METAMORFOSE
Ricardo Lahud
 
 

Aconteceu. Sei disto no momento em que desperto, não preciso de um espelho ou dos olhos de outra pessoa para me confirmar a metamorfose. Como aconteceu, ou porque aconteceu comigo, ignoro completamente. Me escondo, corpo e rosto sob as cobertas, disfarço gripe para esconder minha vergonha. Só relaxo com o som das chaves na porta e a cantilena de despedida.

“Tchau, Tatá. Hoje é dia de balancete, não chego para o jantar. Beijos, se cuida meu amor.” “Tchau, amor”, respondo ainda com o lençol sobre a boca, não sei se minha voz vai trair minha condição.

Balancete é o cassete, mas não tenho tempo para isso agora. Ligo para o consultório, reincido na desculpa da gripe, mando cancelarem as consultas. Não sei se poderei voltar a clinicar depois do que me aconteceu.

Tento relaxar num banho de imersão com todos os sais aos que tenho direito antes de me preparar para enfrentar este novo mundo de tamanhos desafios. Me espremo numa calça justa de se abotoar na cama, bem que eu preferia uma mini-saia, mas com minhas pernas nesse estado, não vai acontecer. A blusa de leopardo tem o decote valorizado pelo sutiã estelionatário e como a ocasião é especialíssima não tenho pudores em reforçar o volume com meia dúzia de lenços de papel. Escolho o salto mais alto, mesmo que me moa os dedinhos, deixa minha bunda magnífica. Batom muito vermelho, porque minha boca é linda, sombra verde para realçar a cor dos olhos e brincos extravagantes para desviar a atenção do nariz. Está resolvido, plástica no nariz e silicone nos seios são providências urgentes, mas antes de tudo comprar sapatos novos que meus pés estão sendo triturados.

Na minha fuga esbarro na diarista que me olha como todos me olharão de hoje em diante, um misto de susto, medo e nojo: “Doutor Tarcísio, o senhor está bem?”. “Claro que não estou bem Rosa, claro que não estou bem”, ponho as mãos nos quadris para reforçar meu tom de impaciência – “ou por acaso você não notou que eu me transformei numa borboleta?”.