LADO 1E LADO 2
Eduardo Prearo
 
 
Lado 1

Dilatava-se o fel de si mesmo na manhã, ia-se embora a fé, e a já pouca força também. Lesava o corpo com o fumo e intoxicado grunhia, queria amor, libertar-se. Sufocava-o o calor da pré-primavera e o canto de alguns pássaros desconhecidos. Sua sensatez caira no abismo e na escalada para baixo ele dormitaria, portanto esperava o tempo o levar até o fundo de maneira inexplicável. E foi exatamente o que aconteceu: já no fundo do abismo, no escuro, à procura da própria sensatez, não a encontrando, subiu de volta à superfície e não chorou. Agora sabia que só chorava por causa da própria miséria ou de amores recentemente perdidos. Chovia no domingo uma chuva que saía do chuveiro, chuva clorada, e a preguiça dele era tanta que a desordem ia se acumulando, mas ainda não havia a presença de insetos, só provavelmente de bactérias. O relógio da cozinha parara há séculos e tanto ele como o relógio precisavam de pilhas novas. Trocou de roupa várias vezes e queria se esquecer para sair mas não conseguia. A sua aparência sofria ondulações, por vezes parecia afeminado, talvez por causa da poluição ou do que comia. Tomou então um pílula de rivotril, drogando-se, e após alguns minutos aquele pesadelo diminuiu. Sabia que na rua ficaria bocejando, que ninguém o olharia com interesse, que ele teria vontade de passar a mão na bunda de alguém pra tomar um soco, um tiro, pra ir pra cadeia. Nos finais de semana os jovens eram os donos da cidade e os quarentões como ele desapareciam; na certa viajavam em seus carros possantes ou ficavam em suas casas curtindo tudo o que havia de novo em tecnologia. Aprendera que a sua revolta era muito pequena perto da revolta da grande maioria das pessoas, e que sua esquizofrenia era pura malandragem ou muito pequena para o governo, nada enfim grave. Querer vingar-se de um governo desses era algo absolutamente comum e compreensível, e estrebuchar-se provocaria certamente gargalhadas infinitas no inatingível poder que tinha como símbolo um pentagrama vermelho, mas que não era um símbolo invertido como a suástica dos nazistas. O que o havia de redimir naquele domingo de Sol? Era o errado, o inconseqüente, e o seu ter o que fazer era o não ter o que fazer para os outros, os eternos desconhecidos que o faziam perceber perseguição onde na verdade existia correção. Claro, as pessoas preocupavam-se umas com as outras, desconhecidos preocupavam-se com desconhecidos, daí a causa dos sussurros, das invectivas, das difamações. Ninguém o prejudicava, apenas davam rasteiras para que ele se fortificasse. Enfim, vestiu-se de uma forma aceitável para ele mesmo e saiu pra rua. Ra-ré-ri-ró-rua!

Lado 2

Dilatava-se o amor por si mesmo na manhã, vinha a fé e com ela muita força também. Não lesava o corpo com nada, tinha amor, estava liberto. Deliciava-o o calor da pré-primavera e o canto de alguns pássaros maravilhosos. Sua mesquinhez caira no abismo e ele não desceu pra resgatá-la, mas para contemplar uma das mais belas flores do mundo: a rainha do abismo. Subiu de volta à superfície e chorou. Agora sabia que chorava por amor à vida. Chovia no domingo uma chuvinha imaginária, bem-fazeja, e sua mania de limpeza era tanta que os móveis brilhavam. O tic-tac do relógio da cozinha evocava uma doce tranquilidade. Vestiu uma roupa mas depois destrocou-se porque havia ficado lindo demais, o que poderia provocar ciúmes nas pessoas. A sua aparência estava cada vez mais agradável, talvez por causa dos alimentos orgânicos que comia. Tomou, então, uma pílula de vitamina C e após alguns minutos se sentiu mais disposto ainda. Sabia que na rua ficaria sorrindo o tempo todo, que muita gente o olharia com interesse, que ele teria vontade de conversar com alguém para dar um apoio, uma palavra de força ou de carinho. Nos finais de semana os jovens embelezavam a cidade, e os quarentões como ele ficavam deslumbrados. Aprendera que sua revolta contra a pobreza era grande e que sua inteligência atraía até o governo. Mostrar que amava a pátria era algo absolutamente louvável, e gritar eu amo meu país em alto e bom som provocaria certamente reações de simpatia infinita por parte do poder. Estava redimido. Era o certo, o conseqüente, tinha muito o que fazer. Enfim, saiu para a rua. Rá-rá, como era bom estar vivo no Terceiro Mundo.