O MONGE
Luiza Aparecida Mendo
 
 

Mamãe costumava dizer “cuidado, que o diabo atenta”, e seguíamos nossa juventude, acreditando que o diabo era um “coisa ruim” que rondava a gente, pelo lado de fora, pronto para dirigir nossos gestos. Quando a coisa ficava perigosa, rezávamos, uma reza rápida e sem nexo, de uma juventude que tem pressa de tudo, depois cada um seguia seu caminho, achando que o diabo tinha sido mandado para os “quintos”.

Murilo era o mais místico de todos nós e, naquele dia, não foi surpresa vê-lo chegar em casa, de cabeça raspada e malas prontas. Ia para um mosteiro. Nunca mais, diabos para atentar! Era jovem, era belo e estava disposto a ser um monge bom e honesto. Viveria longe das tentações, servindo a Humanidade ignorante e maléfica. Mamãe chorou um dia inteiro, mas ele estava decidido.

No dia que entrou no mosteiro, percebeu que era uma espécie de predestinado. Foi aclamado pelos mais velhos e lhe deram incenso e um posto, melhor que o de outros meninos, que ali já se encontravam. Passou a comandar as orações da manhã. Levantava-se cedo, embora seu relógio biológico apontasse em outra direção e seguia, como um feixe bem atado, para o salão de meditações. Tomava o primeiro degrau, reservado aos sacerdotes e abria seu coração em belas palavras. Os outros meninos bebiam aqueles conhecimentos. Ele era um iluminado!

No início, as palavras fluíam como as águas do rio e inundavam as mentes e os corações de todos, mas com o tempo, começaram a ficar repetitivas e o jovem sacerdote, durante as pregações, sentia um bicho devorando-lhe as entranhas. Queria ver, no rosto de cada um, aquele mesmo brilho dos primeiros dias. Queria sentir-se amado, como na primeira vez. Irritava-se, mas como um feixe, permanecia imóvel, enquanto forçava as palavras, para manter o semblante sempre seguro. Diziam que era o mais plácido de todos eles. Muitos o amavam em silêncio e só uns poucos percebiam, que havia um movimento estranho em sua garganta, como se quisesse jogar alguma coisa para fora.

À noite, sozinho em seu catre, rememorava a apresentação da manhã e sentia-se um pobre diabo, prestes a perder seu posto, para o primeiro que se mostrasse mais habilitado. Lembrava-se que aquele era apenas o primeiro degrau de toda a escadaria do templo. Lá no alto ficavam os grandes mestres. Os intocáveis. Sua garganta inchava e a voz ameaçava desaparecer. Pouco dormia.

Na angustia das noites, durante os poucos minutos de sono, via um enorme crocodilo levantar-se do meio dos meninos e avançar para as escadas, desejoso de suas carnes. Tremia de medo e subia os degraus, mas a fera seguia veloz, comendo o concreto, como se fosse manteiga. Quando no topo da escada, junto aos grandes mestres, Murilo via o crocodilo recolher-se entre as almofadas do salão, em meio aos monges. Acordava.

– Um deles quer o meu lugar. – pensava o jovem sacerdote e punha-se logo a melhorar o texto da próxima pregação, para não ser superado. Perguntava-se, outras vezes, se o sonho não estaria mostrando seu futuro. – Atingir o mais elevado grau, apesar das investidas inimigas. Essa é a minha meta! – dizia a si mesmo, enquanto tentava recuperar o sono perdido.

Os mestres, observando seu desespero, deram-lhe uma capa especial, só para acalmá-lo. Era como se dissessem “você é nosso filho amado”, mas o sonho voltava todas as noites e, com ele, o medo que espantava as palavras e sufocava a garganta. Sem poder avaliar o contentamento dos demais jovens, em vê-lo vestido naquela nova armadura de guerreiro, o pequeno sacerdote rolava na cama de medo.

– Querem o meu lugar. Cada um deles deseja essa capa e vai fazer de tudo para tomá-la de mim. – Quanto mais pensava nisso, mais o crocodilo crescia em tamanho e ousadia, chegando mesmo, em alguns sonhos, a rasgar sua bela capa com os dentes pontiagudos.

Do primeiro degrau, Murilo observava o semblante de cada um, tentando advinhar o crocodilo. Os jovens recebiam aquele olhar como um carinho especial de um sacerdote devotado, que se esforça para levar as belas palavras do sermão ao coração de cada um. Só uns poucos percebiam os músculos de sua garganta subindo e descendo, afundando e retornando, como se uma bola de tênis estivesse tentando sair pela boca.

Naquela triste manhã, depois de uma noite inteira sem dormir, o jovem sacerdote entrou no templo pesaroso. Sentia, em seu coração, que havia perdido a batalha. Durante toda a noite tentou rezar aquelas rezas breves, que fazíamos para espantar o diabo, mas o diabo, muito mais astuto, ficava a rondar sua cabeça.

– Hoje vou perder minha capa e meu posto. – lastimava-se Murilo internamente, enquanto esforçava-se para dizer algumas palavras improvisadas, à guisa de preparação para a meditação daquela juventude monástica. As palavras não saiam. Havia qualquer coisa atravessada entre os seus dentes.

Só uns poucos viam seu peito arfar, seus ombros tremerem e o suor escorrer por seu rosto pelado e pálido. O silêncio era constrangedor! De sua boca, em lugar das palavras, fluía uma baba esverdeada. Os jovens foram abandonando a meditação e amontoando-se no fundo da sala. Ninguém sabia o que fazer e, naquela manhã, não havia um mestre no topo da escadaria, pois o serviço estava entregue ao jovem sacerdote. Com um grito lancinante, Murilo deixou sair de sua boca aquele enorme crocodilo negro. Era como se ele estivesse virando do avesso, mostrando seu outro lado. A última coisa que todos viram, antes do bicho sair e ganhar o lago, ao lado do templo, foi a ponta da capa vermelha, desaparecendo entre os dentes daquela bocarra. O bicho comeu o doce sem desembrulhar e depois, sem qualquer sinal de educação, bateu em retirada, levando consigo metade da porta.

Na escrivaninha do monge, entre sermões inacabados, havia um pequeno diário, que falava do prazer de ter sido recebido como um predestinado, do desejo de tornar-se um mestre, cheio de honrarias e poder pisar o último degrau da escadaria do templo, para ser visto de baixo para cima, como uma estátua de Buda. A maior parte do diário falava do medo e dos sonhos e sempre terminava com a mesma frase: “para defender os meus direitos eu viro bicho!”, numa caligrafia trêmula e raivosa. Virou!