AS
VIZINHAS DO 31
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Ricardo
Lahud
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Tudo
começou com a inesperada e misteriosa mudança da loira
e da morena para o edifício onde moro, em plena primavera. Apartamentos espaçosos, um por andar, quatro suítes, três vagas na garagem, piscina e quadra poliesportiva, atraem famílias de alto poder aquisitivo, a maioria com filhos, algumas com sogra ou tia solteirona. Eu e meus vizinhos jamais esperamos que duas jovens, exuberantes e exibidas, ocupassem uma das unidades. Os homens fantasiavam com um alojamento de modelos e que logo haveria mais de uma dúzia de meninas com o mesmo perfil enfeitando o prédio. As mulheres garantiam que eram garotas de programa iniciando um bordel. Elas se instalaram no apartamento do velho Magalhães, outro enigma. Desde a morte do graveolente português os genros se digladiam em três continentes pela herança. O preço do apartamento foi fixado em dólar e desde a última derrocada da moeda nacional não havia sequer visitas de interessados. E a mobília que nunca chegava? Segundo Juvenal, o zelador, elas chegaram numa caminhonete importada, carregando apenas as malas e um aparelho pequeno de televisão. O motorista voltou, horas depois, com colchonetes, toalhas e roupas de cama. Tudo novo. Sempre na piscina, as novas vizinhas desfilam trajes sortidos. Meus preferidos são a tanga ouro na morena e um biquíni verde, um pouco maior, para a loira. E porque, apesar dos celulares, pequenos, modernos, caros, que só deixam seus lóbulos para recuperarem a carga das baterias, eram assíduas usuárias do telefone público instalado em frente à portaria? Foram recebidas com fria hostilidade, mas mesmo que nenhum morador, ou moradora, tenha tido coragem de se apresentar e oferecer as boas vindas ao condomínio, elas sempre nos cumprimentam com mudos e largos sorrisos. Eu moro no sétimo andar, elas no terceiro, mas me esforço ao máximo para cruzar-lhes o caminho. Sem nada melhor por fazer, perco tempo na portaria esperando que uma delas volte da rua ou passeio por horas no elevador, para cima e para baixo, nos horários em que costumam deixar o apartamento. Só para ver aquelas bocas se iluminarem por mim. Sem cortinas nas janelas, amigos e eu descobrimos um ponto na rua de onde podemos espiar seus trocares de roupa. Pelo ângulo e pela distância, imaginamos muito mais do que realmente distinguimos, mas, cúmplices, testemunharíamos ter visto tudo. Minha família foi passar o feriadão na serra. Não pude ir. A empregada ganhou folga. Fiquei com o apartamento só para mim. Acordar às onze horas de uma quinta-feira ensolarada é ótimo, melhor ainda é verificar que, na borda da piscina, a loira se bronzeia com meu biquíni favorito. Antes de descer, calção, toalha, camiseta larga, sandália franciscana e o novo James Patterson, uma olhadela pela janela da sala flagra as pernas da morena no orelhão. Largo a toalha, o livro e recolho algum trocado para a padaria. Tentaria calcular um encontro na volta. Na ida sorrio um bom dia que ela não devolve, tristonha. Pela primeira vez em semanas me aborda, eu não teria um cartão telefônico para emprestar? Acabaram-se os créditos do dela. O sotaque é gaúcho, os olhos claros como uma piscina bem limpa. Infelizmente não, mas ela pode usar o telefone da minha casa. Descubro que Marisa usa o celular pré-pago exclusivamente para receber chamadas. É evidente a malícia no semblante do porteiro Aírton ao segurar a porta do elevador enquanto entramos conversando. Na sala, me ajeito numa poltrona com visão privilegiada. Revistas servem à dissimulação. De costas para mim, alterando sussurros e comentários desavergonhados, ela brinca