A DESCOBERTA
Gildo Staquicini Jr
 
 

Descobriu o segredo quando, pela segunda vez, chorou descontroladamente, em sua cama, ao deitar tentando dormir. Da primeira vez não fez a associação entre as dores da noite e os risos do dia seguinte.

Os dias anteriores foram dolorosos: alteração inesperada das tarifas de exportação, fiscalização rigorosa de tudo quanto ainda não tivesse sido liberado pela alfândega (de porto e aeroporto) e aumento brusco das alíquotas de importação. O escritório convulsionava em telefonemas de clientes enfurecidos e/ou desesperados com os prazos esgotando e nada de dinheiro e/ou mercadorias saindo e/ou entrando. Dias e dias sem solução.

Recriminou-se de muita coisa enquanto chorava. Do que escolhera e do que não escolhera. Dos negócios frustrados, do dinheiro perdido, dos bens não adquiridos, das imprudências e ingenuidades que o fizeram otário nas mãos dos malandros; da garota que teve só uma vez nos braços, no coração e no coito, e que nunca mais viu (porque não atendeu ao telefonema dela) e com a qual poderia ter casado (embora desconfiasse que o que mais a atraía nele, o que mais a interessava, era o seu emprego, o melhor que um garoto da sua idade podia ter); chorou pai, mãe e irmão mortos, e as mesquinharias e mútuas exigências geradoras de seu afastamento; chorou feito bebê. Chorou pelas paixões não correspondidas e pelas traições de ambas as partes; chorou pelo corpo velho, pela barriga crescente, pelo cabelo grisalho, pelas oportunidades perdidas, viagens que não fez; chorou feito criança. Chorou pelas coisas feias, más, covardes; pelos amigos que não vistos havia tanto tempo (se bem que, eles também não faziam questão de vê-lo, já que, se havia quinze anos não falava com eles, havia quinze anos de silêncio dessas outras partes, década e meia que nem sequer telefonavam para saber se estava vivo ou morto; por tal descaso com eles sabia-se ser um verme, mas saber que, por igual procedimento, os amigos também o eram, é coisa de fazer chorar); chorava feito adolescente. E ao chorar clamava por deus e ajuda, mas como não acreditava na existência de uma e na possibilidade de outra... chorava como um adulto, como só um adulto pode chorar em sua humanamente infinita solidão, lembrando das coisas que o fazem sentir nojo de si mesmo. Chorou por achar que passou pela vida sem ter lido tudo que deveria ter lido (sem perceber que, mesmo que tivesse lido tudo, a vida passaria do mesmo jeito e que as horas de leitura são horas não dedicadas a outras atividades). Perguntava-se por que não tomou esta ou aquela decisão, por que não escolheu este ou aquele caminho, e todos os outros porquês que podia encontrar, e não na forma comedida de quem quer realmente saber, mas naquele jeito tonitruante, convulsivo, obsessivo, a reagir à pressão que, vinda de dentro, parecia torno a apertar de fora. Noites assim não são dormidas: a repetição das perguntas entorpece e faz, apenas por fadiga, mergulhar no esquecimento.

Chorou mais um pouco ao acordar. Lembrou da história (trágica, era o que todos diziam) ouvida no dia anterior do homem que matara a esposa na frente do filho de três anos; treze facadas, fuga, desaparecimento. Em comparação (coisa sempre muito fácil de fazer), a sua história não era trágica ou, pelo menos, assim todos diriam. E usou este pedestal, um corpo morto, um corpo foragido e um corpo abandonado, para respirar. Foi assim que os mortos, os desvairados, os abandonados, lhe serviram de alívio e escada, conforto e impulso.

