros.


--- Faz o seguinte. Vai pra casa dormir mais um pouco e amanhã a gente conversa com mais calma.


--- Está bem. Até logo, amigo.


Oliver foi andando devagar, estava meio tonto. Entrou em um bar e no balcão, pediu um gim. Bebeu tanto que na saída resfolegou um vômito verde no meio-fio. Alguém o cutucou nas costas e se apresentou como Walter.


--- Garoto, acompanhe-me. Sou médico e quero ajudá-lo.


--- Não, acredito. Cof, cof. Um inglês querendo me ajudar?
--- Vamos até o meu consultório.


Oliver relutou um pouco, mas cedeu ao pedido. Depois de uns trinta minutos ambos os dois estavam em um consultório de paredes flamingo. O ar parecia-lhe rarear, as janelas estavam fechadas. O médico injetou-lhe uma dose de vitamina b12, pois o achou anêmico. Depois mandou que se deitasse em um divã. Dr. Paul era um homem alto e esguio, tinha um corpo atlético e as mãos grandes e trêmulas. Oliver lenvantou-se em um sobressalto e lhe pediu água; bebeu-a animalescamente. Olhou para o médico e disse:


--- Eu não sei beijar. A única namorada que tive não gostava de beijar. Ela queria somente sexo. Gostaria que alguém me ensinasse...


--- Você quer que eu o ensine a beijar?


--- Sim.


--- Mas você e eu somos homens até segunda ordem. Se você fosse uma mocinha eu iria pensar no seu caso. Mas vejo que é um marmanjo. Você não se envergonha de dizer tal estupidez? Olha que posso processá-lo por assédio, seu vagabundo. Pegue um bife macio e vá mordiscando.


--- Não como carne. Sou vegatariano.


--- Outra estupidez. Agora saia, saia do meu consultório senão eu chamo a polícia. Bastardo. Aposto que é português.


--- Por favor, dê-me um atestado pra eu não precisar trabalhar hoje.


--- Esses meninos. Está bem.


Oliver esperou Lauro chegar para lhe contar seu dia estranho, até sobre o beijo que não roubou. Mas quem acabou contando coisas que não devia foi Lauro.


--- Sabe Oliver, vou lhe contar um segredo, mas terá de ficar somente entre nós.


--- Guardo muito bem segredos, pelo que sei.


--- Não sou Lauro. Meu nome verdadeiro é Oscar. Lauro é meu irmão gêmeo. Trocamos de identidade.


--- Credo, mas por quê?


--- Lauro não quis me explicar os motivos, mas eu topei. Talvez ele quizesse que eu mudasse de ares, para esquecer Saulo, esquecer um relacionamento estranho que tive e que se acabou sem mais nem menos. Eu quis me matar. Agora já estou melhor, mas ainda penso em Saulo, mesmo o odiando um pouco.


--- Mas fale, como é que esse Saulo é?


--- Moreno, corpo atlético, no primeiro encontro um amor. Mas idependente do primeiro encontro ele sempre será um amor. Não o vejo faz mais de um cinco meses. Merda. Mas posso imaginar por que não deu certo. Foi a população desconhecida.


--- O quê? Que idiotice pensar que foram pessoas desconhecidas que fizeram com que a sua relação não desse certo! Só se...então ele é da classe média-alta.


--- Eu passei máquina zero no cabelo e Saulo não gostou. A partir daí começou a me dar um chega pra lá mais pesado. Mas sinto não ter havido mais diálogo. Eu errei em alguma parte. Não tenho corpo sarado, sou mais velho do que ele...


--- Chega, Oscar. Não tinha que dar certo. Pra que se martirizar assim? E além do mais esse tipo de relação é condenado pelas religiões, pelos médicos, até pelos da nova geração. Eles dizem que é pecado, que traz sofrimento. Se bem que pra Saulo, que deve ter uma vida mais ativa sexualmente, não foi tão difícil esquecê-lo. Aposto que ele já nem se lembra de você. Parte para outra logo.


