REMÉDIO
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Aline
Carvalho
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O
rio Arrudas da minha infância sempre teve esse nome horrível
(de onde será?) e era capaz das coisas mais estremunhadas. Criancinhas
jogadas no rio Arrudas. Enchente no rio Arrudas, que meu pai levava
a gente pra ver, a água imunda do rio corrompendo as ruas vizinhas.
Sofás, botijões de gás, geladeiras, sendo carregados
pela correnteza como se imponderáveis fossem. O
rio Arrudas da minha infância só esperava o verão
chegar, a época das chuvas nas montanhas belorizontinas, para
sair do seu leito fétido e destruir barracos e vidas por onde
passasse. O
rio Arrudas povoava meus pesadelos de criança, com redemoinhos
enlameados e densos aterrorizando as noites insones da menina que fui.
Nós morávamos no alto. Racionalmente, eu sabia que a água suja do ribeirão dificilmente bateria à porta do meu quarto. Racionalmente, eu sabia; mas eu era um animal muito pouco racional. Cenas extraordinárias, visões alucinantes me visitavam: no cômodo pequeno, a água barrenta a meio metro do forro, eu com o rosto todo virado para cima, ofegando, tragando o pouco ar que restava até ser definitivamente vencida por toda aquela podridão. E
chegou o dia em que o improvável aconteceu. Eu tinha oito anos,
e dois irmãos menores, e uma amiga chamada Beatriz. Todos havíamos
ido visitar minha avó, não muito longe. E choveu, uma
chuva violenta e feia como só as que caem em Belo Horizonte sabem
ser. Prenúncio do fim do mundo. E o rio encheu. E não
se intimidou com as ladeiras, e foi avançando, avançando
e atingiu a rua onde morávamos. Meu
pai tinha um fusca 61 importado, daqueles cuja seta saía da coluna
da porta, o que quase matava minha amiga Beatriz de rir. O fusca chegando
em casa, com água pela cintura. Meu pai, alto pai, com água
pela cintura. E quatro crianças para levar de um lado a outro
da rua (rua?) invadida pela enchente. Eu
já sabia nadar. Fui dando braçadas naquele mingau marrom,
residência dos monstros mais terríveis que a imaginação
infantil pode criar. Coisas se enroscavam na minha perna. Arranhavam
meus braços. Eu e Beatriz na frente, meu pai e dois irmãos
arás. Lembro-me
bem do rosto escandalizado da minha mãe. Banho, banho, banho,
para tirar a sujeira, a ameaça de doenças, a humilhação
de ser subjugado assim por uma força natural. Crianças
limpas, mas de unhas roxas. Lábios roxos. O frio da água
nos ossos. A tremedeira, o medo. E
o meio copo de aguardente com açúcar, tomaí, menina,
que é remédio, a água fervente fazendo engasgar.
O cheiro ardente fazendo chorar. Mas o calor foi se espalhando pelas
extremidades geladas e o esquecimento foi chegando... até a água
barrenta se transformar numa poça coadjuvante. E eu aprender que existe remédio para tudo, até para enchente do rio Arrudas. |