FELICIDADE
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Edimilson
Rodrigues da Silva
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Manelão tinha um galo índio que cantava exatamente às quatro e meia da manhã, todo o santo dia. Não falhava mesmo. Ele ficava trepado em cima da comunheira da casa a noite toda, quem via aquele galo lá durante a noite toda dizia que era de pedra, pois ele nem se mexia. O galo mal dava sinal de enfraquecer a voz e Manelão já tinha um substituto. Mantinha um time de galos de prontidão para substituir o titular da vez. Dizia ele que "coisa essencial em um sítio era um galo". Gostava de se gabar de ter no seu terreiro os melhores galos da redondeza. Só não gostava de gente que colocavam os bichinhos para brigar. Seus galos eram de serventia apenas para cantar. Pois pra seu Manelão horário é coisa séria e ele era extremamente rígido com seus compromissos. Às cinco horas ele já tinha preparado o café, tomado, colocado um pouco numa garrafa e já estava em pé bem em frente do grande pé de figueira, onde, todo dia ele realizava o mesmo ritual. Subia
no galho mais alto daquela imensa árvore e lá de cima
podia olhar toda a sua propriedade, que se estendia desde a barroca
do rio Cruzante até o pé do morro da Caçarola,
lá longe onde sua vista quase não alcançava. Rezava,
agradecia a deus por tudo o que Ele tinha lhe dado. Agradecia pela sua
família pelos seus bichos que sempre gozavam de boa saúde.
Após isso ele descia. Com muito cuidado, pois já não
era jovem como na época em que começou com aquele costume. "Bom
dia Janete!" Berrava Manelão entusiasmado. Era o nome da
vaca, que apesar da sua propriedade ser bem grande, era a única
que ele tinha. Não que ele não tivesse condições
de ter mais vacas, mas é que ele era bastante criterioso na aquisição
dos seus bichos. Ele pensava que se não fosse pra ter outras
iguais a Janete, ele não queria. - A Janete deveria ser uma raça,
fico imaginando minha propriedade cheinha de Janetes!!! Suspirava Manelão.
Tirava o leite, que era suficiente para o consumo de sua família.
Dava pro queijo, qualhada, bolo, doce de leite. Quando voltava pra casa
o dia já tinha amanhecido. Muitas vezes Manelão, ao atravessar
um pequeno bosque que ficava entre o curral e sua casa, parava e ficava
como que hipnotizado com todos os presentes que Deus lhe dera. Os pássaros
cantavam as mais belas melodias dentro do seu quintal. As árvores
tinham uma beleza singular. Ficava alguns segundos nesse estado de transe
para logo acordar, ainda tinha que tratar das galinhas e dos porcos. Já
se passara uma semana do meu casamento com aquele homem que eu mal conhecia.
Pra ser mais exata, eu acabara de conhecer e dele sabia somente seu
apelido. Manelão!!! Vê lá se isso é modo
de uma pessoa se chamar. Fui obrigada a me casar com ele. Gostava mesmo
era do Miguelito, mas ele não era ninguém. Não
tinha onde cair morto, coitado. Já o tal do Manelão tinha.
Quer dizer, também era um pobre diabo, mas segundo meu pai, ele
tinha uma bela propriedade, que se estendia desde a barroca do rio Cruzante
até o pé do morro da caçarola. Baseando-se nisso,
meu pai não pensou duas vezes em arranjar o casamento entre nós
dois. Foi uma tragédia, pra mim é claro. Pois o safado
do Manelão estava em êxtase. Parecia mesmo apaixonado.
Uma
semana de casamento, no entanto nós ainda não tínhamos
nos tocado. Eu era muito arredia e rebelde. Mas ele não se importava.
- Uma hora cê vai tê que cedê. Dizia ele calmamente.
Ele não sabia o quanto aquela paciência me irritava. Tinha
vontade de matá-lo bem aos pouquinhos e este sentimento se estendia
também ao meu pai, pois ele tinha sido culpado de tudo. Ah!!!
Miguelito podia ser com você, tudo seria diferente. Seu
Manelão entrou, arrastou uma cadeira, sentou-se num canto da
cozinha e ficou olhando pra sua marida passificamente. Ela estava num
estado de nervos que até ele, com toda sua paciência, estranhou.
Tremia-se toda. Gesticulava. Puxava os cabelos. Seu beiço tremia.
Manelão se levantou e olhou bem pra ela e disse; Vô tomá
um banho e dá um pulinho na cidade, quem sabe quando eu vortá
ô cê tá mais carma... Ela nem olhou pra ele continuou
naquela posição, com se estivesse presa em um mundo, que
naquele momento era inatingível por qualquer pessoa, principalmente
pro Manelão, o responsável pela destruição
dos seus sonhos. Vestiu
sua melhor roupa, calçou o par de sapatão. Foi até
a varanda para se despedir da marida e teve que correr, se não
ela lhe acertava um vaso de "frô" na cabeça.
