COMEÇAR DE NOVO
Vilson Palaro Júnior
 
 

I- Lana.

“Começar de novo e contar comigo, vai valer a pena ter amanhecido...”. É a música de abertura da série “Malu Mulher”, que eu e Clara resolvemos pegar hoje à tarde em uma locadora, pra matar saudade.

Clara foi embora assim que acabamos de ver o primeiro episódio. Deixei o dvd rodando e embora eu ainda olhe em direção ao televisor, sinto-me incapaz de ver o que nele passa, não sentindo, senão, a confusão mental do que vivemos há pouco.

Clara estava muito triste. Brigara com o pai. Sempre briga com o pai. Enquanto ela me contava os detalhes do caso, tomamos vinho, e, quando nos demos conta, estávamos nos beijando. Um beijo terno, afetuoso, como somos, eu e ela, quando conversamos, quando partilhamos nossas vidas, nossas dificuldades.

- O que foi que aconteceu?! Perguntou Clara, entre surpresa e apreensiva.

- Eu não sei. Não me tome em tom vulgar e nem me leve a mal, mas eu gostei muito do que aconteceu. Respondi, buscando manifestar meu carinho e acalmá-la.

Clara vem de uma família complicada. A mãe é inculta, submissa, dona de casa à antiga. O pai é turrão, grosseiro e inseguro. Nunca deu carinho ou atenção à filha.

Comigo, a vida foi diversa. Descobri cedo que tinha talento para o palco, para interpretar, e, ainda adolescente, quis dirigir meus estudos, a minha vida, para uma carreira no teatro.

- Imagine! Uma vida de libertinagem! Esqueça! Procure algo mais de acordo com a sua condição, como fazem suas amigas. Pra que inventar essas modas, essas coisas diferentes? Disse minha mãe.

E foi a oposição em casa que acabou me levando para o magistério.

Estudei letras e, hoje, após os percalços comuns a qualquer carreira, chefio o Departamento de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo.

- Um sucesso, o orgulho da família! Dizem meus pais quando nos reunimos em família, o que não me deixa exatamente feliz.

Galguei postos e consegui alcançar uma condição sócio-econômica que me permite viver materialmente bem. O preço? Bem, tenho as horas do meu dia empenhadas no trabalho, nos estudos, nas despesas necessárias para me manter nessa situação de sucesso. Porém, me assusto ao constatar a solidão dessa situação de poder.

Minhas relações pessoais têm sido frustrantes, pois toda tentativa de estreitamento me soa falsa, paliativa, semelhante à minha escolha profissional.

Resumindo, não gosto do que faço nem do modo como vivo.

Clara... é em sua companhia que eu tenho descoberto os valores que me importam, e por mais paradoxal que possa parecer, isso só foi possível por conta de nossa condição de iguais, que por estar configurada no diferente, liberta-nos da representação de papéis. Assim, livres, podemos ser o que somos, pessoas com desejos e necessidade de viver.

A surpresa do beijo trocado confirmou o amor que já há algum tempo eu sinto manifestar-se entre nós, um sentimento que antes que tivéssemos tido tempo para assimilar em nossas almas, transcendeu a condição interior e se materializou no ato fisicamente vivido.

- Olha Lana, eu não sou lésbica e nem quero viver com você como eu vejo casais de homossexuais por aí! Me disse Clara, ainda assustada.

- Nem eu. Respondi, acrescentando: - Sabe... na cidade onde cresci havia um cara que era homossexual e era triste ver como aquela sociedade só permitia a ele expressar o que era caso exercesse um papel ridículo, estereotipado, hilário mesmo. Isso eu não quero pra mim e nem pra nós. Quero é construir uma relação diferente do que vimos e vivemos até hoje. Se fizermos como você diz, seremos exatamente como a bicha da minha cidade e estaremos confirmando o rótulo social.

A confiança no que sinto me permitiu falar com segurança. Agora, diante do televisor e sem ver o que nele passa, me sinto confusa, entre o pavor da descoberta de ver em mim aspectos que me fazem igual à bicha de minha cidade, e a certeza interior de que no viver esse amor com Clara é que se encontra a chance de redimir minha frustração por não ser, hoje, nada daquilo que eu realmente quero, de me redimir da renúncia ao diferente, feita no passado, e que me priva hoje de ser uma artista.

