BURACO
BRANCO
|
||
Júlio
César Caetano
|
||
Estou sentindo, estou sentindo algo forte e ruim, uma sensação de algum acontecimento que está se arquitetando à minha volta, as peças estão se juntando, os vazios se preenchendo de vazio. Buraco branco. Como se uma sombra viesse fazendo apodrecer tudo por onde passa, todo o vivo e todo o morto. Arrastando tudo, arrasando tudo, como um furacão. Meu corpo me dói e me sinto fraco. Devo estar amarelecido, olhos caídos, rosto murcho, lábios pendentes. Não quero sair desta cabine de banheiro, sei que vou cruzar pelas pessoas e elas vão me olhar, vão me ver como se estivesse adoentado, vão me perguntar se está tudo bem, vão me fazer sentar, tomar água ou chá de qualquer coisa, o chefe me dirá para eu ir ao médico, tirar o dia. Não, não vão me perguntar coisa alguma, apenas me olharão com seus olhos doentes para meu rosto adoecido, amarelo e frouxo. Não vão dizer que é para eu me sentar, nem oferecerão qualquer líquido. O chefe vai me perguntar porque estou com esta cara de bosta e vai mandar eu terminar o trabalho. Estou
realmente amarelo e com sono, muito sono. Tenho tido dificuldades para
dormir, fico apenas girando pelo lençol à noite, sequer
penso. E, quando vou me olhar pela manhã, vejo que as bolsas
arroxeadas embaixo de meus olhos estão cada vez maiores e se
tornando negras. Tenho tremores durante o dia, tremores que nascem nos
ombros e chegam a todo o corpo, como se esbarrassem em mim uns seres
invisíveis e mal-criados que sequer pedem desculpas. Nem eu a
eles. Finjo
trabalhar até que a hora chegue, saio lento pelo corredor da
empresa, cumprimento as pessoas que estão por ali mas não
me respondem, talvez não pela má educação,
mas pelo fato de que chego e saio daquele lugar como se chegasse ou
saísse de lugar algum. O trânsito, o final de tarde abafado,
calor que parece desmanchar as coisas e as vontades. Antes da casa,
penso no supermercado. Corro os olhos pelas gôndolas, finjo prestar atenção às letras vermelho-gritantes: promoção! Ouço o locutor oferecendo uma bicicleta ergométrica com regulagem de força e monitor de batimentos cardíacos com preço especial e parcelado em dez vezes, taxas amigáveis de juros. A cesta vazia, o exagero de luz me doendo a vista, os nervos. Os seguranças vestidos como se fossem garçons, salvo a gravata preta quadrada, se comunicando em seus walkie-talkies chiados e me observando. Entro na seção de congelados, um deles por ali, falando. Vou para a seção de vinhos, outro. Disfarçam, dão informações às velhinhas desavisadas, mas o canto de seus olhos estão sempre guardados para mim. Passo pela seção de padaria, gosto do cheiro que tem o pão fresco, lembro-me de manhãs infantis, mamãe me acordando com um copo de café com leite nas mãos, depois o pão sobre a mesa, a margarina, o requeijão. Mas
é apenas um cheiro. O pão é duro e seco, de casca
esfarelenta, o miolo nunca sai por inteiro. Um pão adoecido,
meu rosto amarelado, uma mulher oferecendo a degustação
de um novo iogurte, os walkie-talkies chiados, a caixa perguntando:
"Algo mais, senhor?". Sim, minha filha. Sim. Tudo o mais. Chego
no prédio, vejo a infiltração nas paredes esverdeadas
do corredor, um cheiro nauseante de limpeza mal feita, alguém
pigarreia num dos apartamentos, crianças gritam na rua por uma
bola, "Gol!", procuro a chaves nos bolsos e deixo cair a sacola
no chão, o vidro de palmito se quebra. Logo o de palmito, que
eu queria tanto comer. Vejo a água se empoçando no piso
de lajotas quebradas do corredor, os cilíndricos palmitos, uns
já se desfiando. O gosto vai se derretendo na memória.
Agacho-me, meu rosto se reflete na água. Reconheço-me
e não nego: Queria sim aquele chá. Também aquela
palavra, aquele passar de mão no ombro. Na
porta de casa, um vaso com uma samambaia. Com o braço cambaleante
pela sacola, passo a mão pelo xaxim que me espeta. Surge uma
bolinha de sangue bem na ponta do indicador, esfrego nela o polegar
e deixo minhas impressões na porta. Ouvi dizer que choveria à
noite e que a tarifa da luz aumentaria. |
||