ERVA DANINHA
Luiza Aparecida Mendo
 
 

— O que o senhor tem a declarar? — perguntou, de seu trono, rispidamente, o magistrado. Sim, parecia um trono colocado na parte mais alta da sala e Aderbal, mirrado pela própria natureza, sentiu-se uma pulga diante do polegar assassino. A voz, agarrada à garganta, não encontrou força para expelir-se por si mesma; as mãos, algemadas sobre a mesa, tremeram e fizeram o metal chocalhar no tampo de mogno. Tanta nobreza para conversas tão banais! Pensou o interrogado, sentindo-se condenado por antecedência.

O advogado, que o serviço social havia lhe arranjado, parecia muito mais inseguro que ele próprio e, para completar, era dado à bebedeira, como se o castigo do réu começasse ali mesmo. De olhos baixos, mergulhado na própria imagem refletida no tampo da mesa, o rábula parecia distante e, por duas ou três vezes, Aderbal precisou improvisar, com seus parcos recursos de linguagem, as respostas ao juiz, pois seu olhar suplicante não alcançava os olhos baixos de seu defensor. Estava só.

Quando saiu de sua terra natal, em busca de chances melhores, Aderbal não imaginou que aquilo o colocaria diante do trono de deus. Sim, um deus capaz de mudar o destino das pessoas, de prender e soltar, de fazer vistas grossas e de escarafunchar a vida alheia, de acordo com seu estado, momentâneo, de humor. Naquele momento, deus parecia aborrecido e com pressa e aquilo era um mal sinal. Aderbal queria contar em detalhes sua aventura, falar da esperança de dias melhores, da família que havia deixado em Conceição do Canindé. Tinha certeza que se deus soubesse que ele, no início, nem sabia que aquilo era crime, o deixaria partir. A voz não saía, as palavras não se formavam e tudo o que restava em sua mente era um amontoado de sílabas despregadas umas das outras. Bem que a professora Lurdes tentou ensinar-lhe alguma coisa, mas a cabeça era fraca e a necessidade da lida era forte.

Aderbal viu o senador, seu patrão, umas duas ou três vezes, porque ele não costumava aparecer na fazenda, tudo ficava a cargo do Luiz Cláudio. Ajudou, durante um bom tempo a cuidar das vacas, que abundavam na parte fronteiriça, em terras à perder de vista, depois foi transferido para a plantação da erva, que enchia os campos baixos e ficava escondida na área de preservação. Para lá iam somente os homens de confiança e Aderbal orgulhava-se em ser um deles. No início, como gostaria de dizer ao juiz, nada sabia sobre aquela planta, era apenas mais um trabalho e ele, Aderbal, precisava muito do trabalho, para juntar dinheiro e mandar buscar a família. Com o tempo foi percebendo que estava metido num vespeiro e que o melhor a fazer era manter-se parado, pois quanto mais a vítima se sacode, mais as vespas se enfurecem.

Seu pai costumava dizer que a bebida era a desgraça do homem, mas Aderbal não era um homem comum, era o homem de confiança do senador e foi, para não contrariar a sabedoria paterna que ele deu com a língua nos dentes.

— Sou o braço de ferro do senador! — gritou no meio da praça, para quem quisesse ouvir e o repórter do jornal local, doido por uma oportunidade, queria muito. Bastou mais alguns copos e estava completada a entrevista, com direito a nomes e mapas da plantação clandestina.

O resto todo mundo sabia, porque os canais de televisão não falavam em outra coisa, as revistas não demoraram em estampar, na capa, a cara magra do Aderbal e era justamente aquela magreza que lhe dava o ar de delinqüência que todos queriam ver. Estava condenado por antecipação.

No Senado, o senador insistia que havia sido uma vítima do Aderbal e esforçava-se em provar sua inocência com papeis sobre o comércio legal de bois. De empregado, o homem havia passado a proprietário do empreendimento e tinha gente jurando que ele plantava, colhia e processava todos aqueles hectares sem ajuda de ninguém. Até para a Europa ele despachava aquela porcaria e, era tão astuto, o Aderbal, que se utilizava de veículos oficiais! Ele era a própria erva daninha.

Na delegacia havia levado uma surra dos companheiros de cela e podia jurar ter ouvido o nome Luiz Cláudio, em meio aos piparotes, mas quem acreditaria? Aderbal não sabia ler ou escrever e nunca havia ouvido a palavra escala, mas sabia, por intuição, o local exato em que se encontrava. Era como naquela mesa baixa, bem abaixo de deus, tendo ao lado um advogado desinteressado, alcoolizado e com medo e acima alguém irritado e com pressa. Ele era apenas mais um caso, naquele tribunal atulhado de casos, era um número, uma estatística. Uma amolação para aquele velho magistrado, naquele fim de tarde, daquele término de semana. Uma mesmice!

Não esperou um sinal de seu defensor, não esperou o juiz perguntar novamente e, para criar coragem, concentrou-se no fato de ter bebido além da conta, naquela tarde de domingo, quando deu a entrevista, pensou nas sábias palavras de seu pai e ousou, pela última vez, levantar os olhos e olhar dentro dos olhos de deus.

— Culpado! — declarou a si mesmo em voz alta.

O advogado respirou aliviado e ajudou o cliente a colocar a marca do polegar no interrogatório impresso, enquanto, no gabinete ao lado, o juiz ligava para um amigo informando o andamento das coisas.