RAINHA
DE SABÁ
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Luís
Valise
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O crioulo esguio, magreza coberta de musculatura enxuta fechou o chuveiro, se enxugou sem pressa, e começou a fazer a barba. A lâmina corria macia sobre a espuma branca, descobrindo a pele negra sobre o rosto arredondado. Tereza abriu a porta do banheiro: - Vai demorar? - Pode ir servindo, que eu já estou saindo. Passou pela cozinha com a toalha enrolada na cintura, entrou no quarto e vestiu a zorba preta, justa. Voltou à cozinha, sentou-se, e mergulhou no arroz com feijão, bife e batata frita. Tereza perguntou se ele voltaria tarde: - Não, Nega. As noites de terça são fracas, mortas, quase sem ninguém. Volto cedo. Depois da comida, de volta ao banheiro, prosseguiu nos preparativos para o trabalho: sombra azulada sobre as pálpebras, cílios postiços, base no rosto, batom vermelho nos lábios. As unhas artificiais estavam em ordem, longas e róseas. Peruca de cabelos lisos, estilo chanel. Voltou para o quarto, a mulher escolhia a roupa no armário: - Saia e blusa, vestido ou calça comprida? - Calça. Tereza pegou um modelo jeans que terminava abaixo do joelho. Uma blusa de lycra, justa, sandálias de tira com salto alto. Olhando os pés do marido, mandou que ele sentasse na cama para retocar o esmalte das unhas. As canelas estavam bem depiladas. Um sutiã com recheio fajuto. O crioulo acabou de se vestir, subiu nos saltos altos, viu-se no espelho de corpo inteiro: um belo travesti. Treinou o sorriso de dentes brancos sob o batom rubro. Pegou a bolsa grande, com detalhes dourados, conferiu o conteúdo: documento, batom, base, rímel e a sola. Ou a Solingen. Navalha. Tereza abriu o portão, ele engatou a ré, e ao passar por ela deu a face para o beijo, preservando o batom. Recomendou: - Não durma antes de eu chegar, tá? Volto o mais cedo possível. Cruzou a calçada, engatou primeira e foi à luta. Os vizinhos viam, estranhavam, mas não eram loucos de se meter com o casal. Onde já se viu, um travesti que amava a esposa? Melhor manter distância. Melhor mesmo. Tinha marcado encontro para as cinco da tarde. Conferiu o horário, e entrou no estacionamento do shopping. Desceu a rampa até o segundo subsolo, onde já estava o Corolla prata com um decalque de São Jorge no pára-brisa traseiro. O santo estava sobre um cavalo, e espetava com a lança comprida um dragão que soltava fogo pelas ventas. O outro braço sustentava um escudo com o distintivo do Corinthians. Bem discreto. Estacionou algumas vagas na frente. Um cara magro, de cabeça raspada e camisa desabotoada, saiu do Corolla e veio carregando uma pasta. Vitor abriu a porta do passageiro, o magrelo cumprimentou: - E aí, Rainha, tudo em cima? O que vai ser hoje? Vitor respondeu sem tirar os olhos do retrovisor: - Pouca coisa, Sansão, terça-feira é fraco. Quê que você tem aí? O magro abriu a pasta: - Fumo, coca, pedra, bala... e ópio. Você nunca leva ópio. - Ninguém nunca pede ópio. O fumo tá enrolado? - Tem enrolado e tem solto. - Me vê dez baseado, dez bala e vinte de pó. - Só? - Como, só? Pruma terça até que é demais. Periga de sobrar algum pra eu curtir com a patroa. Passa a régua. - Depois você paga, Rainha, você tem crédito. - Não, quero pagar agora. Comigo é na grana, e na hora. O magro fez as contas, Vitor pegou o dinheiro na bolsa e entregou. Ao sair do carro, o cara falou: - Rainha, veja bem: Sansão é a puta que te pariu. O crioulo já saía rindo, dentes brancos cercados de vermelho. No primeiro subsolo pagou o estacionamento. Na rua pegou os óculos escuros no porta-luvas. A tarde ia morrendo, o sol pegava de frente. Passou pela avenida onde fazia ponto, viu poucos travecos desfilando. Entrou na garagem onde deixava o carro durante o trabalho. Brincou com o vigia: - Toma conta direitinho, tesão. - Tomo, Rainha, mas depois cê me dá o rabo? - Pode ser, Paraíba, pode ser. O vigia ficou olhando o travesti se afastar, o andar feminino no salto alto. Nunca tinha comido daquilo, que ele era sujeito macho, mas a Rainha... deixava-o em dúvida. Tinha ouvido falar que travesti também comia cú de homem. Tremeu de arrepio: - Sai fora, cabra da peste! Vixe! Começou a escurecer, e outros travestis foram chegando, trocando beijinhos, elogiando as colegas: - Hoje você está di-vi-na, Nicolle! E