O
olhar ficou perdido e triste.
Vagava pelo tempo, pelas lembranças, à procura do que dizer.
Minha
infância? Sim, eu me lembro.
Oh, meu Deus, isso já faz tantos anos!
A
risada encorpada e grossa ecoou pela saleta abafada.
Mamãe
era uma mulher muito bonita.
Dinalva.
Todos os homens gostavam dela.
Ficávamos, ela e eu, numa esquina no centro da cidade.
Logo aparecia um homem bom, que nos levava a passear.
Ele acariciava mamãe e sempre lhe dava dinheiro.
Um ou outro ficava zangado depois de um tempo e batia nela.
Nesses dias ela também batia em mim.
Coitada! A vida era dura.
De vez em quando ela me deixava ali na esquina e saía sozinha com
o homem.
Eu tinha medo, mas, ficava esperando, e horas depois ela voltava.
Trazia dinheiro, trazia um dente a menos, trazia os olhos vermelhos de
raiva, mas, sempre voltava.
E eu agarrava a sua mão e juntos voltávamos pra casa.
Aos seis anos, sim, acho que foi nessa idade, não pude mais acompanhar
mamãe.
Ela dizia que eu atrapalhava os negócios.
E eu ficava trancado em casa, contando os minutos pelas batidas do meu
coração.
Dormia, acordava, dormia novamente.
Comia o pão seco, esfregava um carrinho sem rodas no chão
de terra do barraco, muito devagarinho pra não levantar poeira.
Mamãe não suportava poeira.
Quando eu pressentia seus passos se aproximando da porta, fingia dormir.
Ela não gostava de conversar depois do trabalho.
Ela nunca gostava de conversar. Mas, cada um é cada um.
E quando ela dormia, exausta, largada e nua, eu ficava velando seu sono.
Pobre mamãe!
Aos oito anos já era tempo de fazer alguma coisa por ela e fui
para as ruas trabalhar.
Aprendi muito rápido.
Com os olhos apertadinhos, eu colocava as mãos em súplica
e em pouco tempo derramava lágrimas verdadeiras.
As pessoas entendiam a minha dor.
Passavam a mão em minha cabeça e me davam dinheiro, roupas,
alimentos e até brinquedos eu ganhei.
Passei a sustentar a casa.
Era arrimo de mamãe e ela ficava muito feliz.
Deixou de trabalhar. Precisava aproveitar a vida. Precisava mesmo.
Depois de tudo que ela fizera por mim, era mais que justo que agora eu
cuidasse dela.
Por mamãe eu era capaz de tudo.
E os dias eram bons. Ela e eu. Nós dois.
Aos quinze anos, consegui outro tipo de trabalho, afinal, eu já
era um homem e não ficava nada bem continuar mendigando.
Fiz meu primeiro programa e a dona ficou tão satisfeita que me
pagou no ato.
Dali pra frente os negócios foram de vento em popa.
Dinheiro passou a correr nas minhas mãos feito água encanada
em torneira de rico.
Tirei mamãe do barraco.
Não entendi quando ela deixou a casa toda branquinha com jardim
na frente e voltou pra favela.
Não entendi.
Mas, entender não era necessário.Bastava fazer. Fazer por
ela. E eu fazia.
Até que apareceu um tal de Genaro, cabra insolente, e mamãe
se tomou de amores por ele.
O vagabundo meteu-se de mala e cuia em nosso barraco e passou a fazer
cara de patrão.
Não tive outro jeito e dei cabo do infeliz.
Mamãe ficou muito zangada.
Coitada! Ela não compreendia que aquele homem era mau.
E nesse dia me deu uma surra de criar bicho.
Mesmo estropiado de pancada, fui obrigado a fugir pra não ser preso.
Chorei. Chorei tanto!
Não queria ficar longe dela.
E mesmo de longe, de muito longe, eu mandava dinheiro. Ah, mandava!
Ela precisava e merecia.
Se alguém nessa vida merecia ser feliz, esse alguém era
a minha mãe.
Deixei a poeira baixar e quando achei que era hora, voltei.
Meu coração não cabia no peito de saudade.
Sentia medo de não chegar, de não avistar o barraco, de
não olhar pra ela novamente.
Mas, lá estava Dinalva e estava tão feliz!
Pela primeira vez eu vi um sorriso naquela boca sem dentes.
Quando ela me viu, os lábios se fecharam e os olhos ficaram duros.
Coitada! Depois de tanto tempo sem me ver, o que eu podia esperar?
José apareceu na porta, coçando a barriga gorda e perguntando
quem era eu.
Mamãe disse qualquer coisa e o homem riu.
Eu não ouvi muito bem, mas, meu coração ouviu tudo
direitinho.
Eu era seu filho mui amado e finalmente estava de volta.
Escutei nitidamente quando mamãe pediu a José que fosse
embora, porque dali pra frente eu cuidaria de tudo.
Eu escutei, mas, José não escutou e ficou zangado e bateu
em mim.
Mamãe também ficou zangada. E naquele dia me deu uma surra
muito pior que da última vez.
Pobre mamãe. Mas, eu não me importava. Estava ali pra cuidar
dela.
E de um golpe só, bem na goela, despachei o tal José pras
terras do sem fim.
Mamãe nem tinha culpa por não compreender.
Nunca ganhara o mundo, nunca ganhara nada além dos muitos quartos
em que se deitara.
E outra fuga atingiu meus pés, que já estavam ficando um
pouco cansados de tanto cuidar.
Mas, fiquei na vida.
Precisava cuidar de mamãe.
As donas me procuravam pedindo amor.
E eu sabia dar amor. Ah, sabia! Aprendi com mamãe.
Dei amor às mulheres jovens, às mulheres de meia idade,
às mulheres velhas.
Algumas pediam pancada. E eu dava. Não podia negar. Afinal, o amor
é assim mesmo.
Dei amor aos homens que gostavam de meninos. E eram tantos.
Alguns até morreram de tanto amor.
E a vida ficou em mim, até que tudo perdeu o sentido e se acabou.
Mamãe morreu e nem pude ver seu corpo bonito estendido no caixão.
Mais
uma vez seu olhar vagou pelo tempo.
Estava distante e triste, mas, parecia resignado.
Gosto
daqui. Tenho sossego.
Não preciso fazer nada além de dormir, acordar e dormir de
novo.
O pão nunca está completamente seco, nem a água totalmente
quente.
As baratas e os ratos nem me incomodam muito.
Do jeito que chegam, vão.
A vida é assim mesmo.
Mas, o que me dá alegria é saber que mamãe está
bem.
Coitada.
Lá do céu ela cuida de mim. Depois de tudo que fiz por ela,
sei que cuida.
Eu já estava tão cansado! |