UM DRAMA MUSICAL NO MEU QUARTO
Claudio Alecrim Costa
 
 

Devo confessar que nunca gostei de Ópera. Desagradava-me particularmente as personagens cantando enquanto conversavam sobre o drama encenado. Ninguém fala como um barítono, tenor, contralto ou mezzo-soprano.

Abraçado a garrafa de uísque, me vi diante da tv sem saber o que escolher para assistir. A noite cálida resistia ao ventilador de teto, que girava lenta e desoladamente. Foi quando apertei magicamente o botão do controle e um tenor gordo gritou algo para uma mulher pintada com espalhafato, que respondeu aos berros sob a música indulgente de uma orquestra sinfônica.

Estava diante de uma Ópera e resolvi me render ao espetáculo cênico ajudado pela bebida. Tentei inutilmente aumentar a rotação do ventilador que relutava, brigando com o ar pesado, como moinhos de Cervantes, cavalaria barroca, tragédia e comédia, a luz tênue e lúgubre, miríades de pensamentos chovendo no exíguo espaço do meu quarto, encharcando meus sapatos estropiados e escorrendo pelos móveis, rostos liquefeitos inundando a tudo e me afogando lentamente em minhas despedaçadas lembranças.

O coro histérico, a mulher de joelhos chorando e o homem gordo e indiferente, refletidos nas ondas feitas de bebida em meu copo desceram queimando minha garganta num gole definitivo...

- Chega! Gritei.

Tateei na cama procurando o controle da tv quando fui repreendido...

- Silêncio!

A cena na televisão voltou-se para mim, com todos integrantes da Ópera sussurrando emproados e alaridos vindos da platéia insatisfeita pela interrupção do espetáculo.

- Desculpe-me...Vou assistir ao telejornal...

- Não passa de um tolo! Gritou o tenor.

- Estou na minha casa!

- Um tolo não pode morar num teatro... A platéia concordou.

Tentei mudar de canal e nada.

- Saiam do meu quarto!

Agora todos os idiotas fantasiados riam junto com a platéia.

- É um doido!
- Seu tenor de araque!

Uma vaia caiu sobre mim como uma chuva de concreto.

- Ele usa meias rasgadas! Mais risos.

Sacudi a televisão varias vezes e a zombaria continuava. A campainha tocou e então corri para atender, ainda confuso pelo insólito. Para minha surpresa dei com o síndico cercado por um grupo de moradores em pijamas.

- Seu Afonso, o senhor está perturbando a ordem com essa festa...

- Eu estou sozinho em casa! Tentei me defender.

- Escutamos várias vozes! Afirmou um velho trêmulo.

- Olha os trajes dele! Apontou uma mulher enrolada numa manta para a minha bermuda encardida.

- É uma pouca vergonha! Exclamou uma velha beata fazendo o sinal da cruz.

- Vocês não vão acreditar... Tentei explicar.

- O senhor nos deixaria entrar? Perguntou o síndico.

Ficamos um minuto em silêncio até o velho gritar...

- Vamos logo ver essa pouca vergonha...

Entraram como um pequeno exército sem dar conta da minha existência.

- Onde estão os outros, seu Afonso?

- Devem estar escondidos!

- Esperem! Estão no meu quarto...

- Que pouca vergonha! Todos ao mesmo tempo.

No quarto, um silêncio espacial se espalhava, cortado pelo chiar do ventilador...

- Estavam todos gritando comigo na televisão...

- Seu Afonso, é uma Ópera...

- Eu sei! Mas eles estavam falando comigo...

- Ele está ficando doido... Vamos exorcizá-lo Sentenciou a beata.

- Procure descansar, seu Afonso... Recomendou, misericordioso, o síndico.

Todos se retiraram me deixando desolado ante a televisão. Esperei até que começasse de novo o alvoroço kafikaniano de alguns instantes atrás. Precisava falar umas boas verdades para aquele tenor idiota...