--- Como? Saulo foi a única pessoa que tomou a iniciativa comigo nesses anos todos. Não haverá outra pessoa. Ele cristalizou por mim em uma única noite. Trabalha muito, sua muito. Agora estou perdido, sei que irei passar fome, que não irei arrumar emprego, que não conseguirei pagar minhas contas. Odeio por vezes Saulo, mas ele não teve culpa, não agiu de má fé. Apenas deixei de agradá-lo, deixei cair a máscara, entende?


--- Acho que eu me matava. Mas me conte como a população começou a perseguí-lo.


--- Fiquei com aspecto feminino, de repente. Perdi o cabelo porque achei que minha careca era charmosa. Mas não é. A população não gostou. Via-se nos meus olhos que eu estava apaixonado por um homem.


--- Vai ver é isso. Mas por que você tenta racionalizar tudo? Tem coisas que não precisam ter explicações. Deixa estar, amanhã é um outro dia. Venha se deitar comigo. Pensei que você fosse homem, daqueles de pegar muitas mulheres. Claro, você ficou chorando, com a carinha inchada, queria o quê, que as pessoas te oferecessem colinho. Todos te acham uma bichinha. Nem isso de colinho aconteceu com ele, meu caro, que tem mais cultura, é mais bonito, mais simpático e mais viril. Você é pobre, um miserável, um coitado.


--- Mas agora estou na Inglaterra. Meu Deus, estou na Inglaterra. Que massa!


--- Não, meu amigo. Você continua no Brasil. Só que se você ficasse lá, talvez ele te procurasse.


--- Ele?Jamais. Minha vida é totalmente descartável pra ele, eu sou descartável para ele. Nem se ele fumasse crack iria me procurar. Tudo acabou, tudo acabou em risos e silêncio. Ele não tem tempo e tempo tem que ser sempre dinheiro.


--- Talvez Saulo procure seu irmão pensando que ele é você.


--- Não há perigo, creio. Morri para Saulo. Minha vida é um lixo perto da dele e da de milhões de pessoas.


--- E o que mais?


--- Quando passei a máquina zero, ele se recusou a beijar-me novamente. Devo ter ficado com um aspecto horrível. Na certa agora ele está sozinho, suando na cama com os meninos que pega na rua.


--- Sim, e você está mais sozinho ainda, sem ninguém, nem meninos. Pena que você não é meu tipo e nem o dele. Aliás talvez seja o dele, mas ele o queria mais gostoso.


--- Sim, também. Mas ele é uma pessoa volátil como todos os homens.


--- Não generalize assim, Lauro. É bom ser discreto para não ser assassinado. Sua família sabe que você é assim?


--- Sim, minha família é meu irmão.


--- Todos nós temos um certo limite, e quando ultrapassamos esse limite nos tornamos meio que ignorantes. Seria um limite de compreensão, eu acho.


--- Eu tenho meus limites. Mas creio que isso não envolva bens materiais. Estou pensando em Lauro, ali no Brasil, sozinho, junto de meus amigos. Na certa ele está trabalhando no boreau onde eu trabalhava.


--- Você trabalhava em um boreau?


--- Sim, em um boreau, e daí? Claro que eu sempre quis coisa melhor. Eu também vendia planos de saúde, mas era péssimo em vendas, não me esforçava muito. E nos birôs havia sempre alguém de uma forma ou de outra se mostrando superior a mim, mostrando-me o que eu realmente era, um vagabundo-afeminado. Ninguém me olhava na cara tampouco me cumprimentava; mas a culpa por não cumprimentar alguém sempre recaia sobre mim.


--- Por que você não tenta vender planos de saúde aqui, neste país de primeiro mundo?


--- É, ainda não pensei nisso.


--- Seria maravilhoso, mas você não domina bem a língua.


--- Já domino sim, e muito bem. Aprendo rápido, mais até que você.


--- Oscar, será que o leitor deste livro está entendendo essas histórias? Não sei, talvez confuso, pelo que sinto, esteja somente para o autor.


--- Eu não entendi o que você quis dizer, Oliver. Sinceramente, não entendi. Só estou pensando em meu irmão, ali, talvez sem fazer nada, tomando a vida de vadio e infeliz que eu tinha.


