SORTE DE CROCODILO
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães
 
 
Não, eu não sou tão selvagem assim. talvez seja por causa da minha faca, uma Zakharov com uma correntinha no cabo ligada ao cinto como se fosse um daqueles canivetes suíços de mil-e-uma-utilidades, que eu trago sempre comigo para alguma eventualidade. Ou por causa do chapéu, herança única do meu velho que era um homem simples, da roça, um capiau, que o usava na lida para se proteger do sol que aqui, nesta cidade, raramente se me apresenta a não ser à pino, por volta do meio-dia. Ou ainda por causa da minha jaqueta desbotada e inseparável, do tempo em que servi o exercito lá em Cuiabá, cujas mangas arranquei num dia em que os termômetros foram lá nas alturas e o vento se recusou a soprar como se a poluição urbana tivesse debilitado seus frouxos pulmões.

Mas mesmo assim eles insistem em me chamar de crocodilo. Acho que essa gente da cidade passa mais tempo do que deve em frente à TV.

Não gosto do apelido. Nada contra o bicho, por quem, confesso, nutro até uma certa simpatia. Mas porque o associo com uma palavra que aqui usam como sinônimo de pilantragem: a palavra é crocodilagem. Coisas de cidade grande. Lá no interior, por exemplo, por eu gostar muito de pescar o pessoal me chamava de traíra, trairinha. Eu não ligava. Por que o nome do peixe não tem essa conotação distorcida de que a gente aqui da capital se utiliza para definir o mau-caráter, a pessoa falsa.

Mas aí o cara do lado me diz: "vou arrancar o teu couro, véio. Para fazer uma bolsa e dar de presente pra minha madame, tá ligado?" Isso na mesa de carteado.

O blefe é grátis, eu respondo. E mostro as cartas fechando o jogo. O couro pode ser, mas a sorte está comigo e ninguém tira.

De fato, pela manhã eu tinha feito uma fé no jacaré, bicho da mesma espécie, e arrebentado a banca. Então, aproveitando a maré, depenei sem pena um por um os patos que me ousaram me desafiar

Antes de cair fora, por volta da meia-noite, fui generoso com os parceiros e paguei as bebidas. Abusado ainda meti umas fichas na máquina caça-níqueis e garanti o do taxi.

Lá fora, dentro da noite quente, a fauna urbana se agitava frenética, inquieta. Um convite irrecusável para um crocodilo não assumido como eu ir à caça.