FOTOGRAFIA
Luísa Aparecida Mendo
 
 

Joana subiu devagar os degraus. Tinha mais tempo que disposição. A chave, emperrada, insistia em não realizar sua tarefa e foi preciso muita paciência e óleo lubrificante para conseguir destrancar aquela porta. Em outros tempos Joana teria usado os pés, para colocar abaixo aquela desaforada, mas não era só a fechadura do sótão que havia emperrado. "Cuidado com o coração, não abuse" recomendava, toda semana, o doutor Artur, mas o doutor Artur não ficava o dia todo trancado em uma casa velha.

Os sobrinhos haviam transferido o quarto de Joana para o primeiro andar, por motivos de segurança e ela estava, terminantemente, proibida de dirigir-se à parte alta da casa. "Nada de escadas." Como se fosse possível viver rasteiro!
A empregada deixou o almoço semi-pronto e a casa semi-limpa, como fazia todas as manhãs, com exceção dos dias de visita dos sobrinhos e caiu no mundo. Voltaria só à noitinha, para espiar sua galinha dos ovos de ouro. - Um dia isso acaba! - dizia Joana para si mesma, mas tinha medo de reclamar e os sobrinhos mandarem uma pior que aquela.

Se a casa andava envolta em poeira, o sótão parecia soterrado. Joana riu do trocadilho que lhe veio à cabeça e procurou um lugar para sentar-se, pois a luta, travada com a fechadura, havia abalado todo seu esqueleto. A luz do sol atravessava a pequena clarabóia e despejava-se sobre o monturo de coisas diversas e de diferentes idades e a poeira, agitada pela intromissão de Joana, dançava, revestida de brilho colorido, como se quisesse apontar o brilho da vida escondido naquelas caixas.

Sem saber o que estava procurando, Joana foi abrindo gavetas e desfazendo embrulhos. Sentia-se como um pirata solitário, que abre seu tesouro e espia nele os melhores momentos de sua vida, suas lutas, suas alegrias, suas conquistas e, depois, sem poder partilhar esse tesouro, recoloca as pedras sobre o baú e volta para o comum das coisas, levando consigo apenas o mapa daquilo que não pode usufruir.

As medalhas pendiam no aparador feito de mogno e o aparador pendia frouxo sobre a velha máquina de costura; as fitas coloridas haviam desbotado, como a própria vida e os companheiros ficaram presos naquela fotografia. Era isso!

Joana apanhou a fotografia e demorou para encontrar a si mesma. Era a quarta da direita para a esquerda, bem ao lado daquela moça, - Como é mesmo o nome dela? - que deixou o esporte para se casar com um príncipe africano.

- Que festa!

- Como? - Joana desequilibrou-se com a observação do jovem ao seu lado.

- A festa do casamento de Lígia com o príncipe africano. - disse o rapaz, ajudando Joana a sentar-se novamente sobre o baú.

Um grande silêncio se fez e Joana, de olhos fechados, esperava recuperar o juízo, pois um homem não pode sair de uma fotografia.

Alguém deu início a um aplauso e num instante, uma multidão batia palmas dentro do sótão. Joana abriu os olhos e seu coração seguiu o ritmo alucinado das batidas. - Cuidado com o coração. - costuma dizer o doutor Artur, mas o doutor Artur nunca soube o que é subir num pódio, nunca ouviu o hino de seu país ser tocado por sua causa. Essas coisas criam fibras especiais no coração e eles deixam de ser mortais.

Joana não ria daquele jeito, desde o dia em que voltou do enterro de Abelardo. Naquele dia ela deixou sob a lápide não só o amigo e companheiro de toda uma vida, mas a própria vibração da vida e seguiu os dias, os meses e os intermináveis anos, envolvida em tristeza. Seu coração era imortal, para desespero de seus herdeiros e alegria de sua empregada relapsa. Agora o riso voltava como uma cachoeira e se misturava ao vozerio da turma toda.

O sótão era pequeno e estava atulhado de trastes, mas cada um foi se ajeitando sobre os escombros daquela vida. Estavam com seus rostos jovens e seus corpos atléticos, como nos velhos tempos do clube náutico. Alguns traziam no peito suas medalhas e Joana quis ornar-se com as suas também, mas eram tantas que o velho corpo arqueado não podia sustentar.

O sol dourado, que vazava pela clarabóia, foi esmaecendo, como se lhe retirassem as últimas forças e, ao som vibrante daquele riso solto da juventude, o ambiente foi mergulhando na escuridão.

Joana foi encontrada, naquela mesma noite, no sótão da casa. Trazia ao pescoço as medalhas dos tempos de natação e na mão direita a fotografia desbotada. O coração imortal continuava a bater, mas em outro tempo e outro local, junto de seus amigos e bem longe daquela casa velha e triste, por isso o corpo rígido tinha a boca retorcida num sorriso maroto.