NATASHA
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Maria
Luísa Rocha
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Eu
temo pela minha espécie quando penso que Deus é justo. Hoje à tardinha fiquei sabendo da morte de Natasha. A bela e valente Natasha foi embora ... Talvez tenha ido encontrar-se com seu bebê que partiu há uns dois anos atrás e com outros que nem sei se existiram. Fiquei muito, muito triste e resolvi prestar minha última homenagem a esta magnífica criatura que, em certa ocasião, já chegou a me causar arrepios... Eu a conheci quando fui fazer uma ocorrência policial em um posto perto de uma favela na zona sul da cidade. Sentada ao lado de minha filha, que dirigia o carro devagar para localizarmos o endereço corretamente, já que era a primeira vez que íamos ao local, deparei-me de repente com uma enorme figura negra, mancando tristemente. Pedi para Luana parar por um momento e fiquei observando-a, sem saber o que fazer. Logo um senhor apareceu, empurrando um carrinho cheio de papelão. Sem disfarçar o afobamento, perguntei-lhe se a conhecia. Ele me informou que sim: era uma habitante da favela. Percebi que Natasha estava com o osso da tíbia aparecendo, embora a ferida já estivesse cicatrizada. Talvez sentisse muita dor, mas a resignação da certeza de que nada havia a ser feito determinava seus passos e a fazia caminhar em círculos. O homem me informou que, há um mês atrás, fora atropelada por um carro dirigido por um bêbado que não a socorrera. No mesmo local, ela também havia sido espancada pelos meninos da favela que sequer respeitaram seu estado de avançada e indesejável prenhez. Quase tudo na mesma época. Pobre Natasha... Prometi voltar no dia seguinte com socorro e realmente retornei, para surpresa do homem do carrinho do papelão. Quase fomos assaltados por dois jovens, enquanto realizávamos o resgate, eu, Luana e meu amigo Franklin. Com cuidado, colocamos Natasha dentro do veículo e saímos em disparada, para fugir dos bandidos. Fomos até uma clínica onde Franklin conseguiu, com seu prestígio, que Natasha fosse operada naquele mesmo dia. A cirurgia foi um sucesso. Enquanto se recuperava nesta clínica, para surpresa de todos, ela deu à luz um bebezinho que veio a morrer dois dias depois. Natasha teve que superar mais esta dor. Três meses se passaram: idas e vindas em casas de estranhos; eu pagava quantias exorbitantes para ela ter o direito de não estar na rua. A situação vinha se arrastando penosamente para nós. A solução seria um lugar definitivo e seguro para Natasha , o que me parecia um sonho quase impossível. Mas eu não iria desistir. Ela teria seu lugar ao sol, prometi isto a mim mesma. Questão de honra. Afinal de contas, sou teimosa como os bugres de minha família paterna. Finalmente, devido a tantas dificuldades, tive que levá-la para minha casa. Era o início da primavera. Os dias estavam ensolarados e as noites claras. A lua estava em plena forma, gordinha e cheia, promessa de mistérios no ar. Natasha entrou de mansinho, feliz por estar ao meu lado. Os sinos da igreja soaram seis badaladas. Hora do Ângelus. Suspirei, pensando no que os meus familiares iriam dizer e preparei-me para os argumentos. Entretanto, logo percebi, com enorme decepção, que trazer Natasha para minha casa não fora a decisão acertada. Minha cadela Luna não aceitou a intrusa, atacando-a de imediato. A guerra estava declarada: elas se enfrentaram pela madrugada adentro, sem trégua, numa luta extremamente violenta. Pareciam dois anjos caídos - ou dois lobisomens, tal era o horror dos caninos à mostra. Morri de medo e senti arrepios horripilantes com a energia de morte que impregnava a minha cozinha. Elas brigariam pelo território, até que uma tombasse vencida, ferida de morte. Tive que intervir e separei-as. Ninguém dormiu em casa nesta fatídica noite. Os vizinhos ameaçavam chamar a polícia para calar os uivos e a lua , dona redonda, zombou de tanta incompetência. De manhã, bem cedinho, levei Natasha embora, com o coração apertado, por mais um fracasso retumbante. Seu destino foi, novamente, um hotel para animais. Mas, graças às minhas fervorosas preces, a sorte começou a mudar. D.Eva apareceu de repente. Presente dos céus! Era uma senhora à procura de companhia para Bob, seu cão velhinho. Apressei-me e tratei de levar Natasha no mesmo dia - era um domingo, lembro-me bem - torcendo para que se comportasse e não brigasse com Bob, como fizera com a Luna. No caminho, expliquei isto a ela e observei que estava entendendo a situação, porque permaneceu tranqüila e quietinha durante todo o percurso. A casa era maravilhosa. O quintal, um sonho. Parecia cena de filme europeu: tinha até macieiras em flor e grama nova e fresca em todo o chão. Acho que o que mais me encantou foram as macieiras... Fiquei fascinada e desejei ardentemente que tudo desse certo para minha infeliz protegida. Acho que os deuses se compadeceram de mim e de Natasha, já que, prontamente , como num passe de mágica, D.Eva abriu seu coração e adotou com o maior carinho minha cadela rejeitada. Com a sensação de dever cumprido da melhor maneira possível, descansei e agradeci a São Francisco de Assis, meu santo querido de quem sou devota e amiga e companheira. Não vou pagar promessa porque não sou boa comerciante. Principalmente com santos. Ou me ajuda ou parto para outro. Afinal de contas, são tantos!... Foram mais de dois anos de paz, espaço limpo, comida farta e boa, um bom amiguinho e tranqüilo amor na vidinha outrora miserável de Natasha. Era tudo perfeito. Tal qual um filme mesmo. Mas (por que será que existe o mas?), em um dia quente e seco, um minúsculo e insignificante mosquito apareceu para destruir seu paraíso e levá-la embora. A minha ciganinha foi encontrar-se com seu filhote em algum céu cheiroso de flores de macieiras. Seus olhos dourados, ah que lindos olhos ela tinha, não vão mais penetrar os meus, agora tristes e opacos. Porém não vou chorar, porque pressinto que uma nova era de glória e fartura chegou definitivamente para Natasha. É um verdadeiro consolo possuir tal intuição, acompanhante serena da saudade que sinto dela. E, oxalá, no dia da minha definitiva partida, os deuses me permitam passar um bom tempo no seu céu para que, olhos nos olhos, possamos sacramentar um amor tão profundo e descabido. (*) Dedico esta estória a D. Eva, exemplo de amor irrestrito pelos animais, que trouxe dignidade e respeito a uma criatura com estória tão miserável de vida. |