com o fio do antiquado aparelho. Usa uma curta saia pérola e uma regata listada, azul e branca, muito justa. As auréolas estão evidentes, os bicos rígidos machucam o algodão. No umbigo descoberto brilha uma argola de aço. Desligando, a morena vem até mim, em câmara lenta. Visualizo com precisão o movimento pendular dos quadris. A camiseta sobe, centímetro a centímetro, até ultrapassar por completo os cabelos negros e revelar com detalhes a marca do biquini. Vampira, mordisca minha jugular enquanto as afiadas unhas pintadas de negro riscam meu peito e pernas. Obedecendo à minha vontade, ajoelha, gulosa, e abocanha o obelisco. Beija e lambe minha espada e minhas bolas, às vezes mais forte, às vezes é só carinho. A brincadeira só cessa quando sinto o embaraçoso esguicho. Descubro, desacochado, que meus dedos haviam pecado. Abro os olhos, sufocado. Marisa continua ao telefone, de costas, admirando detalhes de uma imagem da Virgem. Abalado, me apresso ao banheiro usando Caras como camuflagem para a indecorosa nódoa. Higiene rápida, troco calção e camiseta. Volto à poltrona aliviado pela certeza de que a morena nada percebeu. Continua ao telefone, agora sentada no chão, recostada na parede, pernas esticadas, cruzada uma sobre a outra, dificultado a visão da calcinha branca. Mais ouve e concorda sorridente do que fala. Lança um olhar de agradecimento. O polegar apontando para cima pode ser de aprovação pela nova roupa ou pelo conforto do uso da linha. Volta a fitar o piso, a sussurrar. Por mais quarenta minutos. Desculpa-se pelo tempo da ligação, pergunta se estou sozinho em casa. Confirmo. Em vez de me arrastar para a cama e se aproveitar da minha generosidade indaga se gosto de estrogonofe, Alessandra é uma cozinheira maravilhosa. Despede-se com um beijo cheio na minha bochecha, a mão sentindo toda o calor da minha orelha. Ainda envergonhado escolho não descer. Alivio-me no banheiro. Pelado, na cama, permito às minhas nádegas o raro prazer do assoalhar. Volto a dormir. Chego a separar sapato, calça e camisa social para o jantar, mas uma palavra da anfitriã me faz preferir bermuda, camiseta de gola pólo e mocassim sem meia. A morena abre a porta mordendo uma escova de dente. Cheguei tarde? Não, babando um pouco de pasta, ela é viciada em escovar os dentes. Desfila um cavado short celeste e uma camiseta laranja aguarentada dois dedo abaixo das taças. Nenhuma marca de roupa de baixo. Chinelo de dedo. O apartamento está despido, nada de sofá, cadeiras, ou geladeira. Conheço Alessandra na cozinha, provando de uma colher de pau. Calcinha e soutien de algodão rosa é tudo que usa. Cavalheiro, carrego duas garrafas do melhor vinho que encontrei em casa e evito encarar sua nudez junto ao fogo. Um fogaréu de uma boca do tipo que se usa para acampar. Ela vem até mim e me cumprimenta com um beijo que, em parte, encontra minha boca. Que gentil, mas nossos copos são descartáveis. Não tem problema. Trouxe um saca-rolhas, abro a primeira garrafa. Esguia, cabelos finos presos num coque, uma borboleta colorida escapando da calcinha, Alessandra é mais alta do que eu e pela primeira vez noto seus olhos muito verdes. No sol, esconde-os sob um par de óculos escuros de tamanho exagerado, estrela de cinema. Derrama, direto da panela, a cheirosa receita em três pratos fundos. Rega-os com batata palha de uma embalagem de alumínio. É a primeira vez que provo estrogonofe de filé sem arroz. A fome torna a comida ainda mais saborosa. Exceto por uma maçã vespertina, é minha primeira refeição de hoje. Pela avidez com que usam o garfo, desconfio que a delas também. Ajeitamo-nos em almofadas. Apoiada num caixote de plástico a tevê de quatorze polegadas nos absorve com o Jornal Nacional. É