SINCRETISMO DOIDO
Claudia Sanzone
 
 

Na canção “Paratodos”, Chico Buarque fala sobre sua ascendência multirregional. Logo no início da letra, o compositor diz que vem de uma família composta por gente oriunda de vários cantos do país. Imagino que se ele fosse buscar mais a fundo sua origem genealógica, chegaria a antepassados europeus, ou africanos, ou asiáticos... Sabe-se lá?

Quem vive nesta terra em que se plantando tudo dá, tem um pezinho fora daqui. A gente sabe que a colonização européia deixou muitos descendentes do Velho Mundo por essas bandas. Tudo bem, havia os indígenas. Mas os brasileiros que moram nos estados do sudeste raramente têm um bisavô, que seja, representante desses nativos.

Comigo não foi diferente. Outro dia estive pensando em duas situações incomuns ocorridas em minha família. Vamos a elas:

Meu avô paterno era filho de portugueses. O pai dele - meu bisavô, obviamente - tinha um açougue em uma praça movimentada da Freguesia, em Jacarepaguá, aqui no Rio. Meu pai conta que seu avô era um lusitano típico: com sotaque, bigodão e uns modos meio grosseiros. Meu avô nasceu no Brasil e tinha um jeitão meio "ora, pois!" também. Portugueses ou descendentes destes, residentes nesta terra descoberta por Cabral, são vascaínos, claro. Meu avô era flamenguista. Doente. Carregava o escudo do mengão em tudo o que era canto: carro, chaveiro, cueca e até no relógio de pulso. Fanático.

Até hoje, meu avô foi o único flamenguista filho de portugueses que conheci.

Tem mais. Minha bisavó materna era filha de italianos, nascida em Minas Gerais. Foi criada em um internato de freiras e depois veio para o Rio e se casou com um advogado todo sério, segundo minha avó, filha deles. Lembro dos traços europeus dela: olhos cor de mel, pele bem branquinha e aquele nariz meio "pscitacídico", característico do povo "tutti buona gente". Ocorre que minha bisa freqüentava um centro de umbanda e recebia santo. Havia um altar enorme na casa dela, com umas imagens de índio, preto velho e outras figuras do gênero. Ela atendia pessoas doentes em sua casa, recebia a entidade evocada para o caso, fumava cachimbo e rezava esses necessitados.

Até hoje, minha bisavó foi a única umbandista filha de italianos que conheci.

Depois de ouvir a referida canção do Chico, pensei em minhas origens. Esses dois casos aparentemente atípicos de minha família ilustram um sincretismo doido, que é a cara dessa Pindorama. Sei que outras ocorrências semelhantes a essas existem aos montes por aí. E o que me falta, talvez, é conhecer mais gente. Neste país tão eclético, de um pluralismo cultural e racial riquíssimo, posso dizer que eu e o Chico ilustramos dois exemplos típicos do que é ser brasileiro, de como somos orgulhosamente tão Brasil!