Chegando ao escritório encontrou a solução. Tão simples e tão fácil. Tendo tanto a fazer, muito mais do que seria razoável exigir que um humano fizesse, simplesmente não fazer. Exato. Fazer nada. Deixar que as coisas acumulando, pois os navios continuam a navegar e os aviões a voar, até que entulhados de coisas os galpões comecem a vomitar, a imprensa comece a notar, os grandes comecem a reclamar, os políticos a pressionar, os pequenos a se mexer, e as mercadorias a serem liberadas por pura pressão interna de seus gases aquecidos; e pagando apenas cinco por cento de propina e não os trinta e cinco antes exigidos (valor que quebraria o pequeno escritório). Decisão certa: lucrou menos, mas não faliu como muitos outros que se precipitaram e entraram neste pequeno e sórdido jogo da extorsão por meio de greve ou alíquota. E ainda ficou conhecido como sujeito duro na negociação, embora não tenha percebido como a cabeça estava leve.

Da segunda vez foi um cliente que não pagou e sumiu. Um alto valor. Nos bancos também. Novamente dias dolorosos. Medo da dissolução. Até que uma noite chorou. Como da primeira vez. No dia seguinte lembrou que o Turco era agora o chefe da aduana no porto. O Turco (que não devia nem ser turco, pois sempre reclamava e, às vezes, enraivecia quando assim chamado e talvez por isso mesmo todos assim o chamavam), um velho conhecido de outros negócios. Acertou com ele a liberação de alguns lotes retidos. Negociou com os importadores da mercadoria. Ganhou dos dois lados. Pagou as dívidas e ainda sobrou algum para processar a família e os avalistas do desaparecido. Ganhou fama de sujeito esperto, que conhece os caminhos.

Por que não se lembrou do Turco antes? Foi pensando nisso que percebeu como a cabeça estava leve. Foi então que fez a associação e resolveu testá-la. Naquela noite chorou muito, não tanto como da primeira e/ou da segunda vez, já que o dia não fora tão doloroso, mas os motivos para recriminação ainda estavam lá e sabia que jamais desapareceriam, quando muito apenas estariam enfraquecidos demais para evitar as ilusões da euforia. No dia seguinte sentia-se tão bem que começou a fazer planos de expansão dos negócios.

Em menos de cinco anos tornou-se o maior do ramo, consolidou-se como uma fortaleza de negociação - chamavam-no homem de gelo, assombravam-se com o que chamavam de capacidade de ler mentes – alcunharam-no de mago - pois sempre parecia saber o que os outros pensavam. Todos os ultimoanistas dos cursos da área disputavam a tapa (e socos & pontapés também) a chance de serem um dos poucos estagiários que admitia anualmente. Um sucesso. Arruinou alguns, venceu muitos, no pior momento empatou, tudo dentro da lei e do muito livre espírito de concorrência livre, com choros longos e sinceros a cada vez que os dias doíam (não toda noite, pois nem o espírito mais férreo consegue tal feito).

Logicamente, concluiu que descobrira uma poderosa ferramenta de libertação da mente e que, estando esta livre, um homem pode tornar-se um deus, fluindo as idéias e confiando em si mesmo. Não contou nem para a esposa (que achou recentemente e que, talvez, também se interessasse mais pelo seu emprego do que por qualquer outra coisa, embora isso não mais importasse), mas já desenvolvia um método para transmitir, em segredo, o eficaz procedimento ao filho.

Contudo, se tivesse contado a alguém em especial, não uma pessoa qualquer, mas uma daquelas que fazem de um grupo muito específico, teria conhecido que, além de não ser uma descoberta inédita (e que o segredo era partilhado entre os membros desse grupo restrito), sua façanha era uma ilegalidade, uma infração às regras, um recurso ilícito para obtenção de vantagem, um golpe bem abaixo da cintura, uma usurpação, um plágio, uma contrafação.

Um único desliza da couraça que mantinha e que o lembrava sempre de nunca verter em público mesmo que microscópica lágrima e teria percebido-se membro involuntário, por saber o segredo desse grupo tão específico e restrito, por ter provado a dúvida do mundo e o arrependimento de si mesmo do jeito que só os poetas conseguem degustar tais amarguras.

Construiu seu muito particular poema de acumulação de riqueza. Tornou-se homem industrioso (como se dizia antigamente), homem de colhões (como se diz atualmente), e apaziguado consigo mesmo por ter aprendido a ler as entrelinhas dos jogos humanos.