UMA HISTÓRIA DE MIL NOITES BRASILEIRAS
Flavio Luengo Gimenez
 
 
Na calada da noite, no beco escuro, ela sabia que sua hora chegaria rápido, se ela não contasse logo sua história para o seu raptor. Ele a apanhara na saída da avenida Salim Farah Maluf, escondido que estava entre os arbustos como sempre fizera, esperando o próximo trouxa que passasse ali na lentidão da hora do rush, para pegar dinheiro, mas a moça de roupa dourada o impressionara pela beleza; Com um soco arrebentara o vidro, puxara a porta e entrara, sentando-se ao seu lado.

--Quieta que nada te acontece. Vamos ao caixa.

Ela obedecera e ele olhara para suas coxas, vistosas na fantasia de fada que ela iria interpretar na festa de seu sobrinho.

--Calma...

--Calma nada, vadia. Quero mesmo é zoar com você, sabia?

Seu sangue subia gelado às têmporas, ele a olhava do alto de seu magro rosto, consumido pela pobreza e pela injustiça, mas ela divisava em seus olhos a frieza e calculismo que a fizeram tremer de medo e foi a hora em que ele mais se sentiu perfeito, pois ela sentia a proximidade da morte e ele era a própria indesejada, com poder divino no pequeno carro que era dela.

--Alí, ó. Pega teu cartão e põe a senha logo, senão te queimo, gostosa.

--Está bem...

Fora, no frio, ela percebera que ele a olhava toda, sem piedade e já podia ver seu destino traçado, enquanto passavam pessoas esfumaçadas em torno que mal divisava, pois não podia errar nem um número, com o metal gelado que sentia entre as vértebras...Ela tirou o máximo que pôde, ele viu que não tinha mais nada, mas ela era gostosa.

--Agora vamos zoar. Entre no carro, doçura.

Ela agora via o beco escuro, a luz seca no alto do poste, o seu raptor olhando para os lados e foi então, sem mais nenhuma chance, sem ter o que fazer que ela começou:

--Zalengo era pequeno, ele nascera perto de um rio, sempre fora pequeno porque sua avó o abandonara cedo, seus pais o tinham deixado de lado assim que nascera, mas a boa velhinha o acolhera em seus braços e tratara dele até que um dia ele acordou e viu sua avó deitada de lado no beliche e percebeu que ficara sozinho no mundo. Tinha sete anos, Zalengo resolveu não contar nada a ninguém e saiu sorrateiro de casa com uma pequena trouxinha, tinha de tudo que a avó lhe dava, ele tinha o que podia ser a sua última refeição, mas tinha o mundo pela frente, enorme e vasto. Cruzou com uma viatura cheia de policiais que olharam aquela minúscula figurinha de trouxa nas costas e viraram o carro e ele correu, ligaram a sirene mas Zalengo conhecia as redondezas do mato em que morava, sempre brincara por ali, fez o que sabia e se escondeu dentro da manilha seca que a prefeitura teimava em não instalar há anos, há tantos anos que crescera ouvindo da avó que ainda teria água encanada no bairro, ele podia ouvir os passos cercarem o mato mas a manilha era oculta, escura, ele cabia dentro fácil fácil, tinha que dividir o espaço com ratos, mas eles sempre foram seus amigos.

Enquanto contava, o seu raptor fixou o olhar em seu rosto, surpreso...

--Continua!

--...Zalengo então abriu a trouxa e comeu o sanduíche que sua avó preparara antes de dormir para sempre e se lembrou dos cafunés que ela lhe fazia enquanto rezavam pela boa sorte de seus pais que nunca vira, enquanto rezavam pela manhã que custava a aparecer, sempre com o sobressalto da escuridão e os tiros que às vezes ouviam, mas a boa velhinha era conhecida no bairro, ele desconfiava que nem sua avó ela era, mas era tão boa que isso não importava, ela lhe dizia que ano que vem ele iria à escola, já estava ficando atrasado e ele se imaginava com os cadernos cheios de letras e números e a professora a lhe encher de lições e broncas e ele tinha medo porque iria ficar sozinho no mundo agora, sem escola e sem destino, mas agora ele saboreava o sanduíche enquanto os passos ficavam distantes e surdos até que veio o primeiro raio...

--E então?...

