MALAS NO CORREDOR
José Luís Nóbrega
 
 

Seis e meia da manhã. Carro guardado na garagem com dificuldade. Mancha de batom na gola da camisa branca. Chave de casa na mão direita, mão esquerda tateando a porta para auxiliar o encaixe da chave no tambor da fechadura. Tentativa um, tentativa dois... O tambor parece voar pela porta envernizada. Dez minutos depois a porta se abre, atirando ao chão da sala aquele corpo completamente embriagado.

Acende a luz da sala com dificuldade. O interruptor baila no ar. A luz surge como um clarão no meio da escuridão tonteante. Só pensa em como chegar no quarto. A mulher deve estar o aguardando com impaciência. Aquele “churrasquinho” com os amigos não deveria ter se estendido até àquela hora. Dá uma olhada pela camisa, calça... Uma mancha de batom na gola - só isso que faltava! Ir pro banheiro, limpar aquilo? – Nem pensar. A mulher ouviria o barulho e se levantaria. Ir direto pro banheiro, tirar a camisa, enfiá-la entre as outras roupas sujas... A empregada nem verá a tal mancha ao colocar tudo na máquina de lavar. E se vir também, e daí? Certamente não contará à patroa.

Apaga a luz, e como um bom cego, vai para o corredor que dá acesso ao quarto. Lá, acende a luz. Epa! Começa a contar: uma, duas, três, quatro... Seriam três ou quatro malas no corredor? Elas pareciam um bando de crocodilos a espreitá-lo lá do chão. Com o dedo indicador da mão direita, cambaleante, recomeça a contagem: uma, duas, três, quatro. Quatro malas no corredor. Caramba, minha mulher vai embora amanhã cedo, pensa o embriagado homem, sem se dar conta de que o amanhã já estava raiando. Eram seis e meia da matina....

Apagou a luz do corredor, foi tateando as paredes até chegar no banheiro. Só escovou os dentes. Tomar banho? Claro que não, pois a mulher poderia se levantar, pegar todas aquelas malas que preparara para ir embora e ir antes mesmo do sol nascer (se é que ele já não tinha nascido). Antecipar a despedida da esposa, já cansada de toda aquela boemia, não seria boa idéia. Escovou os dentes, passou uma água no rosto, despiu-se e foi para o quarto, mais uma vez a tatear as paredes.

Deitou-se, cobrindo até as orelhas. Pensamentos a torturar a mente. Não, a mulher não poderia deixá-lo assim, mas, com certeza, ele merecia viver só até o último dia de sua vida. A visão das quatro (ou seriam só três) malas no corredor... A mulher, por certo, quando ele se levantasse, estaria bem longe daquele lar construído em mais de vinte anos de convivência. As malas no corredor... O sono, a contagem varrendo a mente: uma duas, três, quatro malas...

Acordou, boca seca, gosto ruim na boca. Passou a mão pelo lado da cama, a mulher não mais estava. A visão das quatro malas no corredor. Ou seriam só três? Não importava, ela pegara as três ou quatro malas e dera no pé. Ele merecia passar o resto da vida sem ninguém. Boêmio inveterado, só a solidão lhe restaria...

Saiu da cama, abriu a porta, lá estavam as quatro, isso mesmo, contou e recontou: eram quatro malas. Atravessou o corredor, abriu a porta que dava para a sala. Viu a esposa sentada ao lado da mãe. A sogra sorriu pra ele - Bom-dia! – disse ela. Sem responder, ele se dirigiu até ela, beijou-a como quem beija um troféu ganho às duras penas. As quatro malas eram de sua queridíssima sogra. Ainda de pijama, sentou-se no sofá. Beijou tanto a velha que ela se espantou com tanto carinho. Pensou em abrir uma cerveja pra comemorar o casamento quase desfeito, e que por um milagre, não se desfizera. Foi até o corredor e levou as cinco, isso mesmo, eram cinco e não quatro malas... para o quarto de hóspedes...