a única fonte de luz na sala. Na abertura da novela, a segunda garrafa é desarrolhada na intimidade de Marisa. Corpo definido, consigo observar o trabalho de cada músculo envolvido na operação. Os celulares saciados começam a gritar. Campainhas inteligentes, toques diversos. Alguns tons elas escolhem não atender. Assisto às imagens sem som, tentando prestar atenção nas conversas animadas. O tapete de dois por três metros limita o espaço no enorme cômodo desguarnecido, transformando-se num ninho aconchegante. Encolho-me entre as duas, cabeça apoiada no colo da loira de quem ganho eventuais cafunés. Quase posso sentir, na minha nuca, o calor e o cheiro do seu sexo. Num curto intervalo entre conversas telefônicas Marisa se junta a nós, me abraçando por trás. Uma corrente de ar álgida invade nosso ninho e estimula os corpos a ficarem próximos. O telefone chama e a morena se afasta. A novela segue mesmo sem ninguém prestar atenção. Uma, depois outra, passam algum tempo lá dentro. Voltam refrescadas, felizes, falantes. A aparição dos créditos finais faz com que ambas rumem apressadas até a suíte principal. Precisamos nos arrumar, vamos sair, vamos dançar. Sigo como observador. Elas não se importam em se despir e se vestir na minha frente, até me usam como uma espécie de espelho, há apenas um no interno da porta do armário, insuficiente para duas divas. Marisa não usa nada mesmo sob a camiseta ou o short. Antes de vestir algo, calça uma altíssima sandália negra. Depois de muito escolher deixa escorregar pelo corpo um tecido fluo que, conforme desce, define-lhe a silhueta. O vestido é curto, cheio de argolas de plástico e correntinhas penduradas, fechado como um hábito na frente, com um abissal decote nas costas. Segue desprovida de roupas de baixo. A loira escolhe uma impudica saia creme e uma diáfana camisa estampada em floral. Um elaborado laço prende a delgada peça acima do umbigo. Colo e barriga são expostos em todo esplendor. A singela lingerie rosa é substituída por um escandaloso rendado vermelho cuja modelagem transforma os modestos seios em suculentas frutas. O cabelo solto ultrapassa os ombros por mais de palmo. Já na fase do perfume no pescoço, imediatamente antes da maquiagem e brilhos, a morena repara minha enlevação e chama a amiga para posar ao seu lado. Estamos lindas? Sim. Qual de nós duas você namoraria? Quem beijar melhor o vinho diz coisas ousadas, criativas, brilhantes. É Alessandra quem firma meu rosto com ambas as mãos e enfia a língua na minha boca. Marisa é mais gentil, mais breve, mais safada, enquanto toca meus lábios se certifica da firmeza dos meus sentimentos. Eu poderia ter apalpado seios, acariciado coxas, alisados costas, agarrado uma ou outra. Elas permitiriam. Elas provocavam. Ao invés, fiquei cediço, os finos braços estatelados, desabados junto ao corpo passivo. Neste átimo de inércia terei sido julgado e condenado como um frouxo? Antes de gaguejar alguma defesa os celulares voltam a berrar, os namorados estão na portaria. Que esperem, só desceremos quando estivermos perfeitas. A busca pela perfeição leva vinte minutos. A loira troca a minissaia por uma calça branca com um gracioso bordado prateado na boca larga. A translúcida camisa é espremida para dentro da calça, os primeiros botões presos às respectivas casas. A paisagem continua generosa. Batons alaranjados. Brincos, pulseiras e anéis enormes. Perfume adocicado e excessivo. No carro do elevador, descendo, estou descalço, abandonei meus sapatos na sala das meninas. Ofereço a facilidade do telefone também à Alessandra e elas prometem me chamar quando forem à piscina. Convido para uma pizza na noite seguinte, no meu apartamento, onde há mesa, cadeiras, um aparelho