BOBAGENS
COMPORTAMENTAIS
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Doca
Ramos Mello
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Quando vejo certas coisas acontecerem neste mundo, penso logo em minha avó. Em meus avós. Porque vovô era um homem de seu tempo, moderníssimo e rico, de modo que mantinha uma amante no centro da cidade, na cara de todo mundo, e de tal sorte que minha avó também sabia de tudo. E ficava caladinha como lhe convinha à sábia filosofia, afinal tinha catorze filhos, nenhuma profissão e não poderia sobreviver sem o amparo do marido. E assim foi porque assim era. Entretanto, vovó se portava como a dama que era, dona do sobrenome e das honras, reconhecida e firme em seu posto. A outra ficava restrita ao título que a desfavorecia socialmente, recolhida à sua situação insólita, provavelmente também ela costurando uma forma de garantir o pão de cada dia, afinal sua condição não era diferente da de minha avó, nesse sentido. Pois bem. Meu avô morreu cedo. A outra, coitada, não viu o morto, não teve acesso ao funeral e dela também não se teve notícias durante o inventário. Nós todos sabíamos que tinha, inclusive, uma filha atribuída a meu avô, mas não havia registro legal nem reconhecimento oral que fosse, de modo que, morrendo meu avô, a teúda e manteúda como que morreu junto, e aquela pobre filha, se existiu deveras, nunca recebeu sobrenome paterno, que dirá ter direito à grana de meu avô. Ambas, mãe e filha, desapareceram de vez na poeira da vida, como se nunca houvessem existido e delas não se falou nada nunca mais. Como os ditames da vida são vulneráveis e transitórios os seus códigos, fico imaginando como seria essa relação, tivessem meus avós e a amante de vovô vivido nos dias atuais. Primeiro, a amante ganharia o singelo título de namorada, que namorada virou assim um sinônimo para quase tudo, inclusive quando dois homens se amam, um deles é a namorada do outro, a mesma coisa ocorrendo no caso de duas mulheres, é uma coisa assim muito 'up to date' (brasileiro adora inglês...). Muito romântico isso. O que diria Vinícius sobre a repaginada daquela que tanto louvou? Revendo... Portanto, a namorada por caridade, não me processem, só estou fazendo considerações! - de vovô, se vivesse esse triângulo amoroso nos dias atuais e levando-se em conta o dinheiro do velho, daria entrevistas em que poderia contar como foi que eles se conheceram, falar do grande amor que os unia, e blá, blá, blá, para o jornal da cidade, com fotos que deveriam incluir seus melhores ângulos tanto dorsais quanto vaginais e legendas picantes. E toda a família dela sairia pelas ruas de nossa pacata cidade usando uma camiseta com dizeres do tipo sou parente da namorada de fulano, me respeite, paz e amor. Ficaria muito lindo, ainda mais depois que ela, a outra, fosse convidada e naturalmente aceitasse com prazer fazer esse trabalho duro muito em moda hoje, ou seja, aparecer pelada na revista com a língua de fora sutilmente, talvez barbeando as partes íntimas, sob finíssima manchete do tipo nesse latifúndio qualquer fazendeiro se perde... A verdade é que hoje as pessoas sabem valorizar bem mais os acontecimentos, justamente porque sabem de seu caráter transitório, ninguém deixa de faturar nada, 'time is money' (inglês, de novo). Se um príncipe for fotografado bêbado como um peru em vésperas de natal, porém com a mão em cima do seu peito, venda a foto para os jornais, encha os bolsos, mulher! Quem sabe até, com um pouco mais de sorte, possa processar o jornal depois, enfim, as possibilidades de faturamento são muitas. Aproveite, porque não demora e passa a onda, sabe como é... Quanto à minha avó e a citada senhora, hoje elas teriam uma relação de amizade profunda, a ponto de a outra entregar a filha tida como de meu avô para vovó batizar, e nós todos participaríamos com efusivo prazer da festa pelo batizado. Muitas vezes, vovó e ela fariam escalas para programar as noites sob os lençóis do safado fazendeiro, dividindo entre si confidências de alcova, além de receitas para melhorar a performance sexual do velho, que sexo é um negócio muito sério, quase tecnológico, eu diria, e hoje temos aí livros, consultorias, terapeutas, exercícios, treinamentos, workshops (brasileiro ama workshop...), não é mais, pois, nem de longe uma simples e corriqueira trepadinha, nem pensar! Vovô, por sua vez, montaria um esquema para manter as duas casas sem que uma interferisse nos proventos da outra, de modo que ao comprar geladeira nova para vovó, levaria outra para a namorada, dividindo eqüitativamente o bolo. Elas o ajudariam a escolher a peça, tricotando com o vendedor sobre a melhor opção. E sairiam da loja os três, de braços dados, para um vinhozinho branco em algum local badalado da cidade, com direito a foto para a coluna social meu avô era VIP. Eu acho que as mulheres modernas aprenderam muito. Elas deixaram os lares, acabaram com a submissão e são livres, absolutamente livres. Inclusive para viver e montar famílias bizantinas em pleno terceiro milênio, à semelhança daquelas dos primórdios da colonização do Brasil, por exemplo, mas agora com entrevistas coletivas, assessores de imprensa, agentes, um aparato. Só que eu, burrinha, pensava que isso de Bizâncio fosse uma coisa ultrapassada, não me dei conta do detalhe da tradição... Entretanto, a inovação e abertura do termo namorada, mais a nova interpretação do vocábulo trabalho, aplicado agora aos que se deixam fotografar nus em pêlo, uma coisa muito sacrificante e que demanda altíssimas doses de amor ao próximo e desprendimento material, já são valiosas contribuições contemporâneas à sociedade tupiniquim, afinal, não se pode sobreviver apenas de tradição, é preciso evoluir, acompanhar esses tempos de urgência, tecnologia, celebridades, BBB... É isso ou cair no ditado caiçara: camarão que dorme a onda leva. |