COMO CROCODILOS
Ken Scofield
 
 

Adauto lembrava fielmente de uma longínqua aula de biologia que falava dos crocodilos. Nela aprendeu que eles armazenam gordura na cauda e a origem da expressão “lágrimas de crocodilo”*. Lembrava disso logo após ver na televisão uma matéria em que mostravam dois deles próximos e com olhares nada amistosos, e assim adormeceu.

Via então uma selva fechada, não enxergava um ser - humano sequer, e começava a se desesperar. Notava que sua visão estava diferente, em uma altura estranha, extremamente baixa. Sua perna pesava para sair do chão, tendo certo peso que o incomodava na parte de trás. Notava enfim que era um crocodilo. Estava em uma imensa lagoa, na qual teria de sobreviver e conviver com outros semelhantes à sua nova forma. Via então um problema: havia alguém no seu caminho, teria que removê-lo, mas não parecia fácil. Via um crocodilo que parecia ser bem forte e pesado. Com a mente humana, que sabia que tinha, resolveu esperar a melhor oportunidade para o ataque. Ambos pareciam desejar algo na afastada margem esquerda da lagoa.

A lagoa em suas margens possuía uma consistência parecida com a de um mangue. Não demorou muito para a disputa entre os dois crocodilos começar. Eram ambos pesados e faziam por vezes o chão aparentar certo abalo. Eis que na luta entre os dois, a margem cedeu e quase tudo que estava acima veio abaixo. Metros e metros de material pesado despencaram sobre eles. Estavam os dois sem mobilidade e sufocados. A morte era questão de tempo.

Acordava finalmente Adauto, sem saudades de sua incorporação crocodiliana. Notava que estava só, os outros que moravam ali com ele, seus pais e sua irmã, haviam saído e só voltariam à noite. Estava ainda meio sonolento, mas preparava-se para sair. Sempre gostava de sentar-se na praça e simplesmente contemplar a movimentação do cotidiano. Algo lhe chamava a atenção: via dois sujeitos discutindo fortemente, aquilo ali não parecia que ia acabar bem. Perto deles uma linda jovem.

Não sabia ele bem porque, mas lembrava do sonho que havia tido, mas não conseguia ter certeza do que desejava quando crocodilo. Voltava à realidade e imaginava que aqueles dois estivessem ali brigando por aquela jovem. E cada vez mais, tudo indicava que eles chegariam as vias de fato. A jovem, de repente, parecia dar um breve sorriso, pelo menos era o que parecia para Adauto, e em seguida virou e entrou em uma casa, deixando-os ali. Os dois começavam então a se agredir de modo violento. Um imprensava o outro contra um suporte que parecia segurar uma grande estrutura metálica que por fim suspendia uma antena.

Eles então trocavam de posição entre agressor e agredido, enquanto toda aquela estrutura balançava fortemente. Lembrava então Adauto de uma sensação nada agradável, e com ela agora conseguia lembrar o que havia do outro lado da margem em seu sonho: uma linda floresta, com uma bonita luz brilhante que os atraía.

Agora tentava descobrir pelo que aqueles dois brigavam. Perguntou então a alguém que estava também ali por perto. Enfim, ficou sabendo que a linda jovem havia ganhado uma viagem com acompanhante e havia dito que os dois decidissem entre eles quem seria o seu companheiro de viagem. E, eis que para surpresa de quase todos que estavam ali, toda aquela estrutura desabava e caía sobre aqueles dois. Nesse momento apenas Adauto estava lá para ver tal cena. Adauto então ficou chocado e desesperado e não sabia o que fazer. Chegava uma ambulância e alguém então lhe perguntava: Como foi que eles morreram? Adauto então, um pouco fora de si respondia: como crocodilos, como crocodilos. Perto dali, uma linda jovem parecia produzir originais lágrimas de crocodilo.

* Lagrimas de Crocodilo – Expressão utilizada quando queremos nos referir a lágrimas nada verdadeiras ou forçadas. Tem sua origem no fato dos crocodilos não mastigarem com seus dentes, mas apenas cortarem os alimentos em pedaços e em seguida os engolirem, o que ocorrendo resulta no imprensar de suas glândulas lacrimares, produzindo finalmente as famosas “lágrimas de crocodilo”.