DECLARAÇÕES SUPRAPARTIDÁRIAS
Doca Ramos Mello
 
 
Simples: a culpa é do povo.

Se este país anda mal das pernas, que ninguém perca suores fazendo indagações obsoletas porque a culpa é, definitivamente, do povo. E fim de conversa.

E eu vejo isso assim tirando por base o que acontece aqui mesmo nesta terra esquecida por Deus, esta cidade de Cruz das Almas dos Homens, já se nota pelo nome, uma cruz mesmo para a classe política, eu vejo isso porque compadre Roque, que agora é nosso prefeito, depois de anos de luta, vem sendo vítima da má-fé do povo, logo ele. O coitado começou como limpa-fossas, um sacrifício enorme naquela fedentina do cão, foi-se ajeitando, se ajeitando, agarrou uma vaguinha de contínuo na Câmara e só muito tempo depois, os cabelos começando a pintar de branco, é que foi vereador, infeliz dele, conquista suada, eu é que sei.

Anos de batalha, duas vezes ralando na vereança e aí está que arrematou a cadeira de prefeito, compadre Roque é um grande sujeito, ora se é, mas o povo daqui, e é isso que me enerva demais, pois o povo daqui deu de falar uma montoeira de mentiras sobre ele. A coisa vai de sem-vergonha, velhaco, mulherengo até ladrão peçonhento, ô gentinha.

Agora, não falta quem meta a lenha no homem, o povo é muito revoltoso, bota o sujeito no trono, bate palma, veste a camisa e tudo, p’ra no dia seguinte cuspir no chão e lançar calúnias no lombo coitado, não suporto isso. E não é que a última novidade é inventar que compadre Roque só dá emprego para a família dele e uns comparsas que roubam junto com ele na prefeitura, vê se eu posso ouvir isso e ficar calado?

Mal-da-des!

Mesquinhez de gentinha falsa.

Verdade seja dita, o compadre colocou uns parentes na prefeitura, sim, mas é tudo pessoal especializado e, além disso, a família dele não se pode dizer que seja grande, de modo que todo mundo sendo porreta está todo mundo lá, ué. Bentinho, o filho mais velho, se alojou na chefia de gabinete, quem mais apropriado? Bentinho adora ser chefe, é um moço bonitão, chove mulher atrás dele, então o povo fica invejoso, especialmente uns maridos que ele enfeitou a testa mesmo, Bentinho é um garanhão. E ele aprecia muito uma boa conversa, compadre dizia que levava jeito para diplomata, mas não quis estudar, pena, porém funciona direitinho na chefia, tão direitinho que dispensa a freqüência, por isso vive com a mulher, no Rio de Janeiro.

Miriana, a filha casada, trabalha na Secretaria da Comunicação. Como precisava de alguém que escrevesse para ela as reportagens (Miriana só tem a quarta série), fez o pai contratar o marido dela, cidadão vindo de Juiz de Fora, onde quase todo mundo é intelectual, não vê o Itamar? Ficou tudo nos trinques e o casal trabalha em casa mesmo, não carece ir ao paço municipal, bobagem, ainda mais que aqui não temos jornal nenhum.

Na Secretaria da Fazenda, compadre Roque botou o irmão, Moacir, cuja competência ninguém discute, quem quis discutir não está mais aqui para comentar, é ou não é? E esse negócio de que ali some dinheiro e há contratos suspeitos é coisa da boca dos que estão de fora da bolada, essa gente é insuportável, compadre detesta todos eles.

Norminha, filha caçula de compadre Roque, andou dando uns problemas p’ra ele, porque se apaixonou por um cidadão sem-vergonha de tudo, então o prefeito deu o posto de secretária do Bem-Estar Social e Esportes para ela, um jeito de ocupar a moça. Como em Cruz das Almas dos Homens não há problemas sociais nem quadras de esportes, Norminha foi enviada para os Estados Unidos para estudar e se preparar cada vez mais. Ela é pesquisadora, tem pesquisado muito nos últimos três anos, dedica-se como ninguém, depois vem aplicar os conhecimentos aqui, em Cruz. Nas férias do ano passado, chegou a cidade com um corte de cabelo muito parecido com o dos índios moicanos, só que verde – estava estudando o comportamento dos índigenas do norte e aquilo era, explicou p’ra nós, “laboratório”.

E dona Mercedes? Parente do prefeito nunca foi. Pois dona Mercedes é testemunha da bondade do compadre, com quem fez grande amizade ainda nos tempos da primeira vereança, logo que o marido dela, o Agenor da Cinderela (Cinderela era a mãe dele, que ganhou este apelido porque ficou grávida assim, sozinha mesmo, sem ter namorado nem nada e dizia que o pai da criança era um príncipe encantado) sumiu do mapa. Dona Mercedes sabe o quanto foi auxiliada pelo compadre, que arrumou vaga de telefonista para ela, só que logo ela teve de sair de licença porque ganhou uma unha encravada, de modo que encostou e se aposentou por problema de saúde. O que falam por aí de mais a mais é disse-me-disse, mentiras torpes, porque ela é uma mulher honesta. Dona Mercedes é costureira, ofício muito apreciado pelo prefeito – continua a costurar para ele.

O compadre também ajeitou posto para os dois filhos dela. Marivaldo, o mais novo, pegou lugar de fiscal e só não fiscaliza muito porque a cidade aqui é pasmaceira, não tem o que fiscalizar (mas quando faz o serviço, a perfeição é tanta que recebe até dinheiro do pessoal fiscalizado, que fica admirado com a eficiência do moço), por isso ele dá plantão no bar do japonês, na sala de sinuca. Procurou pelo Marivaldo, pode saber que ele está pela bola sete. Orestes, o mais velho, é diretor de meio ambiente, não preciso dizer nada, tem que ver como se dá bem no ambiente, merece o dinheiro que ganha. Dorivânia, a filha que dona Mercedes ama de paixão e é afilhada do compadre, foi contratada como secretária e o prefeito, muito bondoso, permite que ela só trabalhe de manhã, mesmo assim, francamente, ninguém precisa de secretária tanto tempo, de modo que Dorivânia praticamente só aparece para receber o salário. Esforçada, a menina aproveita o tempo livre para aprender com a mãe a habilidade de coser – ela também costura, leva o maior jeito.

Tudo isso são só exemplos de legalidade, de lisura, mas o povo mete a lenha no meu compadre, na política não se pode ser bom, é o que eu penso. Eu posso declarar tudo isso de peito aberto porque não sou suspeito, sou empreiteiro, se ganho obras na prefeitura é porque meu preço é bom, isso o compadre exige, bom p’ra nós dois. E negócio bom não é aquele que alegra os dois lados? Mas vê se o povo entende isso. Jamais. Ai, é como diz o compadre, “a política é ótima, o que estraga é o povo”. Tirando o povo...