a Paulette, então? Um lu-xo! - Obrigada, Marilyn, você está um ar-ra-so! Quando Vitor dobrou a esquina, todas pararam de falar até ele chegar perto: - Cruzes, Rainha, hoje você está super-poderosa! Que coxas! Que bumbum! - E vocês, meninas, são minhas princesinhas! Risos, gritinhos, chiliques. Os carros passavam, elas ficavam de olho. De repente, uma dava o alerta: - Aquele já passou duas vezes! Tá caçando! O carro vinha lentamente, o motorista se abaixava para examinar a oferta. Dava mais uma ou duas voltas até se decidir, então criava coragem e parava. Chamava a escolhida, que se debruçava na janela aberta para combinar o preço, e entrava no carro, para voltar dali quinze ou vinte minutos, batom borrado necessitando retoque. Era sempre igual. Menos com a Rainha. Seus clientes não ficavam dando voltas, escolhendo. Chegavam direto, abriam a porta, ela entrava, e voltava mais depressa que as outras, que morriam de inveja com a quantidade de saídas que ela fazia por noite. Perguntavam qual era seu segredo, seus truques, mas Rainha não entregava o jogo: - Sei lá, crianças, comigo eles têm ejaculação precoce! Além disso, quando alguma tinha problema para receber o michê, ou quando apanhavam do freguês, era só esperar o cara aparecer de novo, e apontar: - É aquele lá, Rainha. Me bateu, e por cima não me pagou. Vitor chegava junto do carro, dava um sorriso, passava a língua lasciva sobre os lábios, e era batata! O cara convidava pra entrar, e ao chegar na rua escurecida pelas sombras das árvores nas calçadas, quando ia abrir a braguilha, tomava um porradão na boca, e sentia o aço frio no pescoço: - Quer dizer que o senhor gosta de bater nas meninas, é? Não gosta de pagar, é? Vitor fazia um pequeno corte perto do pomo-de-Adão. - Bate agora, filho da puta! Não tinha um que não tremesse. Alguns choravam, pediam perdão, punham a culpa na bebida, mas não adiantava. Vitor pedia a carteira e tomava tudo o que o sujeito tinha. Se o dinheiro era pouco, tomava o relógio. Ou a aliança. E passava a sola devagar sobre o rosto do trouxa, enquanto deixava a marca de um beijo vermelho no colarinho. Mandava o cara leva-lo de volta, e fazia a última ameaça, navalha aberta: - Se eu te vir por aqui de novo, te corto o cacete. Some! Os outros travestis faziam roda para ouvir a história, que Vitor enfeitava um pouco, e riam alto, satisfeitas e vingadas. Metade da grana arrecadada ia para a garota ofendida, metade ficava para Rainha, a soberana. Um carro chegava, parava direto, Vitor conferia o motorista e entrava. Quando chegavam na rua escura, ele já sabia o que o freguês queria. Abria a bolsa, perguntava a quantidade, então separava os cigarros de maconha, ou os papelotes de cocaína, ou o que fosse. Recebia em grana viva, o cara o levava de volta, e tchau. Vitor não era travesti, era traficante. Foi o disfarce mais original que bolou. A polícia nunca desconfiou. Às vezes tinha que dar uma grana para os homens, pagar o pau, como diziam, então Vitor fazia doce, regateava, como todas, e pagava na boa. Aquela terça estava mesmo devagar. Poucos gatos-pingados a fim de um boquete, menos ainda a fim de uma droga. Vitor não via a hora de voltar pra casa, mas ainda estava muito carregado. Tinha que esperar, tinha que faturar. Foi Priscilla quem deu o toque: - Aquele cara já passou duas vezes. Vitor viu a picape preta, faróis de milha, rodas especiais, vidros escuros, não deu atenção. Carro de boyzinho da periferia. Quando ele parou, Priscilla andou rápido, com passinhos curtos, chegou junto da janela, debruçou-se, e voltou logo: - É com você, Rainha. - Comigo? Tem certeza? - Tenho. O cara até falou teu nome: - Chama a Rainha. Vitor foi rebolando sobre os saltos altos, fazendo charme, pronto pra dizer não. O motorista não deu tempo: - Sobe. - O quê? - Sobe. - Sobe, como? Sobe, aonde? Quem você pensa que é? - Eu sou tira. Sobe. - Eu já paguei pau anteontem. Não é uma vez por semana? Então. - Sobe, puta que o pariu! Vitor subiu, fechou a porta, apertou a bolsa na barriga. Viu que o cara era forte, podia dar trabalho. Tentou levar no papo: - Como posso saber se você é tira mesmo? O cara levantou a camisa: uma automática. - Queridinho, automática qualquer um pode ter, né? O cara não disse mais nada, passou direto pela rua escura, e foi dirigindo. Vitor também não