DESCOBERTA
Maria Cláudia Gaiannes
 
 

Soraia morava em uma cidade muito pequena, no interior do interior do lugar mais quente do Brasil, o único ar condicionado que exista na cidade ficava em um banco, onde todos tinham conta e aproveitavam para se refrescar. Ninguém ainda lá havia conseguido comprar uma tv de plasma, mas João Tijuco tinha planos, ele era o cidadão esperto, que conhecia taxas de juros, carências e parcelamentos.

A casa de Soraia ficava longe da casa de João Tijuco, coisa que o pai dela achava muito bom, porque preferia Soraia longe desse tipo de gente, na verdade preferia que ela ficasse longe de todo tipo de gente, se pudesse a trancaria em casa todos os dias, mas com medo de que ela enlouquece e por não ser pessoa má, não fazia isso, não era capaz.

E evidentemente entre as idas à escola, as voltas, as reuniões na igreja, Gildemar Fernando a encontrou, acompanhou-a muitas vezes. Ele era feio, ela sabia, mas sempre trazia flores colhidas do jardim de sua casa, ele cultivava as flores e distribuía para as suas intenções. Soraia as aceitou um dia, percebeu que era o melhor que ele tinha, pois sua camisa estava sempre amassada e as flores em perfeitas condições, então ela continuou aceitando.

Ele às vezes propunha outras coisas e Soraia aceitava, mas não muitas delas, não muito distantes, não muito profundas, pois ela sabia que não sentia muita coisa por ele, a não ser as flores, era quase nada. E no inverno, quando as flores ficaram escassas, tudo foi ficando mais difícil e Soraia foi sentido algo que não conhecia, um desespero lento, sentiu o tempo passando e o seu coração vazio.

Como todos os que sofrem Soraia começou a perder o sono olhando para o céu, para a rua vazia ou para um ponto escuro que a natureza formava, passou a observar as outras pessoas procurando nelas traços da dor que poderiam estar sentindo, pequenos detalhes, um olhar momentâneo e desesperado, era suficiente para que ela se reconhecesse e sentisse ternura.

Nos bancos da praça ao redor da pequena igreja morava há muitos dias um mendigo, ao qual Soraia designou-se a observar. Um dia propositadamente passou bem ao seu lado, o mendigo esticou-lhe os olhos banhados por uma escuridão que fez Soraia estremecer. E o tremor durou uma noite inteira.

Tantos pensamentos confusos, tantos pensamentos conflitantes ocupavam a mente de Soraia, e o mendigo continuava na praça, roendo restos que encontrava, ele percebia os olhares dela e em sua embriaguês gargalhava largamente, abrindo sua boca banguela. Um dia-quase-noite ela passou por ali e ele sem ter nada mais nas mãos jogou sua garrafa de pinga quase vazia, comprada com o dinheiro de algum bom cristão, bem em suas costas dela, que se virou assustada e com um pouco de dor, apanhou a garrafa do chão e correu pela primeira ruela que encontrou.

Chegou em casa com a garrafa escondida debaixo da saia, entre as pernas, meteu-se no quarto e se pôs a olhar aquele objeto, percebeu que ainda havia algumas gotas em seu interior e, depois de temer um pouco, entornou o líquido transparente em sua boa, que quase imediatamente adormeceu, em seguida uma fagulha de fogo desceu por sua garganta e, depois da cara feia, Soraia sorriu.

Três dias mais tarde ela desapareceu.