PRIMEIRA VEZ
Bárbara Helena
 
 

Boca-negra era castanho, mas tinha o nariz escuro, daí o apelido. Apareceu nos meus seis anos como presente de fada, não lembro de onde veio, se instalou no coração.

Morávamos numa casa de dois andares, numa vila do Catete, com quintal ridículo todo cimentado como as boas casas suburbanas. Pois o danado adorava enfiar o focinho num buraco do final do cimento, perto da parede caiada.

Arminda, nossa empregada, descendente de índios e minha consultora para assuntos animais, dizia que ele estava telefonando para casa - ET phoned home. Eu acreditava porque me convinha, era uma imagem tão poética. Desde que não resolvesse visitar a família e me abandonar...

Durante algum tempo fui feliz com Boca-Negra e as brincadeiras que inventava para nós. Até que meus pais decidiram passar o verão no Leblon. O cão teve que ficar e nunca me passou pela cabeça que, durante minha ausência, iriam doá-lo para outra pessoa.

Quando voltei para casa no Catete, não estava mais lá. Ficou apenas o buraco no cimento e outro no coração.

A gente perdoa, mas não esquece. Como não esqueci os pintinhos que viraram galos e foram também enviados para uma vida melhor. Era sempre esta a desculpa - estariam mais felizes longe de mim, num paraíso fictício de espaço e verdor, que me esforçava por acreditar existir. Como hoje faço com as pessoas que amo e estão encantadas.

Como acreditei na ressurreição pascal de outro pintinho, esmagado sem querer por mamãe, como sempre procurei me enganar de que em algum lugar todos nós iremos nos encontrar, poeira de estrelas renascidas: meu pai querido, meus cães amados, meus amigos e amores especiais.

No espaço da minha esperança cabe o que decido colocar. E decidi que será assim, lindo, especial, improvável e por isto mesmo assustadoramente real.