“Começar de novo e contar comigo, vai valer a pena ter amanhecido...”. A música vinda da tevê me toca o coração pra, quem sabe, despertar-me pra uma nova vida.

II- Clara.

“Começar de novo e contar comigo, vai valer a pena ter amanhecido...”. É a música de abertura da séria “Malu Mulher”, que eu e Lana resolvemos pegar hoje à tarde em uma locadora, pra matar saudade.

Ainda confusa pela lembrança do que vivemos há pouco, me dou conta de que já é hora do jantar. Não vi as horas passarem. Não vi nada passar. Eu havia contado para ela alguns problemas que venho tendo com meu pai. Assistíamos a um dos episódios de “Malu Mulher” e quando dei por mim estávamos nos beijando.

- Como pôde acontecer? Será mesmo amor o que eu sinto? E por que é que eu não consigo me afastar dela? Venho me questionando e não tenho respostas.

- Sei é que soa engraçado pensar em como a vida me surpreendeu.

Tive alguns namorados, mas nunca deu certo; em todos eles eu achei que faltava uma certa iniciativa masculina de que meu pai falara a respeito quando eu tinha quinze anos, sem, entretanto, me explicar de forma clara o que pretendia dizer. Na época, eu namorava Mário, colega de escola que, segundo meu pai, não tinha essa qualidade essencial, e, mesmo sem saber o que era essa tal iniciativa, aceitei a advertência. Eu, sinceramente, gostava de Mário, mas acabei deixando-o, como também deixei os outros que a ele se seguiram.

O amor por Lana, embora eu já a conhecesse há algum tempo, veio mais recentemente, enquanto eu namorava Cláudio. Foi um sentimento que me veio como uma visita indesejada. Logo por uma mulher, em quem eu jamais procuraria as nuances da tal iniciativa masculina. Mas acho que é justamente por isso que, ao insistir nessa relação, apesar das dúvidas sobre o que sinto, eu pude me dar a chance de contrapor algo novo ao antigo modelo de me relacionar. A liberdade me permitiu questionar o velho modelo. Não houve mágica, porém.

Foi Cláudio quem terminou o namoro e ao fazê-lo me disse:

- Desculpe, mas não há homem no mundo que possa atender seu nível de exigência. O homem que você quer não é humano, não existe.

Jantávamos num restaurante e eu havia propositalmente deixado o copo de vinho próximo ao braço do garçom, que acabou por derrubá-lo sobre o meu vestido. Esperava que Cláudio tirasse satisfação com ele, que fosse agressivo, que tivesse uma iniciativa que eu supunha ser autenticamente masculina. Ele, entretanto, limitou-se a advertir o garçom, em tom cordial, para que fosse mais cuidadoso.

Aquilo me pôs possessa, de cara fechada, e, ao sairmos, ele me indagou:

- O que há com você? Afinal, o episódio com o garçom não foi tão grave assim. Mal sujou o seu vestido!

- Não foi grave pra você! Respondi. – Com que espécie de homem venho me relacionando! Nem sequer me defende. Nessas horas, apesar de toda a ignorância, preferiria estar com o meu pai, pois tenho certeza que ele quebraria a cara desse garçonzinho!

Foi então que ele me disse que não havia homem no mundo que atendesse meu nível de exigência. Aliás, me disse mais: que o único homem do mundo que me faria feliz seria o meu pai. Que eu fosse pra perto dele e fosse muito feliz. E se foi.

Ele se foi, mas suas palavras ficaram comigo, em minha cabeça, principalmente quando me mandou viver com meu pai, de quem não gosto em especial.

Percebi, então, que, de fato, vinha criando situações difíceis não somente pra ele, mas pra todo homem com quem me relacionei. O que era, afinal, a tal iniciativa masculina? Não sei dizer. Talvez nem meu pai saiba. Mas sei que essa idéia me impediu, desde os quinze anos, de enxergar os homens com quem me relacionei. Sei também que é muito doloroso me ver assim, uma pessoa com aspectos tão medonhos.

E agora vem Lana, o beijo que trocamos, o sentimento que me pede pra ser resolvido. É tudo tão novo. Sinto-me atordoada.

Não consigo jantar e vou ao computador. Ao abrir a caixa postal encontro uma mensagem de Lana.

Abro. Ela contém uma música. “Começar de novo e contar comigo, vai valer a pena ter amanhecido...”. A música me toca o coração pra, quem sabe, despertar-me pra uma nova vida.