Lá foi Manelão, rumo à cidade. Nada tirava daquele
homem o otimismo e a alegria. Enquanto caminhava prestava atenção
ao menor barulho. O vento balançando o capim na beira da estrada.
O canto dos passarinhos noturnos. Olhava as estrelas e a lua. Tudo era
belo, a noite era como se fosse, pra ele, a princesa do reino onde o
dia era o rei. Ele de vez em quando olhava pra trás pra ver se
a luz da varanda já tinha se apagado. Na última vez que
olhou ainda estava acesa e aquele ponto era o ultimo que dava pra ver
a varanda da sua casa. - Daqui a pouco ela cansa e vai deitá,
amanhã vai sê ôtro dia! Dizia ele, convicto de que
no outro dia tudo voltaria ao normal. E o normal pra ele sempre foi
agüentar a fúria dela passificamente e passivamente. Nunca
reagira. De maneira nenhuma, a não ser inventar alguma inesperada
visita à cidade, ou algum animal doente no sítio, como
desculpas para deixá-la sozinha com seus pensamentos. Caminhou durante uns quarenta minutos, no máximo, e conseguiu uma carona. Um caminhão boiadeiro que passava, parou e ele foi sentado em cima da carroceria, com os pés balançando sobre as cabeças dos animais. Até aquilo era motivo de felicidade pra ele. Olhava aqueles animais e sentia dó, mas ao mesmo tempo sabia que era preciso sacrificá-los. Chegou a cidade, o caminhão parou e ele desceu. Agradeceu ao motorista, propôs pagamento pela carona, que o motorista rejeitou sumariamente. - Deus lhe pague então amigo!!! Falou humildemente. Atravessou a rua, andou alguns metros e entrou num bar. Nunca tinha entrado ali, só queria comprar cigarros. Mas acabou ficando. Se enturmou com o pessoal. Jogou "esnuque", baralho e até dominó. Já estava tarde quando resolveu tomar a saideira pra ir embora. Sentou-se num banquinho perto do balcão e pediu a bebida. O botequeiro veio atendê-lo rapidamente. Rapaz!! Mas a crise tá braba pra caramba! Falou todo comunicativo o dono do botequim puxando conversa. Seu Manelão assentiu com a cabeça e não deixou ele levar a garrafa mais. Encheu o copo novamente e virou. Seria preciso bastante combustível para o longo caminho de volta. Era
um lugar esquisito. Alguma coisa como Bar do Bileque. Notei o nome porque
estava escrito em vermelho em letras garrafais na fachada do prédio.
Apesar disso era um legitimo botequim de fim de rua. Uma mesa de bilhar,
algumas mesas de jogo no fundo. Um balcão enorme, com um monte
daqueles banquinhos de pernas compridas encostados perto. O balcão.
Todos os banquinhos, ou quase todos, tinham dono. Figuras de todos os
tipos, ali encontrava-se os brasileiros. Depois desse rápido
reconhecimento do território, encontrei um daqueles banquinhos
desocupado e tratei logo de me sentar. Queria comer alguma coisa logo,
pois dali a pouco estaria partindo. Ao sentar, fui atendido rapidamente
por um simpático senhor. Era o tal do Bileque. Todos o chamavam
assim, logo.... O
senhor Bileque trouxe o meu pedido e continuou por perto onde estava
numa animada discussão com um sujeito que estava sentado ao meu
lado. Achei muito estranho a conversa deles. Falavam de felicidade.
Seo Bileque dizia que era feliz, apesar de faltar-lhe muitas coisas.
Já o sujeito do meu lado, que por sinal já estava bem
alto, fazia uma única reclamação, Deus havia lhe
dado tudo e até mais do que ele merecia materialmente, mas o
grande amor da sua vida não o amava. Continuaram a conversa algum
tempo ainda até que seo Bileque olhou pra mim, de supetão,
e perguntou: O que você acha? Quase engasguei, pois apesar de
involuntariamente estar prestando atenção em tudo, fiquei
sem reação. Era como se eles soubessem o que eu estava
pensando e que eu tinha também algumas reclamações
a fazer ou sugestões a dar. O
sujeito ao lado, pela primeira vez olhou pra mim. Percebi um homem angustiado.
Dentro de seus olhos havia uma felicidade realmente incompleta. Era
como se faltasse um pedaço daquele homem. Ele ficou alguns segundos
olhando pra mim, como se me estudasse, como se tentasse advinhar qual
seria a minha resposta para sua pergunta, como se eu fosse a solução
para aquele dilema em que vivia sua alma e a extrema contradição
da sua vida. O
que você faz da vida? Perguntou finalmente. Eu, de passagem por
aquele lugar, com certeza de que nunca mais iria ver tais pessoas, num
insight, respondi: -
Sou vendedor de idéias. -
Vendedor de idéias, como assim? -
Não vai adiantar tentar explicar agora, por que não tenho
muito tempo. -
Tudo bem, então me vende uma, nem que for uma bem pequena. -
Agora quem não entendeu foi eu senhor. O que o senhor quer exatamente? -
Eu preciso ser feliz completamente. -
Isso é fácil, muito fácil. Ele
olhou pra mim com cara de espanto e quis saber se eu era feliz. Repondi
que afirmativamente e ele fez uma cara que sabia que era de inveja e
ao mesmo tempo de orgulho. - Me ensina! Pediu, quase num sussurro. Disse
que ele já era feliz e que não precisava procurar em outro
lugar, pois a felicidade estava dentro dele há muito tempo. Ele
então perguntou se a mulher dele um dia poderia amá-lo.
