CÃO DE BÊBADO TEM DONO!
Beto Muniz
 
 

Meu pai era um promissor funcionário público quando começou a beber. Primeiro com amigos, no final do expediente, no barzinho ao lado da repartição. Depois passou a beber também no quiosque perto do ponto de ônibus e por fim em todos os botecos a caminho de casa. Em conseqüência dos exageros com a bebida foi perdendo o respeito e a companhia dos amigos, dos vizinhos, da família e bebia sozinho, em casa, na rua e finalmente no serviço. Escondido.

Não lembro de ter recebido um abraço ou alguma outra demonstração de afeto após papai se deixar dominar pela bebida. Minha mãe foi sofrendo com aquilo durante anos, tentando curas, mandingas, simpatias e cultivando um desamor até que desistiu. A gota d'água foi quando papai sumiu com o Sedento. Ele mesmo foi quem trouxe pra casa, deu nome de Sedento e ele mesmo deu fim.

Pretinho com uma mancha no olho esquerdo, o vira-latas foi nossa alegria durante meses. Eu tinha nove anos e era o segundo da prole de quatro filhos. Freqüentava com meus irmãos a escola primária e Sedento nos acompanhava até a porta do colégio, depois voltava para casa e esperava papai sair para o trabalho. Não voltava antes do bêbado retornar e parecia cão guia, vigiando os passos trôpegos de seu dono. Na manhã seguinte novamente acompanhava eu e meus irmãos à escola e depois retornava para acompanhar meu pai. Ninguém sabia dizer de onde tinha vindo, nem mesmo meu pai. No meio do ano, período de férias, Sedento tirou folga da corrida matinal, talvez por isso ficou preguiçoso e parou de ir também até a repartição. Papai pareceu não se importar, mas passadas duas semanas começou a chegar bêbado e maltratar o Sedento. Chutava se ele procurava um carinho, entornava a vasilha de água, urinava na ração do pobre e uma vez até deu cascudos em mim, que botei água nova.

Mamãe estava atenta aos seus afazeres e demorou para perceber a mudança no comportamento do cão e dos filhos. Arredios, com medo do homem mau e bêbado que chegava cada dia mais tarde do trabalho. Na volta às aulas o Sedento voltou a correr conosco pela manhã, mas pelo jeito desistira mesmo de acompanhar meu pai, pois estava esperando-nos na porta do colégio. Na sexta-feira não foi nos buscar na escola e não estava em casa quando chegamos. Quando papai retornou, no meio da noite, trôpego e barulhento, minha irmã se levantou e procurou pelo Sedento. Não achou. Perguntou para papai que desdenhou dizendo ter dado fim naquele ingrato.

Foi quando começou a briga que culminou em separação. Na madrugada mesmo tio João Guedes veio buscar nossas malas, feitas as pressas, algumas tralhas e nenhum móvel. Tudo enfiado em sacos e caixas improvisadas. Não coube tudo numa só viagem e tio João foi e voltou umas três vezes com a Belina azul. Vó Ana morava no bairro vizinho, cinco quarteirões acima, e mamãe nos levou para lá. Papai nem um pio em protesto, sentado na poltrona, parecia derrotado, vez em quando dizia algo sem nexo que só na oitava ou vigésima vez entendi. Ele dizia que o cachorro era dele. Só dele! Depois fixava os olhos na televisão desligada e repetia novamente que o cão era dele e por isso tinha o direito de dar fim nele. Na última viagem fomos todos, filhos e cacarecos apinhados na Belina. Mamãe fechou a porta dizendo que cão de bêbado não tem dono, no meio do drama a gargalhada de tio João me assustou mais ainda.

Cinco anos depois papai faleceu, pouco mais de quarenta anos, vitimado obviamente por uma crise hepática. Foi internado num dia e no outro estava sendo velado. Eu fui na casa do meu pai, a mando de alguém, buscar um par de sapatos pretos para que preparassem o corpo. Encontrei por lá outro cão, pretinho com uma mancha branca no olho. Pensei que fosse o Sedento, mas era fêmea. Vasilhas limpas, água idem, ração da boa, estava gordinha, os pêlos lustrando saúde. Viveu uns 12 anos com a gente e por mais que mamãe tenha protestado, eu e meus irmãos a apelidamos de Cirrose. Mas o nome dela, segundo a plaqueta na casinha de madeira, era Esperança.