de tevê de quarenta e duas polegadas e camas de verdade. Se vão apressadas, tchau, tchau, sem olhar para trás. Primeira ação ao voltar para casa: colocar duas garrafas de champanha para gelar, melhor três. Passo a noite em claro, ouvido atento aos ruídos de automóveis, à máquina do ascensor. Ao meio-dia e meia a loira está de volta. Uma BMW preta a traz para casa. Vinte e cinco minutos depois chega Dona Simone, minha professora particular de matemática. Foi para estudar que não viajei, a prova na segunda-feira será minha última chance de escapar da recuperação das férias. Necessito de um enorme oito. A dedicada senhora vai-se às cinco da tarde, decepcionada com meu rendimento. A morena já chegou e as duas tornaram a sair, informa Waldemar, o porteiro da tarde. Acomodado no sofá apago em frente à tevê. Desperto às duas da madrugada, há vários recados da minha mãe na secretária eletrônica. As meninas não estão no apartamento. Há muita comida congelada no freezer. Direto para o forno de microondas, como na própria embalagem. Mesmo economizando pratos a pia já está um nojo de copos, talheres sujos. Desvelo por outra noite. Ofélia, vizinha e amiga da família, me surpreende pela manhã, dormindo no chão da sala. Acordo assustado. Pode dizer à mamãe que está tudo bem, desliguei a campainha do telefone para não perturbar os estudos e não consigo encontrar o número do chalé. O livro de exercícios aberto sobre minha barriga, notado pela intrusa, me garantiria pontos com meus pais. Ela deixa o número preso a um imã na geladeira e me desfila as recomendações de praxe. Aírton confirma que, muito cedo, duas amigas vieram buscar as meninas num Fiat prata sobre cuja capota estavam presas pranchas de surfe. Foram passar o dia fora, aposta. Ligo para meu pai para tomar a bronca de não ter ligado antes e passo horas tentando resolver os primeiros exercícios. Não consigo me concentrar, as lembranças são muito recentes, as sensações muito novas. Repasso todos e cada detalhe, confesso que posso ter inventado um ou dois, e volto ao banho para me satisfazer. Desafio o tabu da cegueira. Homenageio-as, uma, outra, ambas, muitas vezes, até cair exausto. Basta uma reparadora soneca para recomeçar. Nenhum sinal de cabelo nas palmas. Usufruo assim meus últimos dias de liberdade. Solitário, condenado a esperar. Os problemas quedam sem solução sobre a mesa de jantar. Apenas no domingo, acampado na portaria, revejo minhas vizinhas. Mas elas estão dentro da caminhonete, partindo. Malas, tevê, tapete e almofadas na caçamba. Marisa joga um beijo, Alessandra acena. O veículo se põe em marcha. Tenho vontade de chorar. Meus parentes, mal-humorados pelo tráfego intenso da estrada, cruzam com a mudança na rampa da saída. Minha mãe adivinha a partida, com satisfação. Sou convocado a ajudar com a bagagem. Nunca mais vi meu mocassim cáqui. Papai comentou que as moças ocuparam o apartamento acobertadas por gente da imobiliária. Sem pagar aluguel, condomínio, nem mesmo luz. Que moleza! Tirei três na prova e minha professora, prima de Dona Simone, teve que aumentar em um ponto minha nota para que eu pudesse ficar para recuperação. No final de janeiro tirei dez no teste, mas não vou fazer engenharia, como é a vontade de papai. Vou ser fotógrafo ou qualquer outra profissão que trabalhe com mulheres. Meus amigos nunca acreditaram na estória. Fui até a imobiliária, não tive coragem de entrar. Eu gostava daqueles sapatos. Pelo menos a ligação que a morena fez da minha casa não foi interurbana. Parentes do Magalhães se mudaram para o 31. Uma família normal, diz minha mãe, com duas gêmeas da minha idade pesando uns duzentos quilos cada uma. Será que o colegial é tão mais difícil como minha irmã diz? |