TEMPOS
SECOS
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Flavio
Luengo Gimenez
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Na beira da sarjeta, papéis rolam soltos misturados a bitucas de cigarro e folhas mortas de sede das mirradas árvores que teimam em existir, ainda. Aridez e secura, eis o que meus olhos sentem. Aliás, o que todos os olhos sentem ao passar por aqui, neste caminho de espinhos. Mil sinais contrários se apagam e se avivam, lembretes de que somos finitos e únicos, filhos de Deus e do capital que oprime. Aproximo-me do bar decaído, com suas colunatas de estilo grego encimadas por duas violetas ressecadas e por ninhos de passarinho que piam escondidos no telhado das casas próximas em sua eterna fuga do sol que cresta suas asas. --Pois não? A pergunta parte da boca de um suarento serviçal que se esforça lentamente para lavar um prato manchado de gema de ovo, um prato servido que esperava há horas ser ao menos enxaguado. A ponta do cigarro, apagada, o cheiro de fumo, indisfarçável. --Uma dupla. Com gelo, limão. --Com casca? --Pode ser. --Até lavar pratos está difícil. Tem a cota, sabe? Olho para ele fingindo interesse, quero mais é minha dose do dia e ele insiste nas tais cotas. Se está difícil tomar banho, que diria lavar pratos! --Pior que fica um nojo, tem colegas meus aí que guardam tudo na geladeira para mais tarde, na calada da noite, lavar sem ninguém ouvir. --Como assim? --Eles ouvem e monitoram, quando não fecham o registro. Todo mundo de olho. Você viu como andam os carros? --Parecem dunas móveis... --...De poeira. Verdade. Só uma aguadinha já valia... Eu, incomodado com meu cheiro, agora agudizado pelo ventilador que me focava meio de lado. Ele, preocupado com o prato amarelado de ovo que virara uma cola viscosa. Cada um com seus problemas, diria meu finado tio, uma figura rara. --Está difícil, meu caro. --Pois é. --Fui tomar banho e adivinhe? --Sem água? --Nem para descarga. Vou ter de esperar dois dias agora! O pior que nem avisam mais. Golpe baixo! --...Está no lucro. Nos lugares mais altos tem espera de até quatro dias! O gelo servia como refresco, mais do que a bebida alcoólica a escorrer pela garganta. Um alívio federal, uma bênção dos deuses, maná que viera no deserto, alimento para os sentidos... As pessoas passavam exangues lá fora, arrastando os passos. Eu não conseguia imaginar alguém trabalhando ao sol. Eram os empregos mais difíceis agora, frentista de posto-de-água, guarda de trânsito, vigias de banco...tinham grandes salários por causa de sua baixa média de vida. Já, eu, não! Vivia à noite e raras vezes saía para contemplar a desgraça da calçada alheia. --Mais um? Claro, o lucro era dele enquanto me enrolava com aquele papo mole de botequim. Assenti com a cabeça. Lá veio mais uma dose! Era só olhar para os lados que se descortinava uma fauna de desajustados na teia escura do bar de quinta categoria. A morena de bunda avantajada que dava gargalhadas ao ouvir palavras misteriosas do seu acompanhante, meio alta e meio sonsa; o soturno solitário da esquina que sempre vinha àquela hora, para sorver seu cigarro e olhar para o infinito, buscando os melhores dias que já se tinham ido, contemplando a vidraça empoeirada do bar com seus anúncios cheios fotos ressecadas. O velho de barba farta, sempre conferindo números que nunca terminavam, eu ainda ia perguntar a ele de que serviam aqueles números um dia. Uma garota de programa que fazia ponto ali e pagava para o dono só para não ficar de pé no calor das horas do dia. O banheiro com letreiro ilegível, as fotos amareladas de dias passados em praias distantes. Eu nunca mais fora à praia, talvez o melhor lugar para se viver atualmente, sempre apinhadas de pessoas esbaforidas pelo calor e aliviadas à noite pela brisa marinha que vinha suavizar o inferno. Minha garganta ardeu, de novo. --Mais uma! O serviçal me olhou de soslaio, preocupado. --Não quer outra coisa? Eu, um pouco alto, já dei uma de leve. --Se você tivesse formicida, valia. Mas como não vende agrotóxicos... O olhar assustado dele traía nossa intimidade serena, de tantos anos ali. Porém ele nunca deixava de se surpreender comigo... --Como vai o livro? --Assim, assim...Um parágrafo aqui, uma página ali... --Quando vai trazer para a gente ler? --...Dia destes. A fumaça se misturava, as risadas da morena me incomodavam, a bebida exalava de meus poros. Lá fora, uma multidão observava a prisão de um dissidente; o coitado tremia mais que gelatina... As imagens foscas por causa da poeira; todos ouviram o baque quando ele foi jogado no fundo do camburão. Nada muda afinal, antigamente a dissidência era política, hoje é econômica! --Bah! Mais um filhodaputa. Por causa deles que racionamos tanto! Todo mundo virou os olhos para fora, a sirene ligada levou dali mais um desafeto. Ia sobrar uma gota da cota para todos nós! --Vou contar um segredo. --Conta... -- Um amigo meu pega o mijo dele e evapora. Reaproveita a água, acredita? --Ele tem um alambique? --Sim, mas não vende a água que tira porque não é bobo. Não quer acabar como esse aí... A luz vermelha vai longe no horizonte, já a gargalhada da morenona se espalha de novo, a puta já saiu para um novo michê, minha dose acabou e com ela, minha paciência que é pouca. Pago pela bebida. --Quer troco? --Quero minha parte em vale de água. --Custa mais caro! Fuzilo o merdinha. Que vilania! Jovem, pensa que é o quê? Mas, afinal, ele tem o vale, eu tenho dinheiro, é uma troca. Escusa, obscura, mas é uma troca de favores. Talvez seja meu banho de noite! Um chá, talvez! Pego o vale, surrado papel amarelo, talvez um pouco da gema veio junto, quer saber? Guardo no bolso, pego meu chapéu de sol( todo mundo tem hoje em dia, está na moda, até porque se não tiver, narizes vão cair...) e saio dali para o penoso trajeto até minha casa, que é um apartamento minúsculo, num pardieiro não menos imundo a duas quadras dali. Olho antes os letreiros que aconselham, cuidado ao sair na rua, use seu chapéu, se vir alguém sem, ajude-o, compre água Nestlon, a melhor água do mundo, só cinco guinéus, jogo subterrâneo termina em desgraça, máfia da água ataca usina de urina e mata trinta malandros...e aí vai. Que época esta a que eu vivo. Que época! |
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