CORAÇÃO PRISIONEIRO
Luís Valise
 
 

Quando o carcereiro chamou meu nome fui tirando o meu da reta “Não fui eu”, mas o cara disse “O Diretor quer falar com você”, daí fiquei mais invocado ainda, porque o Homem tinha prometido que antes de sair eu passaria uma temporada na solitária, e como tava perto de tirar meu tempo pensei “É agora, fodeu!”, e era a primeira vez que eu entrava na sala do Diretor, que era grande (o Diretor, não a sala) e usava bigode pra disfarçar o lábio leporino. Tinha ventilador no teto, uma estante com livros encapados cobertos de poeira, uma mesa escura com papéis espalhados, e um cassetete. O Homem mandou eu sentar, disse “Lembra da promessa que eu te fiz?”, “Lembro”, respondi, “Não vou cumprir”, ele falou, “Você está solto”. Faltavam quarenta e sete dias pra completar minha pena de dois anos e oito meses, por isso fiquei na moita, achando que era treta, “Quando eu atravessar o portão”, pensei, “os caras vão me costurar na bala”, então não me mexi, não disse nada, só fiquei olhando pra ele, que tornou a dizer “Você está solto, preciso repetir?”, “Não senhor”, murmurei, e olhei pro chão antes que ele mudasse de idéia. “Pode sair”, e me entregou um papel aonde eu li rapidamente “Ordem de Soltura”, e estava assinado e carimbado.

Era uma tarde de sol, eu atravessando o pátio cimentado da cadeia, os mano pararam o futebol e diziam “Tchau, Orelha”, “Se cuida, Orelha”, “Boa sorte, Orelha”, e eu já estava acostumado, porque na escola eu era o Dumbo. Abanava a mão, na outra carregava uma trouxinha com meus babilaques, e quer saber?, no fundo estava triste, porque deixava bons camaradas e tinha pela frente as incertezas das ruas e suas liberdades. Por exemplo: como é que eu iria jantar esta noite? Terminando a travessia do campinho o Orestes, que se chamava Jorge e tinha esse apelido porque gostava de cantar Chão de Estrelas chegou perto e me deu um abraço e um envelope, que guardei no bolso sem abrir. Cruzei o portão, ninguém atirou nas minhas costas e fiquei parado na calçada, meio tonto com a falta de paredes, depois atravessei a avenida e entrei num bar. O dono ficou de olho em mim, meti a mão no bolso, peguei o envelope e conferi o conteúdo. Grana viva. Notas miúdas e amassadas, totalizando sessenta e sete reais. Fiquei com os olhos rasos d’água. Olhei tudo que tinha dentro do bar, e fui logo matando a saudade: sanduíche de mortadela. O balconista me deu um sanduíche que tinha mais mortadela que pão, e também abriu uma Coca e encheu um copo. Comi e bebi e quando pedi a conta o dono disse “Por conta da casa”. Saí logo, antes de cair no choro, “A cadeia me deixou de coração mole”, pensei. Tomei um ônibus para o Cambuci, ia no salão de barbeiro do Lustosa, que era freguês de maconha e amigo, e podia me deixar passar a noite lá depois de fechar o salão.

As portas estavam fechadas, perguntei pro vizinho e a resposta não me deixou animado, “O Lustosa mudou para o interior.” E agora? Peguei outro ônibus, fui para a rodoviária, o ônibus para a cidade onde o Lustosa tinha se mudado saía as dez da noite e chegava de madrugada. Comprei uma passagem, ao menos já tinha onde passar a noite, então reparei nas mulheres que estavam na rodoviária, e acho que tinha perdido o padrão porque pra mim eram todas gostosas. Olhava de leve pra não arrumar encrenca porque algumas estavam acompanhadas, e assim passei o tempo até embarcar, e com a sorte que eu tenho adivinha quem sentou do meu lado? Acertou, um japonês, e antes que o ônibus atingisse a estrada eu já dormia, sonhei que estava na cadeia, na solitária, e que um japonês era o carcereiro. Acordei no meio da noite, suando, ao meu lado o japonês roncava, não dormi mais. O ônibus chegou no horário, ainda estava escuro, acabei dormindo num banco. Acordei com o barulho dos passarinhos soltos nas árvores, coisa boa, perguntei pela rua do salão do Lustosa e fui andando cabreiro, preocupado com o que havia atrás de cada esquina, que liberdade sempre foi coisa perigosa.

Tinha uma placa: Salão Estrela. Sentei na porta e acabei dormindo de novo, até ser acordado com uma sacudida no ombro, e abri os olhos contra o sol e era o Lustosa com um baita sorriso, braços abertos, foi um abraço apertado, me levou até a casa onde vivia com a Glorinha, que também era manicure no salão e que eu não conhecia, e que me recebeu de boa vontade, deu uma toalha, mostrou o banheiro, “A casa é sua”, mulher como não há mais hoje em dia, e o banho quente foi mais gostoso que o sanduíche de mortadela. Dormi o resto do dia numa cama de verdade, vida assim é moleza, e quando eles voltaram do salão a Glorinha me viu barbeado, penteado, limpo e deve ter gostado porque pintou um clima que eu não queria mas estava precisado, e foi rápido, enquanto o Lustosa tomava banho eu comi ela na pia da cozinha, e tive câimbra nas pernas e dó no coração, fazer isso com o Lustosa. Depois da janta o Lustosa falou pra Glorinha que ia me apresentar uns camaradas pra ver se eu descolava um trampo, e na rua falou “Meu, vou te levar na melhor zona da cidade”. Eu contei doze reais no bolso, ele me deu uma nota de cinqüenta e falou “Tira o atraso”, mas quem estava atrasado era ele e me deu uma tristeza porque a vida às vezes é uma merda, ou não é? No fim de uma rua de terra tinha três casas enfeitadas com luz vermelha na porta e mulheres fumando e zoando do lado de fora, e, meu, “Se esta é a melhor zona da cidade, como deveria ser a pior?”, pensei ao ver o material exposto com saias curtas e peitos transbordando, mas não ia fazer desfeita com o Lustosa e fingi entusiasmo por uma oxigenada. Ele escolheu outra, “A Glorinha não merece”, pensei, e achei ele um escroto.

Depois de uma semana que eu estava na casa do Lustosa a Glorinha falou “Vamos fugir”, eu disse “Não tenho nem emprego”, ela contou de uma prima que tinha um bar numa cidade em Roraima, daí eu fui com ela fazer supermercado, ela passou no banco e sacou toda a grana da conta, pegamos um ônibus pra São Paulo e o Lustosa ia ter que recomeçar do zero.

Em Roraima faz calor pra caralho, tem mosquito de malária, e tem Eudóxia, a prima, que não é nenhuma miss mas é cheia de amor pra dar. A Glorinha ainda não percebeu nada, é tudo muito rápido, levantar a saia e puxar a calcinha pro lado. Só quando penso no Lustosa que me dá uma ponta de tristeza, mas deve ser frescura deste meu coração sentimental, porque logo passa.