TÃO
BRASIL
|
William
Stutz
|
Saiu de casa cedo, ainda noite. Do alto do morro viam-se as luzes da cidade ainda sonolenta, as filas de faróis de carros já começavam a se formar. Sabia que o trecho era longo e que muito tinha que pedalar até o trabalho. A marmita enroladinha em pano bordado limpinho estava bem amarrada na garupa de sua bicicleta, capricho. Nem acordara e já sonhava com a hora do almoço, comidinha feita por sua filha mais velha, 10 anos. A mulher o largara há tempos, fugiu como um pinta brava do jogo do bicho. Fugiu não, saiu e ainda deixou recado: Fui! As crianças ficam contigo, o problema é seu. Foi bom fazer não foi? Agora cuida, mané! Resignou, amava as crianças, sentiu na verdade foi alívio, agora podia ser feliz. Podia agora nos domingos tomar sossegado e em casa uma cervejinha, podia assistir televisão até a hora que desse sono sem ter que ouvir resmungos ou ataques de raiva, ninguém mais chutava o cachorro ou espancava as filhas, sim, com toda certeza era feliz com sua vida. Começou a descer o morro. O café frio e o pão adormecido ainda não tinham chegado a seu estômago, tal a pressa que saiu de casa. Sentiu o gosto amargo na garganta como que querendo sair. De solavanco em solavanco ganhou o asfalto. Pedalava menos pois ligeira descida, imperceptível, o empurrava suavemente para frente. O ar frio tinha agora cheiro de sal. Ganhou a orla. Na avenida da praia prudentemente tomou a ciclovia, mas bem no cantinho, era tímido, não se sentia tão igual, não queria incomodar aos que faziam suas corridas, caminhadas ou passeios de bicicleta matinais, para manter a forma, a estética. Homens atléticos, moças torneadas, por ele passavam de nariz empinado. Ele era invisível, e nessa condição se sentia seguro. Fazia de tudo para não ser notado, mas o ranger de ferro com ferro de sua bicicleta o denunciava, e ele, olhos pregados no chão como a pedir licença pelo espaço que estava a ocupar seguia adiante quase suplicante. Já ia longe, quando do nada surge um imenso vulto branco que com ele se choca violentamente. Acertou-o de lado. O monstro albino vinha olhando para trás não o viu, afinal, lembra? Era invisível. A roda dianteira da bicicleta topou com o pequeno degrau da ciclovia, e em movimento que durou horas, não dias, em câmara lenta é lançada a metros de distância espatifando-se no asfalto sujo. A marmita é atirada ainda mais longe deixando rastro de arroz e feijão, um pequeno ovo cozido rola até se esconder no canto da calçada fazendo companhia a pontas de cigarro e palitos de picolé. Ele atordoado sente a cabeça e os joelhos a doerem. Um fio grosso de sangue luta para sair por entre seus cabelos, buscando seu rosto lívido, o pequeno riacho vermelho escorre até seu queixo e cai em cachoeira rubra por sua camiseta rasgada. Ganhou a camiseta de um político na eleição passada, uma para si e mais duas para os filhos. Deu foi briga. Os filhos eram quatro. Imprestável foi o que ouviu da sua mulher que bom que lhe deixara, ainda chegou a pensar. Sentiu o calor do sangue no ombro. Sentiu medo. Levantou cambaleante e olhou para os lados. Novamente sente um safanão. É agarrado por dois guarda-roupas em forma de gente, seguranças de hotel de luxo. Estendido no chão quase a sufocar com um joelho a lhe apertar a garganta, começou a sentir a manhã escurecer e os olhos lacrimejantes em louca luta a se fecharem. A última coisa que, vagamente se lembra foi de uma voz horrível, bem próxima de sua cabeça a gritar palavras sem o menor sentido para ele, seria o cão? Seria o seu acerto, o seu juízo final? Dont worry mister, everything is under control, this one wont disturb our guests again. Call the cops! Seu último lampejo de lucidez foi para os filhos, em particular para a caçulinha que ficou como um frágil anjo dormindo em roto berço. |