O
SOBALA
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Raymundo
Silveira
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Conheci o Sobala há muito tempo. Desde quando me iniciei nos rituais do culto ao deus Baco, e junto com um amigo, procurava uma biboca ainda aberta. Pois naquele tempo, a partir de dez da noite, era mais fácil homem parir do que encontrar aberto algum boteco. Naquela época havia dias e, sobretudo noites, em que o esporte mais praticado pelos jovens da minha aldeia chamava-se tomar uma. Nunca vi uma expressão representar algo tão distante do seu real significado. Em todos os lugares do mundo, tomar uma quer dizer isto mesmo: ingerir uma só cerveja, uma única taça de vinho, ou entornar apenas uma dose de cachaça. Pois no dialeto da minha aldeia, tomar uma equivalia a encher a cara. O
Sobala tinha este nome, não porque seu pai quando foi registrá-lo
estivesse bêbado ou louco, mas devido a uma espécie de
lema, saudação, cumprimento, insulto, despedida, ou simplesmente
uma interjeição que ele pronunciava a troco de tudo ou
de nada, e que poderia significar qualquer coisa que só ele sabia
o que era. Em outras palavras, jamais falava uma frase, dava ou respondia
a um "bom dia" ou "boa noite", nem saía nada
sonoro de sua boca que não fosse Sobala. Praticamente, não
conhecia outra palavra se não esta. "Oi Sobala!", "Sobala!".
E fazia questão de pronunciar este misterioso vocábulo
em voz alta, a escandir bem as silabas, e prolongando o A da do meio.
"Bom dia, Sobala", "Só-baaaaaaaaaaa-la!"
O tom da sua voz era grave e soava como um arroto. Era funcionário
do Ministério da Saúde e sua função era
borrifar as residências com um "genticida", digo melhor,
inseticida chamado DDT. Por isto, todo funcionário que tivesse
esta missão era conhecido como mata-mosquito. O Sobala, portanto,
estivesse ou não matando um pernilongo era, para todos efeitos,
um mata-mosquito. Pois bem, naquele dia o Sobala ouviu um colega sindicalista afirmar categoricamente que no Brasil estaria acontecendo uma "Grande Mentira", e como o dia seguinte fosse Primeiro de Abril, ele entendeu que deveria ser uma data muito festiva e, conseqüentemente, feriado. Por isto faltou ao trabalho e resolveu tomar uma. Lá pelo meio dia saiu do último boteco da sua "via-sacra" e se dirigiu para a Praça José de Alencar, onde continuavam, como no dia anterior, as mesmas fortificações. Sobala nem hesitou. Ao passar rente a um ninho de metralhadoras guarnecido por meia dúzia de soldados armados até os dentes, se adiantou um pouco, voltou a cabeça e pronunciou bem alto e com todo o desdém possível de existir neste mundo: "SO-BAAAAAAAAAAAAAAAAAAA-LA!" A penúltima notícia que tive dele foi que teria sido banido para a Argélia em troca da libertação do embaixador de um país de primeiro mundo. Um amigo me contou depois que encontrou com ele em Argel, cambaleando pelas ruas como se estivesse a tomar uma. "Oi Sobala, tu ainda por aqui homem de Deus! Por que não voltas ao Brasil? Está te faltando alguma coisa?" "Só Maaaaaaaaaaaaaala!".
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