A
VERDADE
|
Andre
Calazans
|
-
A verdade é essa ! - disse o homem, para uma platéia de
amigos atônitos. Por um instante, todos se calam diante de sua
convicção. Entretanto, o senso crítico vai retornando
à turma, aos poucos. -
Peraí, peraí ! O que você falou faz sentido, tudo
bem. Mas não pode ser outra coisa, não ? E aquilo que
ele falou ? -
Isso mesmo, você não tá escutando a gente. Por que
ele não pode estar certo ? -
Porcaria nenhuma, já falei. Vocês não sabem de nada
. Esse cara, então, tá viajando geral. Precisa se informar
melhor, muito melhor. -
Meu amigo, põe mais duas aqui, por favor. -
Viajando por quê ? Hein ? hein ? -
Quer dizer que, de repente, você agora se acha mais inteligente
que a gente ? -
Me desculpe, mas "de repente, inteligente, que a gente" é
horrível. -
Coisa de paulista ... -
Que é que tem paulista ? Minha mãe é de São
Paulo ... -
Não quis ofender, é só um estilo de falar meio
assim. -
Assim como ? -
Meio cantado ... -
Mas o que é que vocês tão falando ? Não tavam
questionando o que eu falei ? -
Pô, o caro é masoquista, gosta de ser contestado. -
Masoquista nada, ele é metido pra cassete, se acha uma sumidade
... -
Quer aparecer, só isso. -
Bom, vamos voltar ao que a gente tava discutindo. -
Tá legal, tá legal. O problema todo era que o cara tava
dizendo que só ele sabe das coisas, entende tudo de tudo. Ao
contrário de nós, que somos umas bestas ... -
Não falei isso, apenas expus meu ponto de vista. Vocês
é que não estão conseguindo captar a profundidade
das minhas argumentações, baseadas em amplo conhecimento. -
Profundidade porcaria nenhuma, você tá é querendo
tirar onda com a gente ! -
É, o cara sempre sabe de tudo, é o dono da verdade. -
E ele quer sempre terminar as discussões, ter a última
palavra. Enche o saco, não deixa ninguém falar, e não
convence ninguém. -
Já reparou como ele discorda de todo mundo ? -
Eu não tenho culpa se vocês não conseguem alcançar
o que eu tô falando. O teu irmão, por exemplo, até
que tenta, articula melhor, muita coisa se salva ... -
Articula melhor ? Te esculachou, mermão, e ainda chamou o resto
de besta quadrada, que não dá nem pra saída. -
Ô, peraí, não adianta querer botar pilha. Mas vamos
voltar ao assunto que a gente tava discutindo ! -
É isso aí, se não, vira zona. Começa falando
de asa de borboleta e termina em porta-avião ... -
Não entendi, o que você quis dizer com isso ? Por que borboleta,
porta-avião ? -
Não quis dizer nada de mais, apenas que a gente está desviando
da conversa. -
Deve ter algum sentido oculto, alguma mensagem nessa comparação.
Afinal, você não é o bam-bam-bam, sabe de tudo ? -
Vamos calar a boca, que se dane os dois, e vamos retomar a discussão. -
O que tu ia falar mesmo ? Tá angustiado pra falar há um
tempão ... -
Ih, cassete, esqueci o que era. Só sei que era importante. Eu
ia enterrar com o que esse cara tava falando. -
Larga de besteira, se fosse importante tu não esquecia ! -
Lá vem essa mala de novo. Não deixa ninguém falar. -
Até que enfim você abriu a boca, pensei que tava morto.
Falaí, rapá, diz o que você acha. -
Eu num acho nada, só tô ficando de saco cheio dessa conversa. -
Então vamos concluir logo. -
Por mim, já encerrou a conversa há muito tempo. Já
falei o que é, o que não é. O que é verdade
e o que é papo furado. Se vocês quiserem, acreditem. Se
não quiserem, o problema é de vocês, que vão
continuar vivendo na ignorância. -
Caraca, que cara nojento. Muito metido, mermão. -
Pior que é, o cara não dá o braço a torcer,
é o dono da verdade sempre. -
É claro, vocês é que querem continuar vivendo nas
trevas ... -
Na boa, na boa, acho que você falou um monte de besteiras. Até
concordo com aquilo que tu falou no final, mas o resto é muita
idiotice mesmo. Papo de botequim. -
Mas nós tamos onde, seu imbecil ? -
Tudo bem, mas a gente é diferente, não fica bebendo e
falando besteira, jogando conversa fora ... -
Ô, seu idiota, fala baixo, que daqui a pouco os outros que tão
bebendo vão enfiar a porrada na gente ... Como é que tu
fala um negócio desse aqui ? -
Que outros ? O bar tá vazio. Só tem a gente. -
É mermo, acho que os caras tão querendo fechar. -
Você acha ? Olha lá o cara jogando a água no chão. -
As cadeiras das outras mesas já tão tudo virada ... -
Faz o seguinte, vamos pedir a saideira. -
Meu amigo, mais duas e a conta, por favor. E vê um varejo também. -
A gente vai sair daqui sem chegar a um consenso ? -
Quando é que a gente chegou a um consenso antes ? -
Pelo menos parcial, pelo menos parcial. Nei, retoma aí. O que
tu tava falando ? -
É ... bem ... que parte ? Desde o início ? Só sei
que ... -
E aí ? Só pra concluir o assunto. A tua opinião,
vamos lá. -
Era ... -
Então ? Resume o que tu falou, só isso. -
Vamos logo, a gente já tá saindo. - Sem pressão, sem pressão ! Eu não me lembro direito ... só sei que era a verdade. |