O ADEUS FINAL
Valéria Vanda de Xavier Nunes
 
 

È isso aí...

A palavra certa é essa, violação, violada. A casa de mamãe foi violada, v i o l e n t a m e n t e. É como se ela tivesse sido enterrada pela segunda vez. Num momento estava tudo lá, e, de repente,como num passe de mágica, nada mais estava lá. Tudo que representava a sua e a nossa história tinha sido roubado, literalmente roubado. A visão daquela sala, limpa, nua, vazia,foi um choque terrível para mim. Entrar naquele apartamento era para mim, como um encontro marcado que eu tivesse com mamãe e com papai novamente, e, através destas lembranças materiais, era como se eles ainda estivessem lá me esperando. Agora a sensação é a de que eles, de verdade, estão enterrados para sempre.

A sensação maior era de raiva e de um vazio imenso penetrando no meu peito no momento em que todas as nossas lembranças antigas passavam na minha mente como num filme antigo. Onde estava tudo? Aonde andavam as nossas fotos, nossos quadros, nossos “biscuís”, aquela velha cadeira de balanço onde eles sempre se sentavam para descansar os ossos já velhos?; As suas toalhas, os seus lençóis, suas panelas tão queridas?. Nada ...nada...nada restou. Foi um golpe baixo. Um golpe muito baixo mesmo. Só o grande vazio. Vazio físico e vazio interior, a impotência diante do fato consumado, a tristeza imensa e mal interpretada pelas minhas irmãs quando me viram chorando, pois, para elas talvez aquelas coisas não significassem tanto, como significavam para mim Mas, a vida é assim mesmo, e cada um tem o seu modo de pensar e agir diante das adversidades da vida.

O fato é que ficamos sem referência no que diz respeito à “casa de mamãe”, pois assim como ela, sua “casa” já não existe mais. Não existe mais a casa de mamãe, as coisas de mamãe, pois tudo que foi dela - as nossas referências materiais - estão agora nas mãos de estranhas, nas maõs de quem não tinha nenhum direto sobre elas.

Há quanto tempo nos pertencia aquele conjunto de mantimentos de alumínio com a tampa azul? Crescemos vendo papai e mamãe abrindo aqueles potes, o menorzinho de café, o enorme de açúcar, o do feijão e outras coisas mais, aquilo “j a m a i s” poderia pertencer a mais ninguém que não a nós, seus filhos, aquilo seria guardado por mim como uma “relíquia”, para sempre.

Nunca imaginei que um dia chegaríamos àquele apartamento e não veríamos aquela estante enorme cheia de fotos de nossos casamentos e de todos os filhos, aquela cadeira de balanço no seu lugar de costume, aquela tela de Nossa Senhora da Conceição na parede, e as suas inúmeras santinhas. A nossa história de vida estava ali, e ali tinha de permanecer sempre, naquelas peças de mobília já gastas, porém, “nossas”- pois tudo era nosso - naqueles armários da copa tão nossos conhecidos, naquela minúscula cozinha, naquele velho fogão já gasto pelo uso, onde vimos mamãe passar a maior parte dos seus anos de vida. Agora nada mais existe. Tudo foi literalmente r o u b a d o por duas cretinas que não tinham o menor direito de fazer o que fizeram.

Naquele triste começo de tarde, nós quatro; quatro irmãs das sete mulheres que compõem a nossa família de doze irmãos, ficamos estarrecidas quando nos deparamos com o vazio daquelas salas e quartos. Chegamos lá para fazermos uma avaliação de como seria dali para frente, uma vez, que para nós, aquela era mais uma página virada na história das nossas vidas.

Enquanto três das irmãs vagavam de quarto em quarto e de sala em sala impressionadas com a desolação dos ambientes vazios de tudo, encontrando de quando em quando uma ou outra coisa deixada por acaso - como uma blusa de umas das cretinas - que logo foi jogada no lixo - alguns livros espalhados pelo chão, algumas fantasias velhas de carnaval - nossa irmã mais nova “entendida em orações” que afugentam energias negativas - ia na frente com um litro de água misturada com sal grosso, orando e espargindo esta água nos ambientes,e logo em seguida, levava um grande incenso aceso que ia soltando a sua fina fumaçinha em todos os ambientes. A nossa irmã parecia uma “profetisa maometana”, de tão concentrada nas suas orações e no seu ritual.

È, tudo isso seria cômico, se não fosse trágico...

Enfim, resolveu-se tudo como tinha de ser resolvido, ou seja, comprou-se tudo novamente, móveis, louça, lençóis, toalhas, e tudo o que faz de uma casa, um lar, e é neste novo lar que o nosso irmão vai continuar a escrever a sua e por que não dizer, a nossa história também.