QUADRANGULARES
Daisy Melo
 
 

Uma réstia da luz do sol passa esquartejando a cortina de sarja bege. Bom-dia. Eu olho em torno e percebo no teto, na luz brilhante de partículas de poeira, uma seta luminosa descendo em riste, ferindo o assoalho de tacos de madeira, antigo e desbotado. A luz brinca, se encolhe, se estica, tremelica e pousa reta na mesa da cozinha onde o pão e a manteiga esperam solitários.

Aqui dentro sou noite.

Levanto, estico-cansaço-o-peso-do-mundo inteiro. Arrasto as chinelas de quadrados cor-de-rosa puídas e finas como folha de papel. Encho de água a chaleira enquanto coço a cabeça-diabo-mais-um-dia.

Desperto. Aqui dentro durmo.

A água ferve, se agita, apita, estremeço. Olho no paralelogramo de lados iguais da janela, a rua lá fora. Os carros passam num movimento-pare-siga. Aqui dentro sou câmara lenta.

Meia-fina, batom-perfume. Escova no cabelo-faço-pose. Despojada de amor próprio me encaro com os olhos fechados. Uma imagem ainda-bela-ainda-jovem, esquadrinhada na moldura do espelho, me lembra um filme que esqueci. Pudera... Por dentro sou estátua.

No elevador me acuo num dos cantos-ângulos-retos. Uma caixa hermeticamente fechada, onde meço meus passos: um-dois-três-quatro e viro. Um-dois-três-quatro e viro. Um dadinho de azar que desce rápido. Mas por dentro sou lentidão.

Saio no dia e engolfo as pequenas brisas que ventam na superfície áspera da minha pele eriçada. Por dentro sou toda macia-hidratante.

Meu corpo é anguloso e esguio, ereto e firme, percebo no some-aparece no vidro da vitrine. Por dentro sou toda curvas, redonda, macia e quente. Bunda e pernas.

O metrô solavanca e a vida passa cinza-rápida-rápida pela tela da janela. Mas por dentro sou espera enquanto meu ângulo reto é perpendicular a linha da meia que desfia. Cubro-me, sinto frio de ar condicionado. Aqui dentro estou nua.

Na mesa quadrada, o visor brilha uma luz de fantasma. Eu lá, quadriculada, querendo sair. E o sorriso bordado-entre-dentes perfeitos à custa de aparelho e clareador. Sim-senhor-não-senhor. Por dentro sou gengiva.

E bato o ponto. Por dentro me solto, me livro, me desamarro... E recomeço. De-novo-de-novo-de-novo.

Sou círculo. Dentro e fora.