A
SORTE ESTÁ LANÇADA
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Flavio
Luengo Gimenez
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Eu
sentia que meu mundo sumira, como que sugado sob meus pés.
Faltou-me o chão, no momento que eu mais precisava e não
era sem tempo, muitas vezes eu tentara em vão me desvencilhar
mas sempre encontrava um subterfúgio, uma saída. --Na
próxima. Tudo
o que fizera até então deixava apenas uma pálida
sombra, como se se agigantasse o momento atual para que o que já
fora esmaecesse feito uma folha estiolando na escuridão. Num
quarto escuro, uma lâmpada acesa ao fundo, da janela do vizinho,
era o que me iluminava além do cigarro eternamente aceso e
a fumaça que enchia meu quarto de miasmas de fumo barato. --Eu
paro. Minha
mulher? Sumiu no mundo. Não quis nem conversar. Meus filhos?
Independentes, crescidos e mal-agradecidos. Nem uma palavra, nenhum
telefonema. Nem se dignaram a me visitar no auge de meu desespero.
Nestas horas que a gente vê o quanto é querido, até
os amigos desaparecem. Pelo menos os que se dizem amigos. --Até
mais! E
Deus, onde foi parar nesta hora? É assim que ele me trata?
Assim que ele me deixa, sem amparo, sem guarida? Minha vida virou
um inferno, tudo de pernas para o ar, de repente eu deixo tudo para
trás, tento esquecer e dar a volta por cima. Mas não.
Deus é uma figura metafórica, é uma palavra escrita
em livros compilados há séculos, Deus está morto
e o céu está deserto, afinal, Darwin, Marx, Lênin,
Nietzche e Gagárin não provaram? Tento controlar minha
mágoa, minha raiva final. Ninguém tem culpa, eu sei.
Muito menos eu! --Na
semana! A
luz do quarto em frente se apaga, com ela se vai o fio de esperança
que ainda resta, eu olho o horizonte ressequido, cheio de nuvens de
gás ácido amarelado, as folhas das árvores secas
e doentes. Ninguém tem culpa, eu sei. Nem eu! --Amanhã! Olho
o pequeno frasco de líqüido leitoso, que brilha ao reflexo
de um poste com a última lâmpada de mercúrio que
sobrou por estas bandas. Lá está a alma, minha alma,
dentro de um frasco leitoso, de vidro fino e fácil de quebrar,
meu néctar de frutas sem casca, meu paraíso de virgens
sem cor. O cigarro já me queima a ponta dos dedos sujos de
nicotina. Eu preciso dormir, preciso viver, preciso comer...Mas nada
disto importa agora quando a dor se insinua em meu ventre, quando
a sede mata minha esperança e a fome indescritível macera
meus mais ínfimos sonhos em nome de um maior sonho, o meu,
o nosso. O sonho em forma de vidro fosco, de garrafa de gênio
noturno, opaco e fosforescente veneno. --Eu
paro! --Quem
falou? --Sou
eu. ...Novamente
dialogando com o pálido líqüido que se move como
uma bolha de óleo na água do fundo. Deus está
morto, a evolução nos fez superiores, os cientistas
pesquisaram e nasceram os Deuses Iluminados, condensados na garrafinha,
oh suave oásis! Como posso resistir aos seus gemidos, como
posso deixar de ouvir seus apelos sensuais, se eu próprio já
não tenho nenhuma dúvida do que devo fazer? Tomo
o frasco nas mãos. Olho a janela do vizinho( da última
vez ele me viu e me convenceu a deixar aquilo para trás, mas
algo lhe aconteceu porque hoje não vejo a luz de seu quarto
acesa.) A lâmpada de mercúrio é agressiva, num
brilho quase assassino. Eu comprimo o pescoço do frasco, a
tampinha de vidro salta feito papel seco e entra em minha pele salgada
de suor seco de dias sem luz. --Mais
tarde! Mais tarde! Brota
o sangue de meu indicador, umedecendo meu polegar, calejado de anos
e anos de fumaça e impurezas. Será que o vizinho está
mal? Será que sua esposa o compreende? Terá ele filhos
ingratos como os meus? Saberá ele o paradeiro de seus netos,
de sua prole, terá ele espalhado pelo mundo sua fecundidade,
sua sementeira? Sua amante será bela como minha garrafinha?
Terá ela lindos olhos de vagabunda ou será um olhar
esgazeado de louca como os que vejo agora no espelho quebrado de minha
sala devastada? Deus, ele está morto. Seus anjos? O abandonaram.
O céu? Está deserto, não há virgens me
esperando no Éden, não há harpas me aguardando
no paraíso, não há flores a mais que as flores
secas que pendem de minha janela com face norte para o Abismo. Tomo
de uma só vez o conteúdo da garrafa. |
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