--- Eu posso vê-lo. Ele está no apartamento escrevendo. Ah, ele escreve poemas também. O telefone tocou e ele está indo atender. É uma tal de Rebecca.


--- Sim, Rebecca é minha amiga de festas.


--- E o que ele está dizendo para ela?


--- Ela diz: vamos sair hoje? Estou com uma vontade de sair! Mas não há muita coisa. Há um jantar na Vila Olímpia, mas é muito longe para irmos de ônibus. Que merda ser pobre, viu! Se eu fosse rica, pegava um táxi e pronto. Ele diz: Ah, vamos de ônibus, vai; estou a fim de me embebedar, de esquecer-me dessa minha vida que para muitos é um vidão.


--- Ah, ele está igualzinho a mim. Ela jamais irá saber que ele não sou eu.


--- Ela diz: e como está no trabalho? Ele diz: está estranho, as pessoas são estranhas, sinto-me inferior. Sinto-me como se não existisse. Eles me acham um doente. Até falaram outro dia que eu era uma bichinha doente, que me odiavam. Ela diz: não foi pra você. Você acha que iriam falar uma coisa dessas com a pessoa estando ali do lado? Ela diz: Ninguém é mau a esse ponto, Oscar. Você precisa ter mais educação. Ele diz: estou com medo, Rebecca. A vida parece que vai terminar a qualquer momento. Estou esperando a morte. Eu não tenho mesmo educação. As pessoas sempre reclamam disso; sinal que me compreendem mais do que imagino. Não sei que caminho tomar. Como vendedor de planos de saúde parece que não sirvo. Fui até à corretora hoje e vi que a maioria tem lap-top, que a maioria anda muito bem vestida. Eu jamais irei chegar nesse ponto. Se em seis ou sete anos nessa área não cheguei, não chegarei mais. Mas gosto de vender planos, de ser corretor.


--- Oliver, está bom, chega. Não quero mais saber dessas conversas de Rebeca com Lauro. Quero deixar de fumar. Será que a populaça daqui é como a de lá. Lá eu sentia que só fariam amizade comigo se eu fosse lobotomizado ou algo assim, se eu perdesse uma perna, um braço...


--- Assim ia ser pior, Oscar. Você precisa mesmo parar de fumar. Vocês, aliás. Seu irmão é um indefinido, de qualquer forma está fodido. Você se definiu mas me parece um infeliz.


--- Esses desvios...Esses desvios um dia irão passar...


--- Não passarão, faz parte de você assim como você fazia parte da vida do brasileiro. Era uma espécie de estimulador de compaixão. Vamos nos deitar. Estou com sono. E hoje nem fui trabalhar. Na certa seu irmão, pelos dados que obtive de você, deve estar ouvindo de gente desconhecida que ele trabalha em um birô.


--- Ah, com certeza. Quando o assunto é miséria, caminhar para trás, é com o brasileiro mesmo.


--- Você está querendo dizer que nunca teremos nada?


--- Não, por mais que lutem. Mas vocês não sabem lutar, devem ter o Marte mal aspectado.


--- Ah, agora deu pra ser astrólogo?


--- Sim, eu sempre gostei de astrologia, e sempre li coisas sobre o assunto. Mas não vou perguntar seu signo, pode ficar tranquilo. Sei que você é de Capricórnio.


--- Capricorno, isso que você quis dizer?


--- E seu ascendente certamente é diferente de seu irmão gêmeo, pois o ascendente muda a cada quatro minutos.


--- Não acredito nessas coisas, Oliver. Acho uma bobagem. Ter um Marte mal-aspectado parece que restringe um pouco as coisas. Como li uma certa vez: as estrelas inclinam, mas não determinam.


--- É, é, você tem razão, seu coitado. E aí, conseguiu algum emprego?


--- Não, mas ficaram de me chamar. Em todos os empregos que tive sempre achei que tinha problemas, que não gostavam de mim. Acho que é um pouco de homofobia da parte deles, e essa homofobia tende a imperar no mundo todo.


--- Arrume uma namorada e acaba com essas difamações.


