AFINAL...
Flavio Luengo Gimenez
 
 
Cabelos encanecidos, olhos argutos, sobrancelhas espessas e barba sempre por fazer. Nariz entupido, talvez este clima, secura na garganta e um ouvido bom de música. Orelhas nem de mais, nem de menos. Pescoço curto: Sina de família. Cabelos espessos, sinal de antigos tempos. Boca fina, lábios ressecados, maldita umidade baixa, irrita meus brônquios cheios de gatos. Quando criança, sempre me faziam companhia. Os gatos, na noite escura, miavam dentro de meu peito. Os olhos fosforescentes deles, defendia-me cobrindo a cabeça. Assim eles iam embora mas faltava-me o ar. Eu buscava o ar desesperado em sonhos de afogamento, qual barco afundando em meio à tempestade, uma tormenta de espessos ventos e nuvens.

Quando criança eu me interessava por tudo, histórias, textos, livros antigos cheios de poeira e páginas grossas e ilustradas. Tudo me fascinava, os brilhos do céu e suas nuances, os olhares tristes de minha mãe, a curva do riacho que passava dentro do parque. Os pássaros e seus cantos pulsáteis espantavam toda e qualquer visão medonha que sequer pensasse em existir em meus dias de antes. Mirrado meu tórax de então, pequena compleição física, pouca sombra: Sina pessoal. Maior que meu próprio reflexo foi meu pensamento, minha maneira de ver o mundo, com siso e sorriso. Um brilho que nunca me fugiu, mesmo agora que escrevo estas linhas, penso em mim e meu passado e jogo os dados de minha imaginação, revendo a beleza dela no alto da escada, um casarão demolido, guerras de bolinhas de gude, tudo assomando à memória, como um emaranhado de olhares, minhas pernas enroscadas nas suas, uma calça rasgada num muro, automóveis presos num túnel, pesadelos esparsos no tempo.

Quebra-cabeças, esse sou eu, um nó de esferas do tempo, condensadas num momento único de escolhas, o nosso, o agora, o já. Um dia de luz, um sinal de sombra, que seria da luminescência se nada de decrépito existisse? Esse sou eu, miríade de formas enxutas, milhares de cores desnudas, um pensamento certeiro se formando, eu e você numa tarde serena de Outubro. Sou eu, esse que fala e escreve, num dia qualquer de um ano esquecido, eternizado agora pela força de nossos passos elétricos.

Afinal, quem sou eu?