UM NATAL PERFEITO
Flavio Luengo Gimenez
 
 

Nunca esqueci aquele dia. Não poderia. Era final de ano, as festas tomavam conta dos ares, o espírito de Natal voava nas mentes de nossas famílias. A minha, coitada, estava em frangalhos. Nossos pais brigavam muito. Nós apenas esperávamos o desfecho. Ela se vestia de vermelho neste dia memorável; não esqueço seu perfume escandaloso. Eu nada podia fazer, nem minha irmã, que olhava aquela voluptuosidade absurda, mais fruto de raiva e ciúme dela do que propriamente vontade de se mostrar a uma família que ainda a acolhia nos braços. Eu podia sentir a dúvida e o remorso nos lábios de todos nós. Eu apenas me penteava e me preparava para uma longa noite dolorosa. Os natais nunca foram meu forte, mas este prometia.

O trajeto todo que nos levava à casa daqueles familiares do Interior foram marcados de medo. Sabíamos que qualquer palavra podia ser o estopim de nova discussão e mágoa, porisso calamos. Minha irmã mais velha estava linda, desabrochando em seus dezesseis anos. Os seios eram pontudos e ela me olhava como que se pedindo aprovação e eu olhava para meu irmão mais novo e os olhos dele estavam perdidos na escuridão do lá fora. Manchas de nevoeiro se misturavam às árvores carregadas de presságios. As luzes se definiam e eu saí da modorra do carro quando meu pai desviou de um buraco.

--Merda!

O grito, seco, era uma chibatada e eu tremi só de pensar em sua severidade, que aumentara muito nos últimos dias. Minha mãe, em seu vestido vermelho e com seu cabelo meio que armado de laquê, desta vez não o repreendeu, estava cada vez mais indiferente aos queixumes de seu companheiro mal-humorado. Difícil dizer como chegamos à festa. Foram duas horas de tensa expectativa e fora o “merda!” nada mais nos atingiu. O carro diminuiu de velocidade, já meu irmão me cutucava mostrando as luzes da fazenda em que morava parte da família em que minha mãe crescera e brotara para a vida. Ela era uma mulher simples, de simples palavras e simples ações, decidida em tudo, mas agora, seu mundo desmoronava. Sim, porque descobrira que meu pai tinha outra, mais bonita (isso dói em uma mulher jovem) e ele estava na iminência de nos deixar pela outra. Isso tudo nós sabíamos por que nossa irmã mais velha nos punha a par, tentando ser mais adulta e desastrosamente nos deixando à deriva enquanto saía para namorar e eu e meu irmão mais novo ficávamos imaginando a vida de casa sem meu pai.

A chegada foi gloriosa: Minha mãe chamava atenção com seu vestido vermelho, seu perfume ardido e meu pai visivelmente contrariado, estava como que a ponto de sair pelos cantos, mas foi raptado pelos mais velhos a uma das mesas e lá ficou a festa toda. Eles estavam lá para aconselhar, diziam. Meu primo chegou e disse o de sempre:

--Como é que vai o viadinho?

--Bem melhor que você, que é gordo.

Claro que minha tia vinha apartar, ela conhecia nossas regras, conhecia nossos comportamentos. Todos elogiavam minha irmã, de modo que nossa briga ficou em segundo, talvez décimo plano.

--Nossa, ela está linda!

--Como parece com a mãe!

--Lila, venha ver a futura miss!

Minha irmã tinha este dom. Eu desaparecia. Nunca esqueço este dia, porque eu quis sumir; ninguém nunca me olhava, ou quando olhava era para cochichar algo do tipo...

--Viu a irmã? Agora ele... Como parece com o pai!

--É bem mais baixinho...

Tocavam na velha ferida. O abandono, a sensação de não ser me tomavam e eu me refugiava em mim mesmo, imaginando-me longe dali, longe de todos aqueles odores, de todos aqueles presentes, longe de tudo o que me cercava e lendo livros e mais livros. Foi desta época que surgiu minha enorme vontade de ler e ser algo mais que uma desprezível criatura festeira.

A noite, porém, reservava surpresas e mais surpresas. Meu irmão, claro, sumia e se enredava nos colos das tias bajuladoras. Meu primo me vigiava com seus olhos de fogo. Minha mãe de vermelho estava visivelmente triste e bebia mais que de costume. Eu jamais a vira beber! Tentei demove-la:

--Mãe, pare com isso.

--Que é menino? Outro para me dizer o que fazer? Só faltava esta: Outro para me controlar... Como se valesse a pena!...

Sua gargalhada e seu olhar de desprezo que eram dirigidos a meu pai, mas a mim na falta dele perto me deixaram atônito. Nunca me esqueço deste dia, porque ela continuou a beber e se tornou inconveniente, andando tonta pelo enorme salão (impressionante como as pessoas nestas horas pouco fazem para ajudar...) e com o olhar de alguém que não mede conseqüências.

Meu pai estava a um canto, jogando cartas com os mais velhos e fumando um cigarro atrás do outro. Ele ficava assim nervoso e eu não sabia se me chegava nele ou se pedia colo à louca de minha mãe. Minha irmã conversava com um rapaz alto e loiro, sobrinho distante de minha tia que chegara da Itália há pouco.

Não esqueço deste dia. Como já fosse grandinho, nada de presentes a não ser as habituais meias de minha tia música que nos ensinava piano. Minha mãe desapareceu e a pegaram vomitando no banheiro. Nada mais perfeito! Não me lembro da volta para a casa em que passei o último natal com minha família ainda inteira. Não me lembro! Mas jurei nunca esquecer de mim mesmo.

Memória implacável a minha!