OLHOS
NEGROS
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Luís
Valise
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Guardava um segredo tão secreto que passou anos sem pensar nele, até que um gole de licor, não mais que um, acordou a lembrança das coxas morenas, e a lembrança da dona das coxas morenas. Há quanto tempo? Amor não passa, já sabia, fica quieto num canto, imóvel como essa múmia encontrada depois de cinco mil anos com uma flecha no coração. Mas ao contrário da múmia, não morre, hiberna, e quando acorda, ressurge, perfurando a grossa camada de tempo que mantém o amor soterrado, e o coração, e a flecha. Mas, sendo sincero, não foi um gole de licor. Começara com cerveja, passara para o uísque e fechava com licor. É possível que um começo de embriaguez houvesse facilitado o surgimento na memória, tão subitamente, do licor caindo nas coxas morenas, e do gesto que reteve para sempre o calor e a maciez das coxas morenas. A embriaguez, no princípio, traz belas lembranças, um esquecido sopro de vida. Depois, se não cuidamos, pode estragar tudo, mesmo o que já não existe. E deve ter sido o que passou, porque, sem pensar duas vezes, pegou a chave do carro e saiu em direção das coxas morenas. A cerveja, o uísque, o licor, o carro ziguezagueava na madrugada deserta. Sabia o caminho de olhos fechados, e parecia que dirigia assim. Há quanto tempo? Parou o carro, e ao descer equilibrou-se como um surfista sobre a prancha, num mar ondulante. Alcançou o portão, demorou o dedo na campainha. Vozes, luzes acendendo, um homem alto surge na porta: - O quê você quer aqui? Balançando sobre a prancha imaginária, a voz meio embolada: - Vim buscar minha mulher. - Quê tua mulher? Você está bêbado, vai embora, vai dormir. - Eu quero minha mulher. Eu quero as coxas da minha mulher. E o licor que escorre nas coxas... O homem alto vai até a calçada, de pijamas, descalço. Atrás dele, uma voz de mulher pede: - Não bate nele, ele não está bem... Tarde demais. O homem alto dá dois socos no cara que parece estar em cima de uma prancha. O mar se abre, ele afunda. Na manhã seguinte, defronte ao espelho, não saberá a razão dos olhos pretos. Nem se lembrará do licor, ou das coxas morenas. Apenas sentirá, além da terrível ressaca, um certo incômodo no peito, onde mais uma vez hiberna a velha múmia com uma flecha cravada no coração. |