PONTE
SOBRE ALMADOVAR
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Luísa
Ataíde
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Às
vezes vejo as fotografias impressas na parede da casa. Foto em preto
e branco sem foco, feito neblina de inverno."
Sob
a asa esquerda estava o menino. Cabelos cacheados quase ruivos, o sono
dos justos. Sob a outra asa, outros dois brincavam no ninho de penas
coloridas. Sobre o dorso dinossáurico uma mulher costurava. Imersa
da tarefa, nada via. Tentou buscar os olhos da mulher num contato quase
telepático. Um simples olhar poderia salvá-los. Por breve
instante a mulher deitou ao lado a costura e levantou do colo o livro.
Absorveu-se mais ainda no texto e não olhou ao redor. A
ave sustentava o olhar enigmático. Limpou o bico no chão
da sala duas vezes. Retomou a altivez da partida. Pensou em gritar à
mulher que agora lia :
A mulher sorriu calmamente: Deu alguns passos até as portas de vidro que conduziam à varanda, na tentativa de fechá-las. A imensa ave lançou o grasno rouco na direção do teto e balançou, agora com força, as asas. Curvou o corpo para esquerda e arremessou-se em direção à tarde que sangrava luz. O barulho dos vidros estilhaçando-se no chão da sala estremeceu-lhe os tímpanos. A mulher sobre o dorso do animal, dobrou a página do livro. Sobre a rosa dos ventos apenas o vermelho óxido das folhas e vidros como diamantes finos. Da parede nasciam lentamente as vibrações da música. As notas ásperas, o avesso da harmonia. Iniciou-se A grande Fuga, Ludwig Van Bethoven. |