AMIGOS, NUNCA MÁS
Mauro Darcy Spinato
 
 

Faltavam poucos minutos para as vinte horas quando Rodolfo chegou, trazendo Rosinha, , dois filhos e um pacote de lingüiça. O pequeno salão de festas estava vazio, com apenas uma lâmpada acesa a iluminar o canto da churrasqueira. Rodolfo ligou o resto das luzes, colocou o carvão e acendeu o fogo. Colocava as lingüiças na grelha quando Sergei entrou. Ele, Cléia e mais duas filhas. Ainda cumprimentavam-se quando os outros chegaram. Mário e Marina com seu casal de filhos, Carlos e Carina e mais seis crianças, Zeca e Zecão com suas esposas e mais outra penca de filhos.

O salão encheu-se rapidamente e o burburinho das conversas tomou conta do lugar. Muitos reencontros, abraços e beijos. Alguns riam, outros bebiam e algumas lágrimas rolavam. O fogo crepitava e as carnes trazidas por cada uma das famílias assavam sobre as brasas. A noite de sábado iniciava agradável. A reunião anual daquele grupo que se autodenominava "A Turma" não acontecia em datas determinadas mas sim, em datas possíveis. A "Turma" nada mais era que uma amizade nascida nos tempos da adolescência, como tantas outras. Terminado o tempo de escola, cada um construiu sua história do modo que pode, de acordo com suas características e capacidades.

Rodolfo vinha de uma família abastada, passou a juventude em berço de ouro, sem preocupações. Nos anos que freqüentou a faculdade de administração passava mais tempo nas mesas de pôquer e boates da moda que dentro das salas de aula. Casou com a loiríssima Rosinha, também da classe A, mas por não saberem administrar nada viveram de mesadas até que turbulências econômicas derrubaram suas famílias para patamares mais baixos da hierarquia social. Sem a ajuda dos pais, Rodolfo andou por pequenos cargos em empresas menores. Rosinha se virava fazendo doces e salgados por encomenda. Sergei concluiu a faculdade de geologia sustentado pela pequena tabacaria do pai. Inteligente, mas sem perspectivas de emprego na área, foi trabalhar numa oficina mecânica onde é, até hoje, o mecânico-chefe. Casou com Cléia, enfermeira concursada do município, que não era da Turma original mas foi logo aceita e bem recebida.

Mário, quieto, classe média, cresceu ajudando o pai na borracharia. Com esforço e audácia, conseguiu transformar uma grande borracharia numa pequena recapadora de pneus. Fez dívidas, investiu e trabalhou muito. Para surpresa de alguns, conseguiu ascender na posição econômica. Da Turma é o único sem formação superior, casado porém com a psicóloga Marina, filha de um médico de renome na região.

Zeca e Zecão, irmãos, bateram asas e foram para o longínquo Amapá. Estudaram e viraram doutores em zootecnia e biologia, respectivamente. De lá trouxeram Ana e Jane, suas mulheres. Carlos, o médico da turma, e Carina, fisioterapeuta, hoje apelidados carinhosamente de "casal coelho", devido ao número da prole. Os primeiros pedaços de lingüiça com farinha estavam sendo servidos quando chegou Neco, o químico, e Marli, a nutricionista gorda. As crianças da Turma ocupavam o espaço do playground ao lado do salão com uma eclética faixa etária, que ia dos dois aos vinte e cinco anos. Por último, como de costume, chegou Iglesias trazendo consigo a insuportável Nádia, perua superficial e burra. Rodolfo e Bino cuidavam do churrasco enquanto Mário passava a bandeja com os aperitivos. Rosinha, Marina e Jane perfilavam os pratos, talheres e copos em duas grandes mesas. Carlos colocava os refrigerantes e cervejas. Alguns já tomavam seus lugares quando Mário perguntou:

- E o Nélio?

