PAPEL EM BRANCO
Eduardo Prearo
 
 
Era uma vez um homem cujo nome era Philip da Silva. Ele se achava um inútil, pois chegara aos quarenta sem nenhuma qualificação. Possuia vícios outrora subnutridos; agora, eles estavam horrivelmente cristalizados. Em uma manhã xarope de segunda, acordou animado para uma entrevista de emprego. Vestiu traje completo, era vaidoso. Sabia que jamais chegaria aos pés do cidadão comum a começar pela indumentária. Ao chegar à sala do empregador, atrasado, reconheceu-o de cara: o tal homem, Armando, fora seu amigo de juventude, um amigo que compartilhara as mesmas idéias que ele.

- Não se lembra de mim? Sou o Philip.

- Não me lembro do senhor, não senhor. Está de chacota pra cima de mim? Olhe que chamo a polícia, hein.

Bom, a entrevista transcorreu tensa, mas normalmente. Como devo ter mudado, pensou. Armando não era um hipócrita; pelo que parecia não tinha síndrome de hipocrisia ou de pressa. Talvez fosse alguém com memória fraca, alguém que tomasse diazepam. Talvez nem com uma arma apontada na cabeça admitiria que o conhecera um dia. Estranho. As pessoas naquela cidade eram melindrosas, possuiam um ponto de intolerância difícil de alguém como ele, eternamente inexperiente, identificar. Saiu da entrevista com necessidade de surtar. Surtou bem no meio de uma avenida, foi atropelado e dias depois veio a falecer.

No velório dele compareceu somente Armando, que havia ouvido o acidente do escritório, e que quando soube quem era a vítima, desatou a rir um riso estridente de bruxo inventado. Então, esse homem, aproximou-se do caixão e começou a fazer um discurso, mas mais talvez para as poucas velas ali presentes e acesas do que para o corpo inanimado.

- Sua carne ainda está fresca, seu miserável. Eu te odeio. Salaud! Não o perdôo por ter me ofendido naquela manhã de 27 de setembro de 1978, às 14h32. Você me xingou de vagabundo. Agora está feito justiça. Você ainda achava que poderia ter um bom emprego neste país ou em qualquer outra parte do mundo. Mas não comigo vivo, meu caro, não comigo vivo.

Um servente entrou no recinto.

- Sr, Sr. O senhor é o senhor Armand?

- Sim. Não fume aqui, oh servente. Eu odeio cigarro.

- O caixão ficou aberto aí a noite inteira como o senhor mandou. E o defunto teve catalepsia, levantou-se do caixão, pediu-me lápis e papel, escreveu alguma coisa e depois acho que morreu definitivamente...Pus o texto no caixão. É para o senhor ler. Esse tal de Philip era meio boiola, não era?

- Um afeminado, sim? É bom que uma pessoa indigna e infeliz tenha morrido. Agora vá, deixe-me a sós com o falecido.

Armand abriu o bilhete. Não havia nada escrito. Era um papel em branco, vazio. Armand saiu satisfeito. Mas verificou de novo. Era um papel em branco, vazio.