E NESSA CASA TEM GOTEIRA
Tiago Velasco
 
 
Quarta-feira. Acabei de voltar do almoço. Abro o e-mail no computador do trabalho. O peso da comida me dá sono. A mensagem piscante no monitor diz: “CACHAÇA DE SALINAS, MG. Empresa de cachaça tradicional de Salinas, há 27 anos no mercado, marca notória, estrutura para armazenar, envelhecer e engarrafar mais de 150.000 litros, apta a exportar...” Huummm. Senti uma molezinha boa no corpo, uma leve queda de pressão.

Saio flutuando, guiado pelo cheiro da caninha envelhecida no carvalho. As pessoas meio embaçadas nas ruas parecem não me ver. Adentro a porta de vidro e madeira em um beco na Rua Carlos Góis a poucos passos do Cinema Leblon. Estou no paraíso etílico da destilada nacional, numa pequena e aconchegante loja especializada em cachaças artesanais de qualidade.

Os donos, um casal de engenheiros, jogam sujo: além de extremamente simpáticos, ainda me oferecem provas das mais variadas aguardentes. Quanta perspicácia! Enquanto saboreio uma cachacinha, folheio os livros sobre a bebida na estante, olho os copinhos que todo brasileiro cabra-macho deveria ter em casa e viajo pelo interior do país impresso em cada rótulo fixado nas inúmeras garrafas disponíveis na loja.

Procuro por uma das minhas preferidas. Ah, Lúcia Veríssimo, ainda batendo um bolão. É da branquinha. Por onde ela passa, é só afago. Eu tinha uma garrafa pequena dessa em casa, apelidada carinhosamente de Lucinha. Mas o meu coração é de mãe, e guardo nele, em espaços equivalentes, a Gabriela, envelhecida, religiosamente, com cravo e canela, nos barris da Capelinha.
Não tem problema não ter nenhuma das duas para saborear. Na verdade, há várias marcas mais respeitadas na lojinha, mas sem o mesmo valor sentimental – que é algo muito sério e não deve ser menosprezado em hipótese alguma.

O apego à caninha é grande e faz parte da nossa cultura, vide como são batizadas: Minha Deusa, Rainha da Lavoura, Apetitosa, Caprichosa, Boazinha, sem falar da criatividade popular, que criou apelidos aos borbotões. A nossa cachaça, dependendo de quem fala, pode ser chamada de baronesa, cândida, ou, também, por codinomes menos nobres, como desgraçada, malfadada, marvada e mata-bicho.

Triiim, triiim, o telefone. Fui teletransportado, subitamente, da inebriante cachaçaria para a sala branca e fria do escritório onde trabalho. Doeu. Viagem assim, tão abrupta, deve ser sempre evitada, pois pode ser extremamente traumática.

"Você tem certeza que deseja apagar essa mensagem?"