SALADA DE FRUTAS
Maria Luísa Rocha
 
 

Ademir levanta-se da cama às seis horas da manhã, assim que ouve o rádio relógio anunciar que o dia está começando... Vai até o banheiro, urina, escova os dentes e penteia os cabelos. Após colocar uma roupa limpa, entra na cozinha, prepara o café, senta-se para bebê-lo com um pedaço de pão murcho mal besuntado de margarina e, em seguida, rapidamente, sai de casa para pegar o ônibus e enfrentar o trabalho. Volta à noitinha, estica-se no sofá em frente à televisão, vê jornal, janta qualquer coisa e lá pelas dez horas já está de novo na cama, morto de cansaço e tédio.

Beatriz é mais conhecida como Bia Latão. Quando criança, morava em uma região muito pobre com os pais e mais oito irmãos. Certa vez, ao voltar para casa, à noitinha, pulou um muro para furtar material em um depósito e se feriu ao cair em cima de um latão velho de tinta , o que lhe rendeu uma cicatriz horrorosa em uma das pernas e o eterno apelido. Mora atualmente com Baiano, seu namorado. Trabalha como faxineira duas vezes por semana e, aos sábados, ajuda na cozinha de um restaurante. Hoje ela está preocupada com a recente descoberta: grávida de novo. Baiano certamente vai espernear e culpá-la. Já sabe que a solução será o aborto. O terceiro. Ficou pensando que, se pudesse ter o bebê, ele iria se chamar Istambul. Acha este nome lindo. Leu em alguma revista e achou um nome importante, de alguém que veio para vencer. Mas logo se recompõe e vê que tudo é bobagem. Tem que resolver o problema logo, enquanto é fácil. Já está com prática. Além do mais, vai poder conservar o piercing na barriga e prevenir estrias.

Carlão é açougueiro há treze anos. Seu avental está sempre ensangüentado e suas mãos fortes e calosas já se impregnaram do cheiro da morte. Há uma semana atrás, ficou sabendo que a carne mais escura que estava chegando ao açougue era de cavalo. Contaram-lhe que o animal é suspenso pelas pernas ainda vivo para depois ser sangrado lentamente até a morte. Enojado e triste, jurou que nunca mais poria um pedaço de carne na boca e, desde então, sua mulher passou a preparar a marmita com arroz, feijão, angu e couve ou mostarda ou quiabo. Às vezes, um ovo frito ou uma omelete.

Deoclécio sai cedo para o mercado. Leva uma sacola com uns jornais e um guarda-chuva e, assim que chega ao bar de sempre, pede a primeira cerveja e a engole com grande satisfação. Anima-se, pede um torresmo e a segunda cerveja chega em questões de minutos. Às três horas, verifica que o dinheiro acabou e, contrariado, volta para casa. A mulher o aguarda chorosa e conta que o gás acabou. Ele grita e manda a gorducha calar a boca. Ela fala mais e mais, suada e nervosa, e ele resolve fazê-la entender. Bofetadas e socos resolvem o assunto e ele pode, finalmente, ir para a cama sossegado.

Eliana vai à missa de segunda a segunda, reza todas as preces que conseguiu decorar nos últimos vinte anos. Pretende cantar no coral da igreja. Mas seu sonho maior é merecer um olhar mais atento do padre Pinto; não perde as esperanças. Bem sabe que tudo seria mais fácil se ela fosse outra pessoa, quem sabe um rapazinho que ajudasse na missa...

Fátima e Geraldo são vizinhos de Hudson e Ideli. Moram em apartamentos situados em andares diferentes e sempre se deram bem. Às vezes se encontram e a discussão sobre seus times de futebol esquenta um pouco os ânimos. Mas nada demais. Ultimamente começaram a se desentender mais amiúde. E, na madrugada de sábado, a vitória de um dos times – roubada, segundo os perdedores - levou-os a se atracarem no corredor do prédio. A polícia foi chamada e todos passaram o resto da noite na delegacia.

Jairo mora em outro apartamento no mesmo prédio. É professor de Direito e vive sozinho. Assistiu a tudo e fechou a cortina da janela tão logo a polícia chegou.

Kênia trabalha como vendedora em uma farmácia, estuda Pedagogia à noite e, nos finais de semana, realiza trabalho voluntário em um abrigo para animais abandonados. Pensa seriamente em se casar, ter dois filhos, um menino e uma menina, ter um bom emprego público e viver feliz para sempre.