falou mais nada, preocupado, esperando pra ver o que aconteceria. E aconteceu que o cara parou num lugar sem nada por perto, numa estrada de terra que devia dar nos cafundó do Judas. Acendeu um cigarro e ficou olhando para a crioula bonita, lábios vermelhos, dentes brancos. Vitor pensou que teria que entregar a droga. Algum freguês tinha dado com a língua nos dentes. Perguntou: - Qualé? - Qualé? Com essa puta boca bonita, esses dentes perfeitos, você ainda pergunta? Vitor teve um mau pressentimento: - Pergunto, porque faz parte: - Qualé? O tira puxou o zíper da calça para baixo: - Chupeta. Vitor tinha medo que isso pudesse acontecer um dia. Já tinha pensado nisso. E quando aconteceu, ele viu que estava fodido. Ficou sem saber o que fazer. O cara pegou com força sua mão de unhas longas e róseas, e colocou-a sobre seu colo. Vitor sentiu o pau do sujeito. Lembrou da arma sob a camisa, calculou a possibilidade. O pau começou a crescer. Foi batendo um desespero, Vitor não sabia o que fazer. Decidiu se entregar: - Porra, eu sou traficante! O outro não se abalou: - Tá certo, depois a gente discute isso. Agora eu quero uma chupeta. - Eu sou traficante, já disse! - Calma, boneca, chega mais perto... A mão no pescoço puxou a cabeça do crioulo, que exigiu: - Camisinha! Sem camisinha, nada feito! - Eu não tenho camisinha, porra! - Mas eu tenho, queridinho. Sou uma mulher previnida. A mão de Vitor entrou na grande bolsa. Foi remexendo os pacotinhos de droga, até encontrar o cabo curvo, de chifre. Puxou a navalha já entreaberta, e antes que o cara desse pela coisa, fez um corte de leve no pescoço do desgraçado. O sangue correu num filete fino. A voz do outro saiu cavernosa: - O quê é isso? - É a sola, filho da puta! E fez outro corte pequeno, mas que deve ter doído pra caralho, porque o cara gemeu um aaaaiiiii estrangulado. - Eu não te disse que eu era traficante? - Desculpe, eu me enganei... Outro corte. - Pára! Pára! - Você quer uma chupeta, né, filho da puta? Uma chupeta, é? - Não, eu não quero nada! Pode levar o carro, me deixe aqui, eu juro que nunca mais te incomodo. Vitor levantou a camisa, e pegou a automática. Depois mandou ele descer, e desceu atrás, pela mesma porta. Fez o cara prometer: - Jura que você nunca mais vai me incomodar? - Juro, juro! - Não vai me perseguir? - Não, não vou, pode acreditar! Eu juro! Mas Vitor não acreditou, e deu dois tiros no peito do sujeito, que caiu de cara no chão. Pra garantir, outro tiro na cabeça. Depois se abaixou, e procurou pelos documentos nos bolsos da calça. Encontrou uma carteira preta. Abriu. O cara era mesmo tira. Caralho! Estava encrencado. Deixou o corpo naquele mesmo lugar. Seria achado primeiro pelos urubus. Colocou alguns papelotes de cocaína e cigarros de maconha no bolso dele. Entrou na picape, e dirigiu de volta à cidade. Parou num bairro afastado do centro. Limpou a direção com um lenço. Limpou a automática, deixou-a no porta-luvas. Trancou a picape, e jogou as chaves num bueiro. Andou alguns quarteirões antes de tomar um táxi. Desceu longe do estacionamento. Ao chegar, o Paraíba foi se engraçando: - Olha, tomei conta direitinho do teu carro. Vai me dar a bunda, agora? Vitor não respondeu. O sujeito insistiu: - Nem uma chupetinha? Não imaginava o perigo. Vitor entrou no carro, tirou a peruca de Rainha. Ao sair, bateu a língua pro Paraíba: - Vai tocando uma punheta por conta! Entrou na rua de casa, embicou o carro na calçada, desceu para abrir o portão. Um vizinho abriu a janela, olhou, e tornou a fechar. Ali ninguém era besta. Vitor entrou. Tereza, deitada no sofá, desligou a televisão e levantou. Ele foi para o banheiro, tirou os cílios postiços, lavou demoradamente o rosto, até sair toda a maquiagem. Depois foi para o quarto, tirou a roupa, massageou os pés cansados do salto alto. Ao chegar na cozinha, a mesa estava posta. Se atirou com vontade no prato de feijão com arroz, bife e salada. Tereza olhava-o com carinho: - Você é tão lindo... - Minha rainha, se prepare que amanhã vamos embora. Cansei de São Paulo. - Mas eu pensava que aqui tinha mais movimento... - E tem. Mas essas terças estão acabando comigo. No dia seguinte os vizinhos olhavam disfarçadamente os preparativos para a mudança. Não sabiam de onde o estranho casal tinha vindo, nem para onde iria. E achavam melhor assim. |