DISSIMULADA
Sonia Regina Rocha Rodrigues
 
 

Conhecido como Corvo, o rapaz de olhos negros vestia-se sempre de preto. Assim que ele parecia na sacada, ao meio-dia, a vizinha, mocinha, de longos cabelos escuros, suspirava nas sombras, por detrás das cortinas.

Nas noites sem lua, a mocinha acendia velas e recitava magia Wicca, nua sob o vestido preto e transparente. Nas trevas da varanda em frente, ele a espreitava.

No primeiro dia de verão, coisas inusitadas aconteceram com ela, resultado, talvez, dos estranhos rituais que praticava. Como o convite da garota perfumada, que, no ônibus, encostou-se a ela tão naturalmente:

- E se fôssemos amigas? Eu vou para o programa do Sílvio Santos, em uma caravana, neste domingo, tem lugar vago, vamos?

Ela se encolheu de horror à menção do programa popular. E que dizer do bilhetinho enfiado em seu bolso, acompanhado de uma piscadela cúmplice?

À tarde, ao voltar da escola, uma mocinha que ela vira pela primeira vez na véspera, chamou por ela, da casa em frente e desaguou uma torrente de palavras:

- Venha conversar comigo, mudei para cá ontem, esta é a casa de minha madrinha, ela me trouxe lá do sítio. Você tem namorado? O ajudante do açougueiro aí da esquina me viu ontem e disse para minha tia que se casa comigo, acho que vou aceitar, você sabe, deixei a escola, não quero trabalhar na casa dos outros e a madrinha acha uma boa idéia ter um homem cuidando de mim, é claro, você deve estar pensando que sou muito novinha e coisa e tal, mas a madrinha diz que é melhor casar cedo que encrencar.

Ela ponderou sobre este estranho comportamento que se estava tornando um hábito, de as pessoas tombarem sobre ela de supetão, assim sem a menor cerimônia, verdade que ela procurava companhia, mas isso era ridículo e nunca esperara que viver fosse assim imprevisível. Talvez devesse ela aceitar estes convites inusitados, sem questionar... A vida deve ter lá sua sabedoria.

A outra continuou sua inconveniente tagarelice, pois ela abrira a boca sem que as palavras saíssem, no espanto de menina mal iniciada na adolescência.

- Claro que você não precisa casar com o ajudante do açougueiro, você tem família boa, vai na escola, para mim é que não vai aparecer chance melhor. Olhe quem vem lá! Aqui, aqui, vizinho, se achegue!

E assim intimidado, o Corvo, que virava a esquina, parou, esquivo. Ela ruborizou-se e a vizinha indiscreta decretou:

- Os dois namorados de preto – e namorados, sim, pensam que eu não sei? - fazem um par sinistro e misterioso. Parecem urubus. Vão embora agora, que vou entrar.

E tendo feito as vezes de Cupido, a outra desapareceu.

O moço abriu o portão da casa dele e apontou para a garagem com um gesto de cabeça. Ela estendeu a mão, sorrindo, num aceno de concordância.

As mãos experientes do Corvo – ele já estava na faculdade – apertaram os dedos pequeninos dela e a conduziram garagem adentro. Ela ria, ele a fitava, febril.

A boca seca, ela sentia pela primeira vez um fogo, um arrepio, uma tontura, como se a vida se esvaísse e ela estivesse a ponto de ser tragada por uma catástrofe. E à sua mente vieram os versos de Poe:

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais,

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»
Disse-me o corvo, “Nunca mais”