Após saber toda história, experimentei uma opinião.
-
Você podia deixá-la ir. Ela não é sua felicidade.
Sua felicidade está em você mesmo. Nas coisas que você
da valor. Na beleza que você vê ao seu redor. E isso ninguém
vai tirar de você. Sua esposa, provavelmente também é
infeliz e muito provavelmente também não é culpa
sua. Parece-me que vocês buscam felicidades diferentes e nunca
encontrarão um no outro. Você já é feliz,
deixe-a ser também. Não faço a mínima idéia do porque daquela resposta. Se formou em minha cabeça e fui falando espontaneamente, como se fosse algo que realmente acreditasse e que fizesse parte do meu rol de conceitos, ou ainda, talvez eu estivesse repetindo algumas das muitas opiniões sobre a vida expressas nos muitos livros em que já lera. Enfim, o fato foi que aquele homem havia se impressionado com minha fala. Mas antes dele falar alguma coisa, levantei e sai apressado, havia chegado minha hora. Fui. Era
tudo que eu queria que ele fizesse. Não agüentava mais.
Todos aqueles anos convivendo com aquele homem e eu não havia
cedido um milímetro sequer. Eu era a mesma pessoa do dia em que
nos casamos. Frustrada. Magoada. Ressentida com a vida. Eu havia sido
enganada pelo destino. Mas agora finalmente tinha me decidido. Abandonaria
tudo, pois nada daquilo tinha valor pra mim. - Manelão!!, não
estou nenhum pouco preocupada com ele. Tenho certeza que, apesar de
tudo indicar o contrário, ele sempre esteve único e exclusivamente
olhando para o seu próprio umbigo. Ele tinha como evitar tantos
anos de sofrimento, tanto meu como o dele, mas ele preferiu arriscar
nossas vidas nessa tentativa de conquistar o amor à força.
Não conseguiu. Simplesmente. Agora ele vai ter o que merece e
o que mereceu durante todos estes anos. Não quero que ele fique
com nenhuma lembrança sequer minha. Desejo nunca ter existido
pra ele. Fui
até o quarto, arrumei algumas roupas numa trouxa e bem tranqüilamente
sai. Fiquei por alguns minutos olhando a noite. O céu, as estrelas,
a lua. Olhei cada detalhe daquele lugar onde tinha passado quase toda
a minha vida. Apesar do escuro, era como se estivesse dia, pois enxergava
nitidamente tudo. O curral e os animais que dormiam naquela hora da
noite. Janete ruminando bem tranqüila, encostada na cerca olhando
pra mim. O galo empoleirado em cima da casa que tanto me irritara e
agora não conseguia imaginar-me sem seu canto. Olhei mais uma
vez pra aquilo tudo e fiz o que tinha de fazer. De
longe o clarão daquelas chamas iluminava caminho. Não
olhei pra trás. Já não tinha mais nenhuma ligação
com aquele lugar e nada me fazia desviar do meu destino. Agora eu seria
a senhora da minha própria vida agora. Quando vi ele se aproximar, tive a certeza de que tinha feito a coisa certa. Me encontrava, naquele momento, com a felicidade que um dia me fora roubada. Tudo
era negro. Canudos de fumo negro subiam dos restos do que foram um dia
o sítio de Manelão. Ele olha perplexo. Já havia
amanhecido e ele ainda não conseguira esboçar nenhuma
reação. Não chorou. Sua casa destruída.
Todos os seus animais mortos. Seu galo e a vaca Janete, nem ao encontrar
seus restos mudou sua feição resignada. Não restou
definitivamente nada de tudo aquilo que um dia tinha sido seu mundo.
O mundo de seu pai e de seu avô. Não chorou. Nenhuma única
lágrima. Pensou na marida. Provavelmente tenha se matado. Não
sentiu remorso, ao contrário sentiu como se tivesse a libertado. Olhou
ao longe e viu o pé de figueira também queimado. Tudo
destruido. O pequeno bosque perto também havia sido queimado. Aproximou-se
do que restara da grandiosa árvore, subiu até onde deu
pra subir. Agradeceu. Tinha finalmente encontrado a felicidade. Era
finalmente livre pra satisfazer a si próprio. Sozinho, olhando sempre em frente, sem jamais olhar pra trás ele agora era feliz. |
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