Nélio, o caribenho, o brincalhão, o mais bonachão da turma. Veio com os pais para o Brasil com apenas dez anos e jamais perdeu o sotaque. Herdou da família uma indústria de máquinas agrícolas e foi a pique. Faliu e transferiu-se apressadamente para um pequeno município no interior do Piauí. De lá chegou, nos mais tarde, a notícia que havia morrido afogado durante o naufrágio de um barco. Uma semana depois do acidente o corpo foi resgatado e rapidamente levado à cremação. Romi e os três filhos enfrentaram tudo sozinhos pois devido à distância e aos custos ninguém da Turma pode estar presente. Todos foram informados e acompanharam as buscas através das notícias transmitidas por Romi. O acidente de uma vítima só, que não chegou ser noticiado no sul do país. Todos sabiam que Nélio não viria esta noite.

A pergunta de Mário seria apenas um pretexto para colocar o nome do amigo no assunto das conversas, não fosse a afirmação que se seguiu.

- Eu acho que o Nélio não morreu!

Por dois segundos, um silêncio se fez. Alguns riram, outros caçoaram e rapidamente Marina veio em defesa do marido. Como psicóloga explicou que Mário não aceitava a morte de Nélio e o fato de não ver o corpo nem vivenciar a dor de perto tornaram-no resistente em aceitar realidade. Mário estava sério, e decidido.

- Eu vi na internet. Ou melhor, eu não vi nada na internet. Não existe nada lá.

O nome do Nélio só aparece nos anúncios que nós colocamos. Não existe registro do acidente em nenhum jornal do Piauí, nem estações de rádio, nada. Será que não foi notícia nem na cidade que ele morava? Pensem! O Nélio saiu daqui com sérias dificuldades financeiras e todos nós sabemos que lá no Piauí a situação pouco se modificou. Os processos judiciais trabalhistas, penhoras e intimações não desapareceram. Pensem bem. Um seguro alto, um acidente falso, uma morte oficial. Para nós, apenas a notícia da morte. Encerram-se os processos, findam-se as dívidas. Estamos no Brasil, documentos compram-se em qualquer esquina. Rodolfo arregala os olhos com uma expressão de espanto de quem foi cúmplice numa enorme armação. Mário entendeu que ele sabe mais que os outros naquele salão. Era óbvio, Rodolfo foi sempre o mais próximo de Nélio. Estudaram juntos, moraram juntos, eram como irmãos; no entanto, foi o único que não chorou ao receber a notícia. Marina levantou rapidamente da mesa e, pela mão, puxou Mário para o playground.

- Mário, por favor, para com essa paranóia. De onde você tirou essas idéias?

Aqui é a vida real, não um filme. Essa sua atitude está beirando a esquizofrenia.

As palavras ásperas de Marina balançaram a razão e o emocional de Mário. Sentiu-se meio perdido, um pouco insano. Tinha medo da insanidade. Respirou fundo e fumou um cigarro caminhando pela grama. Quando retornaram o churrasco já estava servido e o assunto esquecido. Mário e Marina sentaram e aproveitaram a festa. A noite tinha uma temperatura agradável, sem nuvens e sem lua. Do outro lado da rua um vulto encostado num citroen prata observava o interior do salão de grandes janelas. As roupas largas deixavam-no mais obeso, um boné escurecia o rosto de Nélio. Não fazia mais parte da Turma. Nunca mais. De todos só sobraria Rodolfo, com quem trocaria e-mails com uma nova identidade qualquer e teria alguns raros encontros secretos. Fez o que achou certo. Trocou os amigos pelo bem estar financeiro da família. Morreu para renascer, para um novo começo, uma nova história. No próximo mês mudará para Manaus, com sua nova identidade e antiga família. Lá, irá desaparecer para sempre.

Nélio observou longamente a confraternização e desejou entrar e abraçar um por um. Em pensamento despediu-se dos seus ex-amigos ainda com seu inconfundível sotaque caribenho-português. - Adéus, amigóss, adéus. - Então abriu a porta do carro, colocou o cinto de segurança e foi embora. Para sempre.