--...Veio o segundo raio e caiu a chuva e Zalengo sabia que a água subia depressa ali e a manilha estava no leito de um rio seco que enchia depressa, saiu de dentro e a água já começara a chegar, saiu a tempo de ver o jorro carregar o rato companheiro e quase ele junto, mas se safou e foi direto ao beco escuro onde estouravam os raios e ele estava com medo;tropeçou e machucou o pé esquerdo, mas mesmo assim, mancando, correu para uma casa de portão aberto onde tinha uma janela com luzes acesas, viu de fora as pessoas de pé de mãos juntas e resolveu ficar num canto. Zalengo não demorou a ser achado e foi então alimentado por bondosas mãos que o puseram em lugar quente, onde tossia muito e ardia em febre. Em seu delírio ele via a avó lhe fazendo carinho e ele lutava para não dormir, mas alguém lhe dizia calma, tudo isto passa, você fica bem logo, ele sabia da verdade, sabia que haveria outras vezes assim, sabia que viriam outros, mesmo assim dormiu.

--...Verdade?Conta mais, dona.

Ela contava e contava e seu raptor agora largara sua arma que reluzia no banco do carro. Ela percebeu a chance fugidia que se lhe era oferecida e contava... Ele conferia o dinheiro da féria do dia.

--...Acordou numa cama cercada de lindos tapetes e com lençóis que nunca vira! Olhos que nunca percebera o fizeram ver que jamais estaria só de novo...Zalengo então percebeu que tinha um fim, mas era um começo, perguntou pela sua trouxa e lhe trouxeram, mas aqui agora é seu lugar, fique, e ele ficou...

--E aí?...

--Zalengo dormiu de novo, aquecido pela bondade da senhora que o tinha recebido. Ele começou a sonhar e quem viu nos sonhos foi sua avó. Ela aparecera vestida como rainha, com roupas da tribo que ela dizia ser a sua, pois fora para onde ela partira depois que o deixara em casa sozinho. Sua avó o olhou do alto de sua nobreza, pois ela era nobre, com olhos duros de rainha e começou a lhe contar no sonho quais eram suas origens...

"--Nosso povo vivia nas savanas da África. Nosso povo vivia em aldeias grandes, era um povo guerreiro e aguerrido. Caçávamos o que precisávamos, a floresta era nosso sustento e ela nos respeitava. As feras eram nossas amigas, nós dividíamos com elas nossas vidas e nossos sonhos.

--Ao anoitecer, grandes rituais se faziam, era nestas horas que agradecíamos ao sol e à lua nossa presença neste mundo, era nestas horas que o chefe da tribo ungia os guerreiros e em que o feiticeiro comungava com os orixás das matas que vinham em ondas nos saudar...

--Vinham Oxum, Ogun, Oxumaré, Oxossi...E nossa cantoria em nagô espalhava felicidade nas matas...Que sorriam através dos olhos das feras acalmadas pelos tambores que enchiam as madrugadas de nosso orgulho..."

"-Um dia chegaram estranhos e enormes barcos na beirada da mata, do lado do mar azul que era nossa piscina... Então, estranhos ruídos se ouviram, estalidos e gritos se espalharam e até as feras, nossas amigas, fugiram para o fundo dos grotões e se esquivaram de nós... Então começou nossa desgraça..."

No sonho, Zalengo viu a lágrima brotar dos olhos de sua avó e os outros também choraram e ele teve ímpetos de soluçar, mas ela o calou com sua voz dura e nobre...

"-Dos barcos desceram enxames de brancos que nos caçaram com armas de fogo... os que não morreram ou resistiram até a morte foram presos e acorrentados, mãe presa à filha, genro ao sogro, filho à nora, todos juntos... Fomos todos ao fundo dos negros navios, malcheirosos porões onde escorria nosso sangue e se quebrava nossa alma no banzo de nossa perdição..."

Zalengo viu sua avó evaporando...Sua voz se tornava mais fraca à medida que ela falava e ele mal divisava seus lábios...

"-Chegamos aqui em navios, os muitos que morreram no caminho eram jogados em valas e queimados feito bonecos de palha... E nós, os sobreviventes, éramos vendidos como mulas a donos de engenhos de cana..."

Zalengo agora já não via sua avó. Apenas ouvia sua voz que parecia um trovão distante, a lhe lembrar de onde vinha sua raiva, de onde vinham seu medo e tristeza, de onde vinha sua angústia.

"-Nosso povo, tão nobre, foi escravizado e humilhado. Trabalhamos como mulas, comemos como porcos e vivemos como ratos apinhados em senzalas... Fomos libertos, tardiamente, mas nossa vida de escravo continua... e sempre continuará, se não voltarmos nossos olhos para nossas origens divinas..."

--E aí??

...Num movimento rápido ela pegou a arma e apontou para o seu raptor que se distraíra. Ele tentou a fuga, mas caiu de borco, escorregando no chão molhado. Ela arrancou com o carro que passou em cima de seu pé esquerdo. Maldita hora em que a fada começara a lhe contar a história. Mas ele se lembrou dos tempos antigos e chorou enquanto mancando, cruzou com a viatura cheia de policiais.