AS TRÊS VERDADES
Sonia Regina Rocha Rodrigues

- Eu, namorar um árabe? Eu, não! Essa gente dá mais valor a um cavalo ou a um cachorro que a uma mulher!

- Como é que é?

- Os árabes são cruéis, não dão valor à vida humana. E se é mulher, então...

- Se é mulher, então, o quê?

- Mulher não tem alma. Acho que está escrito até no Alcorão.

- É isto mesmo. – apoiou Joana – Eu também já ouvi esta coisa de que a mulher não tem alma.

- Que absurdo! Vocês duas...

- Não fique bravo, Adib, nós sabemos que você não é muçulmano.

- E se fosse? Nem todo muçulmano é fanático. É o mesmo que confundir a cristandade inteira com o Tribunal da Inquisição.

- É primeiro o cavalo, depois o cachorro e por último a mulher, Adib, já ouvi isto. – insisti.

- Preconceito! Desafio vocês a provarem esta barbaridade. Nós, árabes, somos amorosos, amamos nossos filhos e nossas esposas.

Adib ficara mesmo exaltado e eu me arrepiei inteira ao ser chamada de preconceituosa. Senti-me tão desconfortável que resolvi averiguar.

Consultando minhas anotações, constatei que todas as referências misóginas de que eu dispunha provinham de duas fontes: um historiador grego do século de Péricles e uma historiadora francesa de século XIX. Certamente eram fontes inadequadas, pois provavelmente tinham preconceitos em sua análise do Oriente. Eu precisava de um escritor árabe, e pus-me a vasculhar, de Omar Kahyan a Mansur Chalita. A maior parte daquele farto material que eu coletara quando fizera o trabalho sobre o Islã perdera-se em alguma das minhas mudanças.

Passei um encantado fim de semana viajando em tapetes mágicos, a visitar o Jardim das Delícias, perdida entre gênios, feiticeiros, beduínos e odaliscas. Refresquei-me à sombra das tamareiras, banhei-me nos oásis e enfrentei tempestades de areia na rota das caravanas, em vão.

Segunda-feira, encontrei-me sem nenhuma referência genuinamente árabe para justificar minhas ferinas observações. Adib tinha razão. Eu agira com preconceito.

Assim, no intervalo do café, comecei a contar-lhe que eu lera muitas estórias árabes nos últimos dois dias, e, aparentemente esquecido de nossa discussão de sexta-feira, Adib exclamou:

- Os árabes adoram estórias! Meu avô costumava contar-nos muitas, mas de uma delas eu gostava especialmente. É a estória das três verdades.

Eu e Joana nos entreolhamos, curiosas, e Adib prosseguiu:

“Era uma vez um rei que, desejando ser o homem mais sábio do reino, mandou matar todos os velhos. Quem desobedecesse, seria morto; por isso, com muita tristeza, as pessoas mataram os velhos da família. Havia, porém, um moço que amava tanto seu pai, que desobedeceu ao rei e escondeu o pai dentro de casa.

Passado algum tempo, desejando saber se sua ordem fora realmente obedecida, o rei anunciou um prêmio a quem lhe dissesse as três verdades deste mundo. Quem acertasse herdaria sua coroa e poderia casar-se com sua filha; quem errasse, teria a cabeça cortada.

Muitos jovens tentaram e morreram. O moço desobediente perguntou ao pai quais eram as três verdades e apresentou-se ao rei.

- Qual é a primeira verdade? – perguntou o rei.

- Um homem só deve contar um segredo a seu cavalo – disse o moço.

- Prove! – ordenou o rei.

O rapaz então pediu que lhe trouxessem o cavalo, cochichou no ouvido do animal e pediu ao rei que perguntasse ao cavalo o que ele dissera.

- Muito bem, agora diga-me a segunda verdade.

- O melhor amigo de um homem é seu cachorro.

- Prove! – ordenou o rei.

Assim que lhe trouxeram o seu cachorro, o moço chutou o animal, que fugiu e refugiou-se a um canto; então o moço o chamou e o cão retornou a abanar o rabo, obedientemente.

- Conte-me agora a terceira verdade – pediu o rei.

- Um homem não deve confiar em sua mulher. – afirmou o rapaz.

- Prove – tornou a dizer o rei.

O rapaz então pegou um chicote e começou a surrar a esposa, que pôs-se a gritar:

- Meu rei, este homem desobedeceu a suas ordens e mantém seu velho pai escondido em nossa casa.

O rei perdoou a desobediência do rapaz, casou-o com sua filha e tornou-o seu herdeiro.”

Incrível! Inacreditável! Eu segurava as lágrimas provocadas pelo riso. Ali estava, sem tirar nem por, uma estória como a que eu procurara durante as últimas 48 horas, uma estória sobre um árabe, seu cachorro, seu cavalo e sua esposa. E era Adib, meu amigo árabe, quem me fornecia a prova que eu tanto buscara! A contradição no discurso de meu amigo árabe era no mínimo curiosa.

Com o olhar fixo em algum momento de sua infância, Adib, risonho como um garotinho, piscava os olhos, a nos provocar, brincalhão:

- Todo mundo sabe que em mulher não se pode confiar!

Longe de mim ser preconceituosa, que uma única estória é pouco para julgar-se por ela uma civilização inteira. Decidi deixar a questão morrer por ali mesmo, nas gargalhadas que partilhei com Joana, pois que a coincidência foi divertida, lá isso foi.
 
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