Lucília varre ruas há vinte e dois anos. Em setembro vai completar cinqüenta anos. De dentadura nova e sorriso vitorioso , aguarda a próxima aposentadoria. Poderá, finalmente, ficar em casa cuidando dos cinco netos, frutos inglórios de seus três filhos desempregados.

Maria e Neide se conhecem há três anos e moram de aluguel perto do cais. Dormem de dia e à noite saem em busca de drogas. Vivem machucadas de surras recíprocas.

Osmar trabalha em um escritório de exportações. Viaja duas vezes por ano com a amante para o exterior. Ao retornar, traz presentes fantásticos para a única filha. É um homem franzino, careca, muito calado e, apesar do ar de bobo, conseguiu em pouco tempo um patrimônio invejável. Dentre outras coisas, carros importados, fazendas e gado.

Pedro é pedreiro. Gosta de futebol. Tem prisão de ventre crônica, atribuída à ingestão exagerada de carboidratos, como arroz, pão e macarrão. Sua mãe, dona Imaculada, vive dizendo para ele chupar laranjas com bagaço.

Quadros é o sobrenome de João. Gosta do sol, dos passarinhos e de jardins. João deseja voltar para o interior, criar umas galinhas e ter uma hortinha de couve e tomate. À noite, sentado na varanda, vai tocar viola e dormir em paz. E, quem sabe?, pescar em algum rio.

Raul é policial em uma cidade do interior. Tem quatro filhos, dois meninos e duas mocinhas. Bate em bandidos porque eles merecem. Mas as filhas ele mima com carinhos que a mulher nem imagina...

Santos não gosta de trabalhar. Brada aos céus que a globalização não vai destruir sua alma de poeta. Nas noites de luar, o rapaz debruça-se na janela buscando inspiração e vara a madrugada esperando os versos chegarem. Há quem diga que ele até uiva. Mas isto já é um exagero de vizinhos fofoqueiros.

Telma chorou copiosamente quando a mãe morreu de infarto. No velório, estava desconsolada e soltou vários gritos dolorosos. Agarrou-se ao atual namorado, Max, dez anos mais novo do que ela. É seu décimo namorado. No terceiro dia após o enterro da mãe, Telma estava estranhamente calma : teve uma grande revelação. Descobriu o alívio que foi ficar livre daquela velha aborrecida, cheia de manias, repetitiva, sempre cheirando a urina.

Ùrsula é paralítica. Quem a vê se movimentando na cadeira de rodas com desenvoltura e determinação, certamente se emociona e a olha com uma piedade sadia. Mas à noite ninguém nota seu travesseiro encharcado de lágrimas invejosas da Marcinha, morena de dezenove anos, dona de musculosas pernas, a paixão de todo o quarteirão.

Urso é um cão vira-lata que perambula pelas ruas do centro. Sua idade e cor são indefinidas. A bicheira já comeu metade de sua orelha direita, suas patas são aleijadas de atropelamentos. Assustado, seu olhar perdeu o brilho há muito tempo. Desaprendeu de latir. Como se deita em qualquer lugar, acabou entrando no ninho de mendigos; porém, descobre, tardiamente, que foi dormir com o inimigo. De madrugada, um pedinte jogou-lhe álcool e riscou o fósforo. Que cheiro nauseabundo!

Vânia é uma linda modelo de dezesseis aninhos. Desfila nas passarelas usando sumaríssimas peças de lingerie. O atual namorado está sempre trocando de carro, para desfilar com ela, seu merecido troféu. Vânia acalenta um ideal: quer posar nua em uma revista masculina de grande circulação. A família apóia a menina e torce por ela.

Xênia foi professora a vida toda. Ensinou alunos a ler e a escrever, com muito idealismo, no início da carreira. Os salários aviltados rapidamente destruíram sua energia, trazendo angústias e depressão. Mas, com heroísmo e determinação, cumpriu seu dever até se aposentar. Pratica tai chi chuan na pracinha perto de sua casa, bem cedinho, às segundas e quartas-feiras. À tarde, lê jornal, arruma a casa e faz compras no bairro. Dorme tarde pois os calores noturnos a deixaram insone. Outro dia, após o banho, descobriu que estava ficando bem gordinha. Rugas, perdeu a conta... Desanimada, retirou os espelhos da casa, colocando no lugar imagens de santos emolduradas por madeira envernizada.

Zélia cansou de sonhar. Uma vez tomou vários comprimidos com uísque, todavia a filha mais nova chegou a tempo, levou-a para o hospital e sua vida foi salva. Desta vez, vai pular do décimo andar. De um prédio antigo no centro da cidade.

Eu sou todos eles. Só não vou pular de prédio nenhum porque tenho medo de altura.