--- É, e eu queria ter um filho, mas talvez por um método mais puro, ou seja, inseminação artificial.


--- Pois é, hoje em dia está tudo mais moderno. Pode-se prescindir do ato sexual. Mas ter um filho para quê?


--- Sabe, desde de minha adolescência que sofro um pouco por causa das crianças, ou melhor, por causa das mães delas, que vêem algo horrível em mim. Não sei exatamente o que pensam , mas quando me aproximo dos filhos delas, não intencionalmente, eles começam a gritar para que eles saiam de onde estão, é horrível.


--- Você se sente horroroso por isso?


--- Um pouco. E fico a pensar o que vem à cabeça delas. Coisas boas não são.


--- É a intuição materna.


--- Se é a intuição materna então realmente tem algo em mim perigoso que desconheço.


--- Fico admirado se isso for verdade. Porque não acho que você seja uma pessoa do mal. Está com medo das crianças, agora, é?


--- Sim, fico apavorado quando aparece uma na minha frente, pois sei que a mãe dela vai dizer para ela sair dali, se afastar, correr, fugir.


--- Nossa, então te vêem como um monstro.


--- Mais ou menos.


--- Você deve estar exagerando, Oscar. Já te acho um ignorante por dar valor a essas coisas, mas se realmente isso acontece, essas mães então são boas mães.


--- Só Deus sabe, só Deus sabe, Oliver.


Interessante. Os irmão gêmeos vão ser sempre tidos como loucos e gays e jamais terão nada materialmente, nem se desenvolverão muito espiritualmente. Mas não os vejo como pessoas do mal. Durante todos esses séculos pude perceber que a humanidade não mudou muito; por incrível que pareça há trezentos anos as pessoas eram mais liberais do que são hoje. Lembro-me também da cruxifição, daquela cruz caindo, mas antes os soldados passando rentes a ela, em marcha. Quem eram aqueles soldados, até hoje não sei. Lauro está no Brasil e me parece triste. A culpa talvez seja dele, afinal, foi ele quem deu a idéia de trocar de papel, coisa muito arriscada mormente em terras tupiniquins. Realmente ambos os dois são idênticos, mas não creio que a populaça desconhecida a qual tanto Oscar se refere, populaça perspicaz, irá achar que Oscar é deveras Oscar por muito tempo.


Oscar acordou por volta das cinco da madrugada. Seu nome era Oscar? Sim, agora era. Foi tomar um banho, mas antes disso esperou meia hora para poder fumar um cigarro. No café da manhã, geléia de pimenta e pão de milho, além do café. Oscar prescindiu do pão de milho porque continha ovo na composição. Tomou somente o café e passou o dedo indicador na geléia. Saiu de casa inseguro, e o pesadelo iria começar por mais um dia, por causa da sociedade. Sua vida na Inglaterra não era tão melhor do que esta. A senhora Roosevelt tinha uma disciplina invejável, tinha o tempo dela que no entanto não era o tempo dele. Saiu com sofreguidão, pois ao se olhar no espelho viu uma mulher, não um homem. Não sabia se uma plástica resolveria o problema. Sentiu a impopularidade do irmão, a perseguição sem explicação palpitar em todos os cantos da cidade. Não, não iria trabalhar como digitador, mas tinha a carteira de trabalho do irmão, não sabia onde iria arrumar coisa melhor. Andou pela rua dos desempregados, a Barão de Itapetininga e preencheu algumas fichas, entregou alguns currículos em agências de empregos de renome, mas de súbito sentiu-se velho e meio acabado. Vai ser difícil, pensou. A vida dos irmãos Rigoneto era uma vida cheia de fracassos. Alguém cutucou-o nas costas, ele virou-se e viu um homem alto, belo e bem-vestido. Seria Saulo?


--- Oi, como vai?


--- Oi, Oscar, e aí, trabalhando em algum birô?


--- Sim, claro. Há vinte anos que não saio desta vida. De certa forma me sinto um doente por isso. Tenho vergonha do tempo e de mim, por não ter feito nada de útil; talvez eu merecesse um tiro.


--- Não fale assim. Que tal irmos para um hotelzinho e...


--- O quê? Como é seu nome mesmo?


--- Marcinho. Vai dizer que esqueceu?


--- Sinto, Marcinho, mas parei. Você é quem iria pagar?


--- Claro, Oscarito, claro. Eu sempre paguei, não paguei?


--- Nossa vida de digitador é um lixo. Acho-me um lixo também. Não sei, não sei o que você viu em mim. Não sou homossexual.


--- Oscarito, todo mundo aqui por estas redondezas te conhece, conhece o teu corpo.


--- Se eu fosse mais forte te daria um murro. Por favor, saia da minha frente. Eu sou homem, faça o favor.


--- Que que é , ô imundo, lixo atômico? Agora deu pra regular esse cuzinho, é?


--- Não me leve a mal, Marcinho. Arrume outra pessoa, por favor.


Oscar quis sair correndo. As ruas estavam desertas, as ruas não eram mais ruas, eram campos áridos, sem vegetação. E pôs-se a correr, mas devagar. Pôs-se a correr, chorando de dor, de ódio da vida, de tudo. Era um fracassado, e ainda tinha aquilo, aquela coisa do irmão ser gay. Não queria mais ser Oscar, queria ser qualquer outra coisa, um lápis, uma nuvem, um carro. Queria voltar a ser Lauro. Parou em uma esquina, e parar em qualquer esquina era extremamente perigoso, pois poderiam vê-lo como um bandido, e acendeu um cigarro, cigarro que uma hora iria acabar, e ele ficaria desesperado procurando tocos pelo chão da cidade. Não, não se via fácil, não se admitia fácil. Precisava de mulher, mas onde estavam as mulheres?; nenhuma o desejava, nenhuma o olhava com desejo, era estranho. As pessoas que davam certo, que pareciam felizes e donas de si, fumavam haxixe; por essas pessoas ele se sentia atraído. Elas tinham o estilo de vida que ele queria ter. Mas jamais conseguiu ter uma pessoa dessa por um, dois anos. Nina fumava o baseado dela, mas ficaram juntos menos de dois meses; ela era volátil como os homens; necessitava da traição para ser feliz. Agora Nina estava morta. Sim, ele a havia enterrado na sua memória. Que vida era aquela, que mediocridade era aquela? Não quis ter a vida dos pais, dos avós, mas agora a tinha. Pena que não fora fatídico a ponto de saber como seria sua vida, pois assim poderia mudá-la. Mas na verdade, ele fora bem fatídico, sim senhor. Aquela negatividade nutrida dia após dia fizeram dele o que ele era hoje. Voltou para onde morava, desnorteado. Deitou-se na cama e dormiu um sono profundo. Marcinho apareceu-lhe em sonho como um médico e deu-lhe dois meses de vida. Acordou assustado. Marcinho não era médico, mas parecia um. Vivia na zona norte, sozinho, e era um pobre tarado, um eterno apaixonado por Oscar. Tivera algumas oportunidades no decorrer de sua existência, mas as que deveras aproveitou foi como gigolô. As mulheres de idade o adoravam. A solidão corroía suas asas, asas somente imaginadas, jamais reais. Sim, porque por dentro, Marcinho era de uma extroversão fora do comum, um sonhador ambulante, mas exteriormente um tímido de dar um dó danado. Uma noite, quando abriu a porta de sua casa, deixada de herança pelos avós, deparou-se com várias serpentes. Quem pôs estes bichos aqui?, pensou, horrorizado. Na certa era alguma de suas ex-amantes-novas-ricas querendo vingança a todo custo. Ele não gostava de morar em bairro, queria era morar no centro, como Oscar, como tantos outros que deram certo. Mas estava fadado a ficar ali para sempre, até a morte. Oscar não me reconheceu esta manhã, pensou, enquanto assistia a um programa de tv. Estaria o menino o desprezando? Na Europa, Lauro, agora apelidado de Laurito por Oliver, escrevia...


Quero ser gente,
Não doente,
Gente, gente, gente....
Sou a serpente,
Que te assusta,
Te come,
Te pica,
Quero ser gente.
Não